2022-09-09

O acórdão do STJ n.º 2/2022, no âmbito do processo n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, uniformizou jurisprudência quanto à prova da perda de chance processual como dano autónomo, num caso de violação de deveres profissionais por parte de mandatário forense, por falta de apresentação de recurso.

Quer o acórdão recorrido quer o acórdão fundamento sub judice no caso admitiram a ressarcibilidade autónoma do dano da perda de chance processual, reconduzível à perda da oportunidade/possibilidade de ganhar ou não perder uma determinada ação (e não ao dano final de obtenção de um resultado desfavorável na ação), em razão do comportamento lesivo do mandatário que omite a apresentação de peças processuais num determinado juízo (in casu,alegações de recurso e requerimento probatório, respetivamente).

A contradição jurisprudencial recaía sobre a questão do ónus e da própria possibilidade de prova da perda da oportunidade de ganhar a ação (ou de a não perder):

  • O acórdão fundamento considerava não ser possível determinar o grau de probabilidade da amplitude do êxito da ação, não fosse a conduta lesiva do mandatário, pelo que impenderia sobre o réu o ónus de demonstrar que a não apresentação de certa peça processual seria absolutamente indiferente para o desfecho da ação, à luz do artigo 342.º, n.º 2, do CC. Na ausência dessa demonstração, deveria ser fixada uma indemnização a favor do lesado com recurso à equidade, artigo 566.º, n.º 3, do CC.
  • O acórdão recorrido exigia ao autor a prova da elevada probabilidade de êxito da ação, à luz dos artigos 342.º, n.º 1 e 564.º, n.º 2, do CC, sem a qual não seria devida qualquer indemnização pela perda de chance processual por banda do réu.

O acórdão do STJ n.º 2/2022 considerou que seria sobre o autor que recairia o ónus da prova de uma probabilidade suficiente de verificação do resultado favorável, não fosse o comportamento lesivo do mandatário, e não ao réu que incumbiria provar a irrelevância da perda de chance.

Na tentativa de preenchimento do conceito de probabilidade do dano – tão indeterminado como o conceito normativo de previsibilidade do dano constante do artigo 564.º, n.º 2, do CC – o acórdão do STJ n.º 2/2022 avança a necessidade de consistência e seriedade da perda de chance.

Na ligação entre a consistência e seriedade e os pressupostos do dano e do nexo de causalidade, o STJ começa por equacionar uma distinção entre o standard probatório necessário à demonstração da existência de uma hipótese de ganhar a ação (que não é o dano em si) e o standard probatório para demonstração do nexo causal entre a perda da hipótese de ganhar a ação (o dano) e a conduta do lesante (in casu, a falta de apresentação de alegações de recurso).

Considera, de seguida, que não deve haver distinção entre a probabilidade exigida para considerar verificado o nexo causal e a probabilidade exigida para a demonstração da hipótese de ganhar a causa, não fosse o evento lesivo.

O STJ acaba por concluir, de forma confusa, que a probabilidade da verificação do nexo causal confere consistência – logo, probabilidade – à chance de ganhar a causa e essa consistência alicerça o standard probatório, i.e., que o próprio standard alicerça o standard

A circularidade é aqui evidente, resultando também manifesto, da leitura da fundamentação do acórdão, que o STJ não logra tornar operativos os conceitos de consistência e seriedade que avança. Pelo que a exigência da prova da consistência e seriedade da perda de chance para atribuição do direito indemnizatório ao lesado acaba por abrir a porta à arbitrariedade da decisão e à sua insuficiente fundamentação.

Em rigor, o problema fundamental do acórdão do STJ n.º 2/2022 é que parece obnubilar que a probabilidade de um evento danoso não se ter verificado se não fosse determinado facto danoso é uma questão de interpretação de normas jurídicas – in casu, de preenchimento do conceito indeterminado previsibilidade do dano constante do artigo 564.º, n.º 2, do CC – e não de prova de factos.

Efetivamente, em primeiro lugar, é sabido que o conceito de dano, que é pressuposto normativo do artigo 564.º, n.º 2, do CC, tem um significado jurídico preciso (eliminação ou diminuição de uma vantagem conferida e tutelada pela Ordem Jurídica), pelo que a conclusão pela ocorrência de certos eventos danosos, originados em determinados factos dados como provados (nexo de causalidade) e a conclusão segundo a qual um certo evento danoso não se teria verificado se não fosse um determinado facto, são juízos que importam a aplicação de critérios normativos.

Em segundo lugar, é essa comparação entre a afirmada situação do lesado em consequência do evento lesivo e a afirmada situação hipotética que o lesado estaria futuramente se não fosse o evento lesivo que permite preencher a previsão normativa do artigo 564.º, n.º 2, do CC.

Em terceiro lugar, a aferição das hipóteses de ganhar uma determinada ação já perdida, não fosse um dado facto lesivo, depende da análise da defesa apresentada nessa ação e do possível sentido da decisão do tribunal em que a defesa foi preterida (o vulgarmente chamado julgamento sobre o julgamento). O que importa, pelo tribunal em que a indemnização é peticionada, a realização de um juízo sobre elementos de incerteza fáctica e elementos de incerteza jurídica, já que a possibilidade de procedência de uma determinada ação depende não apenas da prova apresentada no processo e dos factos depois dados como provados, como também dos potenciais regimes jurídicos aplicáveis ao caso.

Assim, a probabilidade da perda de chance, a que o acórdão do STJ n.º 2/2022 se refere para preencher o conceito normativo de previsibilidade constante do artigo 564.º, n.º 2, do CC não é um standard de prova, nem os standards de prova podem ser transpostos para o campo de interpretação de normas jurídicas, não sendo aptos a resolver questões de discricionariedade judicial no preenchimento de conceitos indeterminados.

A introdução da exigência de consistência ou seriedade da perda de oportunidade em nada faz avançar a resolução do problema, mantendo a inoperatividade dos conceitos no arbitramento concreto de indemnizações fundadas na perda de chance processual.

2022-08-26
Elodie Ramos

As mais recentes alterações ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) entram hoje em vigor.

Decreto-Lei n.º 57/2022, de 25 de agosto, publicado ontem em Diário da República, vem alterar os artigos 129.º e 130.º do CIRE, no sentido de retirar ao juiz o ónus de proceder à graduação dos credores reconhecidos.

Assim, a graduação dos créditos passa a ser da responsabilidade do administrador de insolvência, que ao elaborar a lista de credores reconhecidos, apresentará simultaneamente a proposta de graduação dos créditos.

Não havendo impugnação da lista, e se estiver de acordo com a proposta graduação elaborada pelo administrador da insolvência, ao juiz caberá apenas a homologação de ambos os documentos.

Esta alteração visa simplificar, e em última análise, reduzir drasticamente – assim se espera – a duração do incidente processual de verificação do passivo e graduação de créditos, o que terá consequências na tramitação do próprio processo de insolvência, que vê assim encurtado um dos apensos que mais tempo consome à tramitação geral do processo.

Estas alterações aplicam-se aos processos cujas listas de credores reconhecidos não tenham sido ainda apresentadas.

2022-08-26
Elodie Ramos

As mais recentes alterações ao regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (Lei n.º 23/2007, de 4 de julho) entram hoje em vigor.

As alterações de primeira linha trazidas pela Lei n.º 18/2022, de 25 de agosto, prendem-se com a necessidade de criar condições para a implementação do Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, cujo principal objetivo é aumentar a mobilidade para os cidadãos dos Estados-Membros no espaço da CPLP.

Nesse sentido, destaca-se a concessão de vistos de residência e de estada temporária a cidadãos nacionais de um Estado em que esteja em vigor o Acordo CPLP não depende de parecer prévio do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), sem prejuízo de a concessão de vistos ser comunicada ao SEF, para efeitos do exercício das suas competências em matéria de segurança.

De entre outras alterações, destacam-se as seguintes: i) simplificação de procedimentos internos do SEF e na coordenação com os serviços consulares; ii) criação de um título de duração limitada de 120 dias (prorrogável por mais 60) que permita a entrada legal de imigrantes em Portugal com o objetivo de procura de trabalho; iii) possibilidade de os vistos de estada temporária ou de residência terem também como finalidade a prestação de trabalho remoto (nómadas digitais), bem como o de acompanhamento dos familiares portadores de títulos de residência, permitindo que a família possa, de forma regular, entrar em território nacional;  iv) aumento do limite de validade de documentos; v)  passa a ser permitido o exercício de uma atividade profissional remunerada, subordinada ou independente, a todos os estudantes do ensino secundário, estagiários, voluntários e admitidos a frequentar cursos de formação ministrados por estabelecimentos de ensino ou de formação profissional, que sejam titulares de uma autorização de residência, complementarmente à atividade que deu origem ao visto.

Por outro lado, e no espírito do Brexit, cujos efeitos ainda se fazem sentir ao nível da pendência de emissão de títulos de residência - decorridos praticamente dois anos desde o fim do período de transição do Acordo de Saída do Reino Unido da União Europeia (“Acordo”) – além do SEF, passam a ser também competentes para a emissão e renovação do título de residência para cidadãos britânicos beneficiários do Acordo, o Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., e os Espaços Cidadão.

A  Lei n.º 18/2022 procede ainda à execução na ordem jurídica interna dos Regulamentos (UE) n.os 2018/1860, 2018/1861 e 2018/1862, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de novembro de 2018, relativos ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do Sistema de Informação de Schengen (SIS).

As normas de execução do Orçamento do Estado para 2022 foram aprovadas recentemente. Neste artigo, analisamos as medidas de carácter laboral.

Eis as principais:

Valorizações remuneratórias dos trabalhadores das empresas do setor público empresarial e demais entidades

  • Estas entidades devem dispor de instrumentos (v.g. IRCT, instrumentos legais ou contratuais, ou regulamento interno aprovado nos termos do Regime Jurídico do Setor Empresarial do Estado) que consagrem mecanismos de: (i) valorização dos trabalhadores, (ii) avaliação de desempenho com diferenciação do mérito e (iii) eventual atribuição de prémios de desempenho, sob pena de nulidade dos actos praticados;
  • Os processos de promoções que não se encontrem abrangidos pelas alterações obrigatórias de posicionamento remuneratório, progressões e mudanças de nível de escalão, bem como os procedimentos internos de seleção para mudança de nível ou escalão ou outros de que possa resultar uma valorização remuneratória, não expressamente previstos em norma específica da Lei do Orçamento de Estado (LOE 2022), dependem de: (i) despacho prévio favorável do membro do Governo responsável pela área em que se integra o órgão ou serviço em causa; (ii) autorização dos membros do Governo responsáveis pela Administração Pública e Finanças, com exceção dos órgãos e serviços pertencentes às administrações regionais e locais, em que a emissão do despacho compete ao presidente do órgão e das autarquias locais ou empresas locais.
  • Os dirigentes máximo dos órgãos e serviços podem, cumpridos os requisitos legais e as verbas orçamentais, autorizar dentro da dotação inicialmente aprovada: (i) alterações do posicionamento remuneratório por opção gestionária com o limite de 5% dos trabalhadores, até ao limite de uma posição remuneratória; (ii) atribuir prémios de desempenho, até ao montante legalmente estabelecido e equivalente e até uma remuneração base mensal do trabalhador, sem prejuízo do disposto em IRCT.

 

Novas contratações

  • Os membros do Governo responsáveis pelas áreas da Administração Pública e das Finanças podem, desde que verificadas situações excecionais, devidamente fundamentadas, autorizar a abertura de procedimentos concursais para constituição e vínculos de emprego público por tempo indeterminado ou a termo, para carreiras geral ou especial ou que tenha sido objeto de extinção, revisão, destinados a candidatos que não possuam vínculo de emprego público por tempo indeterminado, ou que, caso o possuam, o novo concurso permita um aumento da remuneração base, desde que cumpridos um conjunto de requisitos cumulativos, nomeadamente: (i) relevante interesse público no recrutamento; (ii) declaração de cabimento orçamental emitida pelo órgão, serviço ou entidade requerente; e (iii) parecer prévio favorável do membro do Governo de que depende o serviço ou organismo que pretende efetuar o recrutamento.
  • As pessoas coletivas de direito público e as empresas do setor público empresarial podem recrutar trabalhadores para constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado, ou a termo, desde que expressamente autorizados no acto de aprovação do PAO.

 

Gastos operacionais das empresas do setor empresarial do Estado

  • O rácio dos gastos operacionais deve ser igual ou inferior ao verificado em 2019 ou em 2021, consoante o que registar volume superior, sob pena de situações excecionais devidamente consagradas na lei.
  • Devem, em qualquer caso, ser iguais ou inferiores ao valor registado em 2021 os gastos operacionais: (i) com pessoal; e (ii) com deslocações, ajudas de custo e alojamento, bem como os associados à frota automóvel e com encargos referentes a contratação de estudos, pareceres, projetos e consultoria. 

O Acordo Relativo à Cessação da Vigência de Tratados Bilaterais de Investimento entre os Estados-Membros da União Europeia (o “Acordo”) celebrado em Bruxelas, a 5 de maio de 2020, foi aprovado por Resolução da Assembleia da República e ratificado pelo Presidente da República, a 18 de agosto de 2022.

O Acordo tem origem em duas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia (o “TJUE”). No Processo C-478/07 Bud?jovický Budvar e no Processo C-284/16 Achmea, o TJUE sustentou que as disposições de um acordo internacional celebrado entre dois Estados-Membros não podem ser aplicadas nas relações entre esses dois Estados se essas disposições forem consideradas contrárias aos Tratados da União Europeia.

Os efeitos do Acordo refletem-se, sobretudo, nos processos de arbitragem entre investidores e Estados com base em tratados bilaterais de investimento intra-UE ao abrigo de qualquer convenção ou conjunto de normas de arbitragem. 

Através do Acordo, as Partes Contratantes confirmam que as cláusulas de arbitragem entre um investidor e um Estado-Membro, no âmbito de um tratado bilateral de investimento intra-UE, são contrárias aos Tratados da UE e, em consequência, não podem ser aplicadas a partir da data em que a última das partes de um tratado bilateral de investimento se tenha tornado um Estado-Membro da UE.

Assim, apesar de não se poderem iniciar novos processos de arbitragem com base em cláusulas de arbitragem de tratados de investimento bilaterais intra-UE, o Acordo não afeta as arbitragens já concluídas, nem qualquer acordo de resolução amigável de um litígio objeto de um processo de arbitragem iniciado antes de 6 de março de 2018.

Introdução

A nova Lei das Comunicações Eletrónicas (“LCE”), publicada no passado dia 16 de agosto de 2022, transpõe a Diretiva (UE) 2018/1972, que informa a mais recente reformulação do quadro regulamentar do setor estabelecendo o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (“CECE”).

Há 18 anos, Portugal optou pela condensação do essencial do então quadro regulamentar de 2002 num único diploma, o que facilitou a transposição do CECE mas não se traduziu num ganho de tempo nessa transposição. Podemos apontar como causa do atraso as convulsões do setor, e em particular o episódio da implementação da tecnologia 5G, mais do que a pandemia causada pelo vírus COVID-19, já que, quando esta foi declarada, já estava praticamente esgotado o prazo de transposição.

Tratando-se de um diploma totalmente novo, pode-se dizer que a nova LCE procurou manter (e bem) em grande parte o essencial da estrutura regulatória existente. No entanto, é importante sublinhar que não deixaram de ser introduzidas algumas alterações de relevo que terão certamente impacto no mercado.

Embora não esgote o elenco de alterações, a maior parte das novidades materiais mais relevantes estão concentradas em matérias relacionadas com os direitos dos consumidores, o regime sancionatório e o regime geral de privacidade nas comunicações eletrónicas. Em seguida, a título meramente exemplificativo, elencamos algumas. 

 

Direitos dos consumidores

Relativamente às normas de proteção dos consumidores introduzidas pela nova lei, observamos algumas alterações:

  • Período de retenção. De acordo com o novo n.º 3 do artigo 131.º, a disponibilidade de prestações com períodos de retenção mais curtos, 12 ou 6 meses, já não é obrigatória, contudo é definido um limite máximo de 24 meses.
  • Indisponibilidade do serviço.  A lei refere que qualquer situação reportada de indisponibilidade do serviço que se prolongue por mais do que 24 horas obriga ao crédito do valor equivalente por parte do operador. A devolução deste valor não se aplica somente aos casos em que há interrupções de mais de 24 horas consecutivas, mas também às situações em que as falhas somadas excedem esse tempo, por período de faturação. No entanto, para o consumidor poder rescindir o contrato sem custos, é necessário um período de 15 dias de persistência do problema, após este ser reportado.
  • Situações em que não há cobrança de custos de rescisão antecipada. A nova LCE definiu um conjunto de situações perante as quais não podem ser cobrados custos de rescisão antecipada, como o desemprego (por facto não imputável ao consumidor), a incapacidade para o trabalho superior a 60 dias com quebras de rendimento ou a alteração de morada para um local onde o operador não possa disponibilizar um serviço equivalente.

 

Privacidade nas comunicações eletrónicas

  • Alteração à Lei da Privacidade nas Comunicações Eletrónicas. No que diz respeito à Lei da Privacidade nas Comunicações Eletrónicas (Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto), alteram-se os artigos 7.° e 10.° da mencionada lei. No essencial, as alterações prendem-se com o alargamento do universo das organizações a quem podem ser comunicados os dados pessoais de localização de comunicações de emergência, passando a abranger não apenas as organizações que têm competência legal para receber tais comunicações, mas também as competentes para as tratar
  • Faturação detalhada. O n.°5 do artigo 122.° da nova LCE prevê que nas faturas detalhadas não é exigível a identificação das chamadas facultadas a título gratuito, incluindo as chamadas para serviços de assistência.
  • Prevenção da contratação. Pela leitura do artigo 126.° não fica resulta claro se, no caso dos serviços prestados a uma empresa, quem vai integrar a base de dados é a empresa que contrata os serviços de comunicações eletrónicas ou se são os trabalhadores enquanto efetivos utilizadores dos serviços.

 

Regime sancionatório

O artigo 176.º da LCE, e em parte também o artigo 164.º, definem um novo quadro sancionatório muito alargado das comunicações eletrónicas em Portugal.

 

Mais alguns detalhes

  • Serviço de comunicações eletrónicas”. Alarga-se a definição de “serviço de comunicações eletrónicas” pelo que passa a incluir um leque atividades tipicamente realizadas por aplicações de mensagens instantâneas, correio eletrónico, chamadas telefónicas pela Internet e mensagens pessoais fornecidas através de meios de comunicação social.
  • Regime de autorização geral.  Impõe um dever de comunicação, segundo o qual as empresas que pretendam oferecer redes públicas de comunicações eletrónicas e serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público devem comunicar previamente à Autoridade Reguladora Nacional (“ARN”) o início de atividade.

O polémico artigo 6.º da Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital foi parcialmente revogado pela Lei n.º 15/2022, de 11 de agosto.

Do artigo 6.º da anterior versão da Carta – aprovada pela Lei n.º 27/2021, de 17 de maio –  ficou apenas o seu número 1, que estabelece que “O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”.

Com esta medida, visa-se assegurar a articulação do regime de proteção contra a desinformação com o Plano Europeu de Ação contra a Desinformação. Ou seja, a alteração à Carta não modificou o dever de o Estado português assegurar o cumprimento do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação.

Os números 5 e 6 do anterior artigo 6.º eram os mais polémicos, uma vez que previam o direito de apresentação de queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social contra entidades que praticassem actos de desinformação, bem como a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social e de atribuição de selos de qualidade da informação.

É de aplaudir a revogação operada.

A linha entre a liberdade de expressão e o entendimento sobre o que deverá ser considerado “desinformação”, tal como “informação falsa ou enganadora”, não deve ser objeto de controlo pelo Estado, dada a dificuldade de o Estado, através de entidades administrativas, conseguir assegurar o equilíbrio entre os direitos fundamentais de liberdade de expressão e de opinião com o interesse público na proteção contra a desinformação.

Os Estados Membros deverão, assim, atuar em conformidade com o Plano Europeu de Ação contra a Desinformação definido pela União Europeia, ainda que a concretização de tais medidas possa ficar a cargo de cada Estado-Membro. 

O Conselho de Ministros aprovou a nova Estratégia Nacional de combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo (BC/FT) para 2022-2026.

A nova Estratégia Nacional, que para além da Prevenc?a?o e Combate ao BC/FT, inclui também o Financiamento da Proliferac?a?o de Armas de Destruic?a?o em Massa, está organizada em torno de três compromissos:

  • Reforçar os instrumentos, mecanismos e procedimentos de prevenção e de combate nestes âmbitos;
  • Completar a transição do paradigma da abordagem de conformidade para a abordagem baseada no risco; e
  • Fortalecer a cooperação, interna e internacional.

Esses compromissos desdobram-se, por sua vez, em nove objetivos estratégicos e 32 eixos de intervenção, cuja execução será acompanhada pela Comissão de Coordenação das Políticas de Prevenção e Combate ao BC/FT, dos quais se destacam:  

  • Antecipação, deteção, prevenção e redução do surgimento de novos riscos, fomentando o uso de novas tecnologias para identificar e gerir os riscos;
  • Atualização e difusão dos padrões normativos, regras de conduta e de boas práticas, acompanhadas pelo reforço da formação e consciencialização dos cargos de direção e colaboradores das autoridades de supervisão e fiscalização;
  • Aumento da supervisão e fiscalização, mediante um aumento da atividade das autoridades reguladoras, assistindo-se a um reforço de recursos humanos nos setores com elevado grau de risco e a uma redução da falta de qualificações, ausência de experiência ou inoperância por falta de recursos humanos, materiais ou financeiros e devido à falta de qualidade dos sistemas internos de controlo;
  • Reforço da importância da investigação levada a cabo pelas autoridades judiciárias e estímulo da troca e partilha de informação entre autoridades competentes;
  • Incentivo à celebração de protocolos de cooperação entre autoridades competentes e instituição de parcerias com entidades do setor privado; e
  • Simplificação da triagem de informação relevante no sistema nacional, por parte das entidades obrigadas, através de informações sobre o beneficiário efetivo, identificação de pessoas politicamente expostas e implementação de medidas restritivas e sanções financeiras.

A Estratégia Nacional entrou em vigor no dia 10 de agosto e será objeto de reanálise no segundo semestre de 2024.

Introdução

Os trabalhadores de uma organização (pública ou privada) e as pessoas que com a organização estão em contacto no exercício das suas atividades profissionais são, em regra, os primeiros a ter conhecimento de ameaças ou de situações lesivas do interesse público em contexto profissional.

Contudo, a denúncia dessas ameaças ou situações lesivas assume (ainda) uma conotação negativa, associada, nomeadamente, a questões culturais e de educação que diferem de país para país. Na maior parte das vezes, os potenciais denunciantes, temendo retaliação, acabam por ser desencorajados a comunicar as suas suspeitas. A existência de um reduzido número de denúncias numa organização não significa, por isso, que não ocorram violações do direito que possam lesar gravemente o interesse público, antes pelo contrário.

Com o objetivo de mudar este paradigma e reconhecendo o papel essencial do denunciante (whistleblower) na descoberta e prevenção de violações, assim como na salvaguarda do bem comum, a União Europeia aprovou a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União («Diretiva de Whistleblowing»).

Na União Europeia, a proteção conferida aos denunciantes encontra-se fragmentada pelos Estados-Membros e difere consoante o domínio de intervenção. A Diretiva de Whistleblowing visa estabelecer normas mínimas comuns que, uma vez transpostas para a legislação nacional, assegurem uma proteção harmonizada e eficaz dos denunciantes através da obrigatoriedade de adoção de canais de denúncia eficazes, confidenciais e seguros, e de medidas de proteção contra actos de retaliação.

A Diretiva prevê a adoção de canais de denúncia de forma faseada: (i) até 17 de dezembro de 2021 por entidades com 250 ou mais trabalhadores, e (ii) até 17 de dezembro de 2023 por entidades com 50 a 249 trabalhadores.

O Estado português foi um dos primeiros Estados-Membros da União Europeia a transpor a Diretiva de Whistleblowing com a publicação da Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, a qual estabelece o regime geral de proteção dos denunciantes de infrações.

A entrada em vigor desta lei foi, todavia, diferida e o regime português impõe que todas as entidades públicas e privadas com 50 ou mais trabalhadores (e municípios com 10.000 ou mais habitantes) adotem canais de denúncia a partir de 18 de junho de 2022, sob pena de coimas que podem atingir os € 250.000,00.

Este regime, que, como o próprio nome indica é um “regime geral”, não prejudica a aplicação de regimes setoriais específicos de proteção de denunciantes e que, inclusive, já preexistiam no ordenamento jurídico português, nomeadamente, a adoção de canais de denúncia no âmbito do regime de prevenção do branqueamento de capitais, do regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras, do Código de Valores Mobiliários, e ao nível dos programas de clemência do regime de concorrência português. 

Os canais de denúncias constituem uma importante ferramenta no domínio dos programas de cumprimento normativo (compliance) para as organizações, pois contribuem para a deteção, investigação e penalização em caso de infrações contrárias ao interesse público, aumentando a transparência e a responsabilização das próprias organizações. 
 
 
Regime jurídico Português

Âmbito de aplicação da Lei n.º 93/2021

Como referido, a Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, que estabelece o regime geral de proteção de denunciantes de infrações, transpôs para o ordenamento jurídico nacional a referida Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019 (doravante “Regime Geral de Proteção dos Denunciantes” ou “Lei n.º 93/2021”).

A Lei n.º 93/2021 entrou em vigor no passado dia 18 de junho de 2022 e impõe a adoção de canais para a receção de denúncia interna e/ou denúncia externa, consoante os casos, que a seguir se detalham.

Por denúncia interna entende-se a comunicação verbal ou escrita de informações sobre infrações no interior de uma entidade jurídica no setor privado ou público, a saber: (i) Estado e entidades públicas e privadas com ≥ 50 trabalhadores; (ii) autarquias locais com ≥ 10 000 habitantes; (iii) pessoas coletivas que, independentemente do número de trabalhadores, estejam contempladas pela aplicação de determinados actos da União, nomeadamente, relativos a serviços, produtos e mercados financeiros, prevenção do branqueamento de capitais, segurança dos transportes e proteção do ambiente – as designadas “entidades obrigadas”.

Por seu turno, a denúncia externa consiste na comunicação verbal ou escrita de informações sobre violações às seguintes autoridades: (i) Ministério Público e órgãos de polícia criminal; (ii) Banco de Portugal; (iii) autoridades administrativas independentes; (iv) institutos públicos e associações públicas; (v) inspeções-gerais e entidades equiparadas a outros serviços centrais da administração direta do Estado e (vi) autarquias locais – as designadas “autoridades competentes”. Para que o denunciante possa beneficiar da proteção conferida pela Lei n.º 93/2021, tem de se verificar um conjunto de condições de aplicação objetiva e subjetiva.

Quanto às condições de aplicação subjetiva, têm de estar preenchidos o conceito de denunciante e as condições de proteção previstos na Lei n.º 93/2021.

O Regime Geral de Proteção dos Denunciantes consagra um conceito amplo de denunciante, identificando-o com o indivíduo que denuncie ou divulgue publicamente uma infração com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional, independentemente da natureza da atividade e do setor em que é exercida. A título meramente exemplificativo, podem ser considerados denunciantes: (i) trabalhadores; (ii) prestadores de serviços; (iii) fornecedores; (iv) titulares de participações sociais; (v) pessoas pertencentes a órgãos de administração ou de gestão ou a órgãos fiscais ou de supervisão.

Por outro lado, devem estar preenchidas as seguintes condições adicionais: (i) o denunciante deve estar  de boa-fé; (ii) o denunciante deve ter  fundamento sério para crer que as informações são verdadeiras aquando da denúncia ou da divulgação pública; (iii) a informação deve dizer  respeito a uma violação abrangida, i.e., suscetível de denúncia (infração); e (iv) a denúncia deve ser  efetuada através do meio de denúncia adequado, ou seja, o denunciante não pode recorrer previamente a canais de denúncia externa ou divulgação pública de uma infração, sem antes ter apresentado uma denúncia pelo canal de denúncia interna, salvo determinadas exceções.  

No que diz respeito às condições de aplicação objetiva, o objeto da denúncia tem de corresponder a actos e omissões, dolosos ou negligentes, imputados à conduta dos membros dos órgãos sociais e demais colaboradores da entidade obrigada, bem como de terceiros desde que afetem uma pessoa da entidade obrigada, relacionadas com as seguintes matérias: (i) corrupção e infrações conexas; (ii) contratação pública; (iii) serviços, produtos e mercados financeiros e prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo; (iv) segurança e conformidade dos produtos; (v) segurança dos transportes; (vi) proteção do ambiente;  (vii) proteção contra radiações e segurança nuclear; (viii) segurança dos alimentos para consumo humano e animal, saúde animal e bem-estar animal; (iv) saúde pública; (x) defesa do consumidor; (xi) proteção da privacidade e dos dados pessoais e segurança da rede e dos sistemas de informação; (xii) acto ou omissão contrário e lesivo dos interesses financeiros da União Europeia;  (xiii) acto ou omissão contrário às regras de mercado interno da União Europeia; (xiv) criminalidade violenta, especialmente violenta e altamente organizada.

Do elenco das matérias acima não fazem parte matérias relativas à aplicação da legislação laboral como seja, por exemplo, situações de discriminação entre trabalhadores, assédio, entre outras. Estas matérias estão, à partida, excluídas do âmbito do regime de proteção do denunciante, uma vez que beneficiam de um regime e procedimento próprios previstos na legislação laboral. Isto não significa, no entanto, que o empregador não possa fazer uso dos canais de denúncia interna para a comunicação de infrações laborais. Poderá eventualmente fazê-lo, mas com as necessárias ressalvas, devendo ser feita referência ao facto de estas matérias serem objeto de um tratamento próprio em sede de legislação laboral. 

 

Meios de denúncia disponíveis

As denúncias podem ser apresentadas através de um de três meios: (i) canal de denúncia interna, (ii) canal de denúncia externa ou (iii) divulgação pública.

Existe uma ordem específica de precedência quanto ao seu uso para que o denunciante possa beneficiar do regime de proteção já referido. O uso do canal de denúncia interna tem precedência em relação aos demais meios de denúncia e o canal de denúncia externa em relação à divulgação pública.

Cada entidade obrigada é livre de escolher o meio pelo qual disponibiliza o seu canal de denúncia.

Contudo, independentemente da escolha efetuada, o canal de denúncia tem de salvaguardar que a denúncia possa ser feita: (i) por escrito (v.g. correio ou plataforma online); (ii) verbalmente (v.g. linha telefónica ou outro sistema de mensagens de voz).

O canal de denúncia tem de cumprir um conjunto de salvaguardas, designadamente: (i) exaustividade, integridade e conservação da denúncia; (ii) independência e imparcialidade; (iii) confidencialidade da identidade do denunciante ou de terceiros ou anonimato, quando seja solicitado pelo denunciante; (iv) proteção de dados; (v) sigilo; e (vi) ausência de conflitos de interesses.

As entidades devem adotar procedimentos específicos de informação, resposta, tratamento de denúncias e formação a trabalhadores, os quais devem prever, a título de boas práticas, diversas fases: (i) preliminar; (ii) abertura de investigação; (iii) realização de investigação; e (v) comunicação do resultado e apuramento das consequências.

A adoção de um procedimento é essencial para garantir que as entidades cumprem com os prazos (máximos) previstos na lei para o seguimento de denúncias, designadamente: (i) 7 dias  para acusar a receção da denúncia e prestar ao denunciante informações sobre os requisitos, forma e admissibilidade da denúncia; (ii)  3 meses para informar o denunciante sobre as medidas previstas ou adotadas para dar seguimento à denúncia; (iii) 15 dias após a conclusão do caso para dar resposta à solicitação do denunciante referente à informação sobre o resultado da análise efetuada à comunicação. 

 

Proteção de dados pessoais nos canais de denúncia

O tratamento de dados pessoais, incluindo o intercâmbio ou a transmissão de dados pessoais pelas autoridades competentes, têm de observar o disposto no Regulamento (UE) n.º 2016/679 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, que aprovou o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), e na Lei n.º 59/2019 de 8 de agosto, que estabelece determinados aspetos de execução do RGPD na ordem jurídica portuguesa.

Os dados pessoais que manifestamente não forem relevantes para o tratamento da denúncia não devem ser conservados, pelo que, se forem recolhidos, têm de ser imediatamente apagados, em conformidade com o princípio da minimização dos dados. Tal situação não prejudica o dever de conservação de denúncias apresentadas verbalmente, quando essa conservação se faça mediante gravação da comunicação em suporte duradouro e recuperável.

Os dados devem ser conservados de uma forma que permita a identificação dos respetivos titulares apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados, ou seja, para efeitos do tratamento da denúncia, em conformidade com princípio da limitação da conservação previsto no RGPD.

As entidades obrigadas e as autoridades competentes responsáveis por receber e tratar as denúncias devem manter um registo das denúncias recebidas e conservá-las, pelo menos, durante o período de cinco anos e, independentemente desse prazo, durante a pendência de processos judiciais ou administrativos referentes à denúncia.  Os dados pessoais podem ser conservados por períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusivamente para fins estatísticos e sujeitos à aplicação das medidas técnicas e organizativas adequadas.

As denúncias apresentadas verbalmente, através de linha telefónica com gravação ou outro sistema de mensagem de voz gravada, são registadas, obtido o consentimento do denunciante, mediante gravação da comunicação em suporte duradouro e recuperável ou mediante transcrição completa e exata da comunicação.

Caso o canal de denúncia verbal não permita a gravação, as entidades obrigadas e as autoridades competentes lavram uma acta fidedigna da comunicação. 

Por último, caso a denúncia seja apresentada em reunião presencial, as entidades obrigadas e as autoridades competentes, obtido o consentimento do denunciante, procedem ao registo da reunião mediante gravação da comunicação em suporte duradouro e recuperável ou através de acta fidedigna.

 

Proibição de retaliação

A Lei n.º 93/2021 estabelece no seu artigo 21.º a proibição da prática de actos de retaliação contra o denunciante, definindo-os como qualquer acto ou omissão que, direta ou indiretamente, ocorrendo em contexto profissional, motivado por uma denúncia interna, externa ou divulgação pública, cause ou possa causar ao denunciante, de modo injustificado, danos patrimoniais ou não patrimoniais.

Entre outros, a lei presume os seguintes actos motivados pela denúncia, quando praticados até dois anos após a apresentação da denúncia ou da divulgação pública da infração: (i) alterações das condições de trabalho; (ii) suspensão do contrato de trabalho; (iii) avaliação negativa de desempenho; (iv) despedimento; (v) não conversão do contrato de trabalho a termo em contrato sem termo; e (v) resolução do contrato de prestação de serviços.

A eventual sanção disciplinar aplicada ao denunciante até dois anos após a denúncia ou divulgação pública presume-se abusiva.

Isto significa que há uma inversão do ónus da prova a favor do denunciante, cabendo ao empregador ilidir essa presunção, fazendo prova de que a prática de alguns dos atos anteriores não terá sido motivada por denúncia apresentada pelo denunciante.

É, portanto, expetável que a litigiosidade, opondo trabalhadores a empregadores possa vir a aumentar, restando-nos aguardar pelas futuras decisões dos tribunais portugueses quanto ao tratamento das questões laborais associadas aos canais de denúncia. 

 

Regime jurídico Brasileiro

É recente o aparecimento da figura do denunciante de boa-fé (whistleblower) no panorama legislativo brasileiroPode considerar-se que a sua primeira aparição se deu aquando da redação do artigo 33.º da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, ratificada pelo Brasil no ano de 2003, em que é prevista a obrigatoriedade de os Estados incorporarem medidas de proteção aos denunciantes de boa-fé.

Esta obrigação visa que tanto membros de organizações, do setor público ou privado, bem como membros da sociedade civil, procurem denunciar práticas ilegais, imorais ou ilegítimas, através de mecanismos pré-estabelecidos. É inegável que os números associados às práticas de corrupção no Brasil são alarmantes em diversos setores. O objetivo é essencialmente o de prevenir a prática de actos de corrupção, principalmente em entidades públicas, na medida em que não existem leis que estabeleçam a obrigação de canais de denúncias em entidades privadas – o que não impede, todavia, a imposição analógica da obrigação às empresas privadas.

No ano de 2013, o Poder Legislativo editou a Lei n.º 12.846, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de actos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. No seu Capítulo III, a Lei prevê a responsabilidade administrativa das pessoas jurídicas que pratiquem actos lesivos, estabelecendo no seu artigo 7.º, VIII, que a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e aplicação de códigos de ética e de conduta são fatores a serem considerados quando forem aplicadas sanções respeitantes à responsabilização administrativa. Em razão da referida previsão, entende-se a intenção legislativa de fazer com que os canais de denúncias dentro da estrutura empresarial sejam considerados requisitos para um completo e efetivo programa de integridade.

No que diz respeito à proteção dos denunciantes, em 2018, a Lei n.º 13.608, que dispõe sobre os serviços telefónicos de receção de denúncias e recompensas pela prestação de informações que possam servir de auxílio em investigações policiais, passou a estabelecer que o denunciante, ainda que se identifique, terá assegurada a preservação da sua identidade e o o sigilo dos seus dados, e poderá inclusivamente receber um prémio, em dinheiro, pelas informações que levem à resolução de investigações criminais. A identidade do denunciante apenas será revelada quando seja de interesse público ou de interesse concreto para a apuração dos factos. Esta Lei visa fundamentalmente incentivar a população a contribuir para implementação de uma cultura anticorrupção.

O artigo 4.º-C da Lei n.º 13.608/2018 prevê que ao denunciante seja assegurada a proteção contra retaliações, tais como demissão arbitrária, alteração injustificada de funções ou atribuições, imposição de sanções, de prejuízos remuneratórios ou materiais de qualquer espécie, retirada de benefícios, diretos ou indiretos, ou recusa de providência de referências profissionais positivas. Além da garantia de proteção, o referido artigo prevê que ações ou omissões de retaliação ao informante configurarão infração disciplinar grave, sujeitarão o agente a demissão tendo em vista a proteção do serviço público, e, no caso de eventuais danos materiais causados por omissões ou ações praticadas em retaliação, sem prejuízo de danos morais, o denunciante poderá ser ressarcido em dobro por eventuais danos materiais que lhe sejam causados.

Não existem no ordenamento jurídico brasileiro previsões legais relativas à obrigatoriedade de canais de denúncias ou proteção aos denunciantes no âmbito privado. Todavia, no âmbito laboral, em razão de diversos princípios que protegem as relações de trabalho e os trabalhadores, caso existam canais de denúncia internos, é possível a aplicação análoga das disposições legais acima referidas, como a proteção do informante, a impossibilidade de que este sofra retaliações, seja despedido ou seja submetido a situações que provoquem danos de natureza moral ou extrapatrimonial. Todos estes aspetos dependerão da forma como estipulados o referido canal de denúncia, as regras de compliance internas da empresa e a observação pela empresa das regras estabelecidas no âmbito do Direito do Trabalho brasileiro.

 

Síntese comparativa

No cenário brasileiro, pode observar-se que os whistleblowers são geralmente trabalhadores do setor privado, funcionários públicos ou prestadores de serviços, os quais podem: (i) denunciar casos de corrupção às autoridades policiais; (ii) relatar à receita federal casos de sonegação; (iii.) denunciar violações de âmbito laboral ao Ministério do Trabalho.

No setor privado, foi editada a Lei Anticorrupção, que fomentou a política de whistleblowing, ao prever a criação de canais de denúncia e uma política de proteção dos denunciantes. Por outro lado, no setor público, a edição da Lei n.º 13.608/2018, facilitou o reconhecimento de alguns institutos importantes, que fazem parte da política de whistleblowing para a prevenção, repressão ou apuração de crimes ou ilícitos administrativos. Ainda na esfera pública, houve a edição da Lei n.º 13.964/2019, proveniente do “Pacote Anticrime”. No âmbito administrativo, a política de proteção ao denunciante tem se materializado por meio de regulamentos editados ao longo dos anos de 2019 a 2021.

O Decreto n.º 8.420/2015 (Art. 42.º, X) determina que o canal de denúncia seja um dos parâmetros a ser considerado aquando da avaliação do programa de integridade e estabelece que este deve ser aberto e amplamente divulgado a funcionários e terceiros. Nos termos do art. 7.º, VIII, da Lei n.º 12.846/2013, possuir um canal de denúncias pode reduzir a pena de multa em caso de condenação. Portanto, vislumbra-se que, no Brasil, há mais um cumprimento de boas práticas por parte das empresas privadas que adotam esses canais do que uma obrigação legal passível de sanções.

No cenário português, os whistleblowers, são também trabalhadores do setor privado, funcionários públicos ou prestadores de serviços. As normas gerais do ordenamento jurídico português, já reconheciam a possibilidade de realizar denúncias internas que dissessem respeito a infrações penais e administrativas, além da sua divulgação pública. Era já previsto no artigo 244.º do Código de Processo Penal Português, por exemplo, que qualquer pessoa com conhecimento de um delito poderia denunciá-lo ao Ministério Público, o que inclui denúncias externas de funcionários de empresas sobre crimes nelas praticados.

As áreas sobre as quais incidiram normas de incentivo ao whistleblowing e de proteção aos whistleblowers foram os setores bancário, de mercado de capitais, de prevenção ao branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, da saúde e de combate à corrupção. A proteção já abrangia consequências no plano laboral, civil e, também, penal.

Por fim, quanto aos canais de denúncia em Portugal, as denúncias devem primariamente ser feitas através dos canais de denúncia internos. Podem igualmente ser realizadas através de canais de denúncia externa ou divulgadas publicamente. Porém, o denunciante só poderá recorrer a canais de denúncia externa quando: (i) não exista um canal de denúncia interna; (ii) o canal de denúncia interna admita apenas a apresentação de denúncias por trabalhadores, não o sendo o denunciante; (iii) tenha motivos razoáveis para crer que a infração não pode ser eficazmente conhecida ou resolvida a nível interno ou que existe risco de retaliação; (iv) tenha inicialmente apresentado uma denúncia interna sem que lhe tenham sido comunicadas as medidas previstas ou adotadas na sequência da denúncia no prazo máximo de três meses a contar da receção ou sem que seja comunicado ao denunciante o resultado da análise efetuada, no prazo de 15 dias após a respetiva conclusão; ou (iv) a infração constitua crime.

Da nossa parte, acreditamos poder concluir que as divergências de soluções quanto aos problemas que o tema levanta são justificadas pelas diferenças culturais e pelos próprios princípios inerentes a cada ordenamento jurídico.

 

2022-08-02
Elodie Ramos

Entram hoje em vigor a mais recentes alterações ao Código de Processo Penal e à Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro – que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira.

A Lei n.º 13/2022, de 1 de agosto, publicada ontem em Diário da República vem alterar os artigos 40.º, 57.º, 107.º, 196.º, 268.º, 311.º-B, 312.º, 418.º, 419.º, 425.º, 429.º e 435.º do Código de Processo Penal, sendo as alterações de maior relevo:

  • As que determinam que o juiz não pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que já tiver aplicado uma medida de coação de proibição e imposição de condutas, obrigação de permanência na habitação ou prisão preventiva, bem como nos processos em que tenha presidido a debate instrutório (artigo 40.º);
  • As que admitem que a pessoa coletiva arguida possa ser representada por pessoa singular que também tenha a qualidade de arguido relativamente aos factos que são objeto do processo (revogação do n.º 9 do artigo 57.º);
  • As que estabelecem um limite máximo de 20 testemunhas arroladas na contestação, podendo este limite ser ultrapassado quando esteja em causa a prática de algum dos crimes referidos no artigo 215.º, n.º 2 ou quando o processo se revelar de excecional complexidade (artigo 311.º-B); e
  • As que reforçam a colegialidade em matéria de recursos, passando a ser regra a intervenção de dois juízes-adjuntos, ao invés de apenas um (418.º, 419.º, 425.º, 429.º e 435.º).

Esta alteração ao artigo 40.º do Código de Processo Penal vem recuperar a redação dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que determinava que o juiz não podia intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão, apenas se já tivesse aplicado uma medida de coação de proibição e imposição de condutas, obrigação de permanência na habitação ou prisão preventiva, bem como nos processos em que tivesse presidido a debate instrutório. São assim revertidas as alterações quanto ao regime das incompatibilidades do juiz introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro que alargou o leque em que as intervenções do juiz na fase de inquérito dão azo ao seu afastamento numa fase posterior do processo, procurando desta forma por termo aos diversos constrangimentos que se têm vindo a sentir na tramitação processual por conta do regime de incompatibilidades agora revogado.

Por sua vez, a Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, através da introdução de um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, passou agora a aplicar-se também aos crimes de contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda (artigo 1.º, al. o)).