João Macedo Vitorino, Advogado e Sócio da MACEDO VITORINO, e, Frederico Vidigal, Advogado e Coordenador do Departamento de Energia e Ambiente da MV, partilham os seus pontos de vista na revista digital Capital Verde da ECO, sobre «O Licenciamento de Hidrogénio, ficou mais simples. Mas mantêm-se grandes dificuldades», publicado a 24 de julho de 2023.

A Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) publicou recentemente uma nota interpretativa para “promover a clareza e transparência sobre as questões envolvidas no licenciamento industrial de hidrogénio renovável em Portugal”, com o objetivo de diminuir a complexidade dos procedimentos, indicou o Ministério do Ambiente e da Ação Climática. A nota agiliza o processo, mas persistem entraves ao licenciamento de projetos de hidrogénio verde, alertam os especialistas ouvidos pelo ECO/Capital Verde.

A nota interpretativa começa por clarificar as condições que os produtores devem cumprir para provar que o hidrogénio produzido é, de facto, renovável.

Uma vez que não se encontram estabelecidos em lei ou regulamento nacional os critérios para o hidrogénio ser considerado de origem renovável, explica a sociedade Macedo Vitorino, a nota acaba por remeter para as regras estabelecidas na Diretiva de Energias Renováveis.

Além disso, “até agora, não era claro que tipo de prova os promotores deveriam fazer para demonstrar a origem verde da eletricidade utilizada para produzir hidrogénio”, indica o sócio da área de Projetos e Energia da PLMJ, João Marques Mendes.

A nota interpretativa determina que seja assinada uma “simples declaração de honra”, na qual os produtores se comprometem a produzir hidrogénio de fonte renovável, “tornando simples um processo que é complexo nos termos da lei e das regras europeias”, avalia o sócio responsável pelo Departamento de Ambiente na SRS, José Luís Moreira da Silva. A ‘prova dos nove’ é pedida mais tarde, na fase de construção, quando devem ser entregues um conjunto de documentos que comprovam o atestado na declaração inicial.

Caso não se confirme o uso de energias renováveis, os produtores ficam sujeitos a sanções, ressalta o mesmo sócio da SRS. Essas sanções passam por uma perda de direitos de exploração, não sendo emitido o título relativo à instalação e exploração do estabelecimento industrial, lê-se na nota.

A nota interpretativa “vem realmente simplificar o processo e permitir a abertura do procedimento e a sua conclusão mais célere”, conclui, portanto, José Luís Moreira da Silva.

Mas servirá para atrair mais projetos? “A minha convicção é que esta nota interpretativa aproveitará, sobretudo, aos promotores que já estão efetivamente interessados na participação no concurso, achando difícil que tal suscite um incremento exponencial de procura”, estima Filipe de Vasconcelos Fernandes, especialista em Economia da Energia.

A sociedade Macedo Vitorino também rejeita a tese de aumento do volume de interessados, pois identifica outros problemas no licenciamento.

Apesar de concordarem que a nota interpretativa vem facilitar o processo, os mesmos especialistas ressalvam que persistem entraves ao licenciamento de projetos de hidrogénio verde, os quais veem como verdadeiros desafios.

“O principal entrave ao desenvolvimento de projetos de hidrogénio parece-nos que não reside no processo de licenciamento do eletrolisador em si, mas antes no processo de licenciamento de soluções de autoconsumo solar que vão alimentar o processo de eletrólise”, indica a Macedo Vitorino, na voz do sócio fundador João Macedo Vitorino e do Associado Sénior Coordenador Frederico Vidigal.

De acordo com os mesmos, os promotores têm sentido dificuldade em instalar junto a polos industriais grandes projetos de autoconsumo que consigam alimentar em exclusivo a produção do eletrolisador. “A proximidade entre a UPAC e as instalações de consumo é condição legal para o exercício da atividade de produção”, explicam, para depois alertarem: “Alguns projetos de produção de hidrogénio têm acabado por não sentir do papel pela dificuldade em encontrar o terreno necessário à operação da UPAC [Unidade de Produção para Autoconsumo] necessária à produção do hidrogénio”. Isto porque os custos são “demasiado altos” se a produção de hidrogénio verde for feita com recurso a eletricidade fornecida pela rede, dizem.

João Marques Mendes considera como principal desafio o acesso à rede pública de eletricidade por parte das centrais solares ou eólicas que vão abastecer os eletrolisadores, e acrescenta à problemática as dificuldades no licenciamento de gasodutos de ligação entre produtores e clientes.

Então, como dar resposta a estes problemas? Para Marques Mendes, é urgente “a definição de uma estratégia rápida e eficaz para criar e libertar capacidade de acesso à rede pública para novos projetos de produção renovável” pois “é determinante para viabilizar não só projetos de hidrogénio verde, mas uma série de projetos industriais estratégicos e que dependem de eletricidade verde”.

Já a Macedo Vitorino sugere dois caminhos: que o legislador considere a figura do Cliente Eletrointensivo e permita aos promotores, ainda numa fase inicial do projeto, aderir a este estatuto, através do qual o consumidor fica isento de uma parte do preço da eletricidade, os custos de interesse económico geral (CIEG). Em paralelo, esta sociedade considera “desejável” que fosse estabelecido um canal específico de atribuição de capacidade, dedicado à alocação de capacidade para projetos de autoconsumo, especialmente para consumidores eletrointensivos direcionados à produção de hidrogénio e seus derivados.

Filipe de Vasconcelos Fernandes identifica ainda outro entrave ao desenvolvimento de projetos: “a necessidade uma maior adesão à realidade de algumas perspetivas, por parte da(s) entidades licenciadoras, quanto ao potencial hídrico de determinadas localizações”. A água também é necessária para a produção de hidrogénio mas, face à instabilidade dos ciclos hidrológicos, “poderá estar muito mais abaixo do que o expectável”, assinala o mesmo. “A minha convicção é que temos uma relativa desatualização nos mapas de potencial hídrico, por exemplo no Baixo Alentejo, com consequências para o licenciamento futuro de novos projetos”, conclui.

O ministério da tutela considera que o lançamento da nota interpretativa é “um contributo relevante para a concretização do potencial da fileira do hidrogénio renovável” mas reconhece, de certa forma, que é preciso mais, referindo que irá continuar a trabalhar em “estreita colaboração com as partes interessadas”, lê-se em comunicado.

 

 

Durante o julgamento, no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), do recurso de uma decisão da ANACOM que, em setembro de 2022, impôs à MEO uma coima única de 829 mil euros, por infrações a normas relativas ao serviço de postos públicos, o Ministério Público considerou “inadmissível” que “uma entidade reguladora tenha sancionado factos praticados (...) seis anos depois de terem ocorrido” (consultar a notícia aqui).

Atendendo à matéria em questão, trata-se de um prazo extremamente elevado que, no entanto, e tendo em conta os dados que pudemos apurar, não é de modo algum surpreendente.

Desde 2015, o montante das coimas aplicadas pela ANACOM aumentou significativamente todos os anos, tendo, em 2022, atingido um recorde absoluto, com efeito, seria necessário recuar até 2012 para se encontrar uma coima única de montante superior a um milhão de euros.

Voltando ao processo em causa (cfr. a figura anterior), no início de junho p.p., o Relatório de Regulação da ANACOM, relativo a 2022 (pág. 158), resumia a informação publicada no website da ANACOM (que se pode consultar aqui) relativa ao referido processo.

De acordo com os dados fornecidos pelo Regulador, tratou-se de uma das coimas mais elevadas de sempre, que, com o acréscimo das custas se aproximará de um milhão de euros e que foi aplicada num processo envolvendo 49 infrações relacionadas com o serviço de postos públicos. Porém, até à publicação da notícia na imprensa, nada se dizia sobre a data em que os factos ocorreram e que sabemos agora ter sido 2016.

Esta foi, aliás, a segunda vez que a ANACOM sancionou a MEO por infrações relacionadas com o completamente obsoleto e quase extinto serviço de postos públicos. É curioso notar também que, no ano em iniciou este processo, a ANACOM concluiu um outro sobre a mesma matéria em que aplicou uma coima única de 200 mil euros (Cfr. Relatório de Regulação 2016, p. 137). Desta vez, tratou-se de um total de seis infrações – que não se sabe exatamente quando terão ocorrido. Sabemos, contudo, que a decisão foi impugnada e que o processo terminou em 2021, com a confirmação pelo Tribunal da Relação de Lisboa da absolvição da arguida decidida pelo TCRS.

Um outro dado interessante é que estas foram apenas duas, de um total de 23 ocasiões, em que, nestes anos, o Regulador aplicou coimas pelo incumprimento de normas relativas ao Serviço Universal de comunicações.

Aliás, acerca deste conceito, não deixa de ser interessante refletir sobre o seu ciclo de vida: nasce e ganha corpo num debate apaixonado sobre nobres objetivos que se propõe servir; depois de acalmada a discussão e implementado o serviço, vai desaparecendo gradualmente por manifesto desinteresse dos consumidores, mas, quando se volta a discutir a sua utilidade, acaba por se reinventar e renascer das próprias cinzas. Pelo meio, criam-se mecanismos complexos para o seu financiamento e a ANACOM vai vigiando a sua implementação. Assim, em 2015 (dois processos), 2016, 2020, 2021 (um processo por ano) e 2022 (14 processos), foram instaurados processos relativos a Postos Públicos, Tarifa Social de Internet e a outras matérias do Serviço Universal.

A fase administrativa do processamento das contraordenações no setor das comunicações pela ANACOM, incluindo as comunicações postais, segue o processo definido no Regime Quadro das Contraordenações do Setor das Comunicações (Lei n.º 99/2009, de 04 de setembro).

Este Regime Quadro aplica-se não só às infrações de normas da LCE, como das normas de alguns diplomas avulto relativos a aspetos particulares do quadro regulatório das comunicações eletrónicas (e.g., serviços de audiotexto), bem como, às sanções previstas pela violação de um conjunto alargado de outros diplomas relacionados que incluem comunicações postais, difusão, construção, acesso e instalação de redes e infra-estruturas (ITED) e, também, radiocomunicações.

Este Regime Quadro aplica ainda subsidiariamente o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que instituiu o ilícito de mera ordenação social e o respetivo processo, para além do Código de Processo Penal. Grosso modo, o processamento das contraordenações pelo Regulador equivale à fase de inquérito em processo penal, o que não pode deixar de se ter em conta quando, como faremos de seguida, se analisam os prazos de pendência que, no julgamento atrás referido, tanto incomodaram o Ministério Público.

O problema não é o facto deste processo em concreto ter levado seis anos a ser concluído, o que consideramos relevante é que, nos anos de 2017 a 2020, os prazos médios de pendência ultrapassaram os quatro anos, embora se registe uma melhoria desde então.

Trata-se de uma questão relevante a considerar tendo em conta o aumento esperado de litigância para futuro. Face à lei anterior, a LCE de 2022, não só aumentou em 19% o número total de infrações puníveis, como, também passou a considerar 98% delas como graves ou muito graves para efeitos de determinação da coima. Na realidade, atualmente, 57% de todas as contraordenações previstas na LCE, são agora puníveis com coimas entre 20.000€ e 5.000.000€. O impacto da aplicação destas normas em matérias como os prazos de pendência não deixarão certamente de se fazer sentir.

De acordo com as linhas orientadoras da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ), um dos indicadores que os Estados Membros devem apresentar sobre o seu sistema judicial é o Disposition Time (DT Indicator). Este mais não é do que a expressão em dias de calendário do rácio entre os processos que foram resolvidos e os que ficaram pendentes para o período seguinte (tipicamente o ano civil), ou seja, é uma estimativa da duração média de cada processo.

Este indicador foi desenvolvido primordialmente para avaliar a gestão de processos em fase judicial e, como tal, entre nós, assim é usado pela Direção-Geral da Política de Justiça. Porém, nada impede que se aplique a mesma metodologia à análise da eficiência na gestão dos processos nas fases anteriores que – no caso vertente – é da responsabilidade das entidades reguladoras que, como a ANACOM, estão encarregadas de aplicar os regimes sancionatórios contraordenacionais. Sublinhamos, uma vez mais, naturalmente, que estas fases pré-judiciais têm exigências próprias que as fases de julgamento e de recurso já não têm, e.g., em matéria de recolha física de meios de prova.

Nos anos de 2015 a 2022, a ANACOM indicou ter processado um número total de 4008 autos de notícia, dos quais 1924 deram origem a processos de contraordenação, tendo os remanescentes sido arquivados (38,9%).Figura 3 – Volume de autos de notícia e de processos instaurados (em nº de processos).  Fonte: ANACOM, Relatórios de Regulação (Análise Macedo Vitorino).

Tendo como base os dados disponibilizados pela ANACOM relativamente quer aos autos de notícia recebidos em cada ano, quer aos processos transitados e concluídos tornou-se possível fazer uma estimativa do DT Indicator.

Assim, uma estimativa preliminar permitiu-nos apurar que, em termos médios, o DT Indicator dos processos contraordenacionais geridos pela ANACOM se fixou em 1133 dias, ou seja, 37,8 meses. Em 2019, portanto, no período pré-COVID, este indicador atingiu 1865 dias, ou seja 62,2 meses, ou, ainda, dito de outra forma, um pouco mais de cinco anos. Tratando-se de uma duração média, não surpreende, portanto, que, um processo que levou a uma das 10 maiores coimas que a ANACOM aplicou, tenha levado perto de 73 meses a ser concluído.

De forma a permitir uma visão mais completa dos prazos de processamento das contraordenações, será ainda necessário juntar os dados relativos à impugnação judicial em primeira instância, neste caso, para o TCRS que, para o mesmo período apresentam um Disposition Time médio de 89 dias.

Também aqui é necessário ter em conta dois elementos adicionais: o primeiro é que dos processos decididos pela ANACOM, 1071 (83%) resultaram em condenação em coima e sanções acessórias e que, destas, houve recurso para o TCRS em apenas 21% dos casos (cfr. figuras seguintes). O segundo aspeto, tem a ver com o facto de que os dados relativos à duração dos processos no TCRS dizem respeito a todos os processos (e não apenas aos oriundos da ANACOM).

À falta de informação qualitativa mais detalhada, não é possível retirar conclusões sobre as causas que justificam estes prazos extremamente dilatados da fase administrativa do processamento das contraordenações, sobretudo por comparação com os de recurso em primeira instância. Trata-se de um debate que está por fazer, preferencialmente com mais elementos que seria interessante obter.

Tendo em conta que a nova LCE, publicada em 2022, agravou consideravelmente o quadro sancionatório, a que se junta um aumento expressivo nos últimos anos do montante de coimas aplicadas (ainda à luz da anterior versão da LCE), é inequívoco que, como foi referido nas alegações do Ministério Público, prazos desta dimensão geram incerteza e têm um efeito pernicioso num mercado em que os operadores atuam num mercado em que a uma pressão concorrencial cada vez maior se junta um peso regulatório crescente.

 

2023-06-09

Joana Fuzeta da Ponte, advogada sénior da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião sobre sobre «Os Desafios da Nova Realidade do Teletrabalho», publicado hoje, a 9 de Junho de 2023.

Depois da implementação “forçada” pela pandemia Covid-19, muitas empresas optaram por manter o regime de teletrabalho, adaptando-o à realidade da sua organização.

A adoção deste regime, que já é uma realidade desde março de 2020, traz, naturalmente, novos desafios com a necessidade de implementação de diferentes regras, procedimentos e, acima de tudo, cautelas que têm de ser adotadas para, por um lado, garantir os principais interesses das empresas e, por outro lado, os direitos dos trabalhadores.

E de que desafios estamos a falar?

Desde logo, o teletrabalho suscita questões relacionadas com a adoção de meios de vigilância e controlos não admissíveis por lei, mas que são muitas vezes utilizados por parte das empresas. Embora, em regra, sejam inadmissíveis e caso sejam aplicados sujeitem as empresas a coimas cujos valores são muito elevados (podendo ultrapassar os €20 milhões), há quem continue a insistir na sua utilização. Um desafio complexo a resolver, mas que terá, certamente, de ser uma solução que, mais do que passar pela aplicação de coimas deverá permitir a utilização de meios de teletrabalho que garantam a privacidade do trabalhador.

Têm também sido suscitadas questões em torno do pagamento de despesas associadas ao teletrabalho. É expectável que, muito em breve, seja definido um valor máximo relativamente ao qual o pagamento de uma compensação de teletrabalho será isento de tributação caso sejam previstas em acordo entre as partes. Mas e se tal não acontecer? Pois, caso assim seja as empresas continuarão a ter dificuldades em saber quanto e quando devem pagar aos trabalhadores as designadas “despesas adicionais” pela prestação da atividade em teletrabalho. Para minimizar este problema, julga-se que deve ser adotado no seio da organização um Regulamento Interno que fixe procedimentos claros e objetivos a seguir pelos trabalhadores que pretendem reivindicar a despesa, bem como prazos a cumprir pela empresa para aprovação e pagamento da despesa.

Como também não poderia deixar de ser, naturalmente, que a lei expressamente prevê a obrigatoriedade de serem fornecidos instrumentos para a prestação em teletrabalho por parte da empresa. Mas de que instrumentos estamos a falar? Um trabalhador que utilize, regulamente, um computador pode exigir um equipamento com caraterísticas mais avançadas? Ou será que a empresa é obrigada a facultar-lhe um monitor e uma secretária? Consideramos que no próprio acordo de teletrabalho podem ficar definidos os instrumentos que as partes acordam que devem ser disponibilizados, tal como em sede de Regulamento Interno. No entanto, caso tal não aconteça, julgamos que deverá ser feita uma avaliação do caso concreto, procurando perceber quais os instrumentos realmente necessários para que um trabalhador médio desempenhe determinadas funções, não tendo a entidade empregadora o dever de fornecer tudo aquilo que o trabalhador solicite.

Por fim, e embora os desafios não se esgotem naturalmente nos aqui referidos, muita questão tem suscitado a necessidade de o teletrabalhador não ser “incomodado” no seu período repouso. Também para obviar a este desafio, nomeadamente quando com o envio de emails o trabalhador se possa sentir obrigado a responder a quaisquer horas, julgamos que as empresas devem adotar um “disclaimer” nos seus emails durante o período de repouso, no qual seja dada nota de que a mensagem não tem caráter urgente, pelo que o trabalhador não se deve sentir obrigado a responder fora do seu horário de trabalho.

Muitos mais desafios poderão vir a colocar-se o que será, certamente, um sinal positivo pois, tal só não aconteceria se o teletrabalho deixasse de ser uma realidade.

Em suma: o grande novo desafio está em encontrar um equilíbrio para responder às novas questões que o teletrabalho suscita à medida que é implementado, o que apenas se conseguirá tendo em consideração, por um lado, a conciliação entre a vida profissional e privada dos trabalhadores e, por outro lado, os interesses económicos das empresas.

2023-04-20

Marco Claudino, Advogado e Consultor da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião no Jornal de Negócios, sobre «O IRS dos Municípios e dos Contribuintes não é do Fisco», publicado hoje, a 20 de abril de 2023.

No passado dia 14, o Jornal de Negócios noticiou que o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em decisão recente, considera que o Fisco se encontra a calcular de forma errada a participação variável do IRS que aos municípios cabe como receita.

Em breves palavras, desde 2007 os municípios têm direito, em cada ano, a uma participação variável de 5% do valor do IRS dos contribuintes residentes no seu território. E é exatamente variável porque podem os municípios decidir partilhar, no todo ou em parte, esse valor com os próprios munícipes. A Lei refere ainda que este valor é calculado sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no artigo 78.º do Código do IRS.

O Fisco tem entendido que embora integrem a coleta, os rendimentos não englobados devem ser excluídos do valor a considerar, uma vez que, sendo tributados autonomamente, não se lhes pode aplicar deduções. É uma tese que, com o devido respeito, não tem sustentação nem na letra da Lei (que refere claramente coleta) nem no seu espírito – trata-se de uma partilha de recursos entre o Estado e os Municípios na proporção de 95-5 e não numa dispensa de 5% por parte do Estado nos termos que a AT entende.

O impacto desta decisão é de várias centenas de milhões de euros. No Orçamento do Estado para 2023 o valor do IRS repartido para municípios e contribuintes ascende a 650 milhões de euros (ou seja, foi considerada uma coleta de 13 mil milhões de euros). Por seu turno, nos documentos de execução orçamental de 2021 – ano relativo aos valores distribuídos em 2023 – pode verificar-se que a receita do IRS é de 14.5 mil milhões de euros. Numa estimativa conservadora, se aplicada a fórmula de cálculo validada pelo CAAD teremos seguramente pelo menos uma diferença de mil milhões de euros no valor da coleta a considerar para esta repartição, o que equivalerá a 50 milhões de euros (correspondente a 5%) subtraídos aos municípios e aos contribuintes.

A Autoridade Tributária (AT) não recorreu da decisão. Embora, como dissemos, concordemos com o CAAD, entendemos que teria sido benéfico a existência de recurso. Na verdade, tratando-se, em nosso entender, de matéria com relevância jurídica e social fundamental, caberia inclusivamente recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo.

A análise pelo STA permitiria alcançar segurança jurídica e uniformidade. E, não menos importante, previsibilidade relativamente à atuação futura da AT.

Temos, reconhecemo-lo, receio que a decisão de não recurso da AT tenha tido como objetivo limitar danos ao caso concreto, mantendo para os demais processos a mesma interpretação.

Por isso, é essencial que o Sr. Ministro das Finanças, a quem cabe a tutela da AT e da Direção-Geral do Orçamento e a preservação de uma relação de confiança e lealdade com os contribuintes, não ignore este caso.

Não tendo havido recurso por parte da AT, as liquidações do IRS deste ano devem já ver refletidas a interpretação sufragada pelo CAAD. Mas mais, a AT de forma oficiosa não pode deixar de proceder à revisão das liquidações do IRS dos contribuintes residentes nos municípios que dispensaram no todo ou em parte o IRS respetivo. Deve fazê-lo relativamente aos últimos quatro anos (prazo para revisão dos atos tributários). No que concerne aos municípios, deve ser, desde já, determinada a retificação do Mapa do Orçamento do Estado que prevê as transferências para aquelas autarquias locais.

Adicionalmente, devem os municípios ser compensados relativamente ao valor indevidamente retido nos últimos anos e que lhes cabia por direito.

Caso assim não aconteça, o Estado, para além de não ser merecedor de confiança, estará a convidar

Municípios e Contribuintes à litigância e assim congestionar os já saturados tribunais administrativos e fiscais.

Esperemos que o Sr. Ministro das Finanças, que não pode dizer que não sabe nem conhece o caso, tome as decisões que se impõem!

2023-04-12
Estela Guerra

As novas alterações ao Código do Trabalho, aprovadas pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, entram em vigor, na grande maioria, no dia 1 de maio de 2023.

É também nessa data que entra em vigor a polémica norma relativa à proibição de recurso ao outsourcing nos 12 meses posteriores a um processo de despedimento coletivo ou de extinção do posto de trabalho. De acordo com esta regra, de futuro, as empresas não poderão, no prazo de um ano, recorrer a serviços externos para assegurar o trabalho de quem foi objeto de despedimento coletivo ou de extinção do posto de trabalho.

Até ao último minuto empresas e confederações patronais tiveram a esperança de que esta norma ficasse pelo caminho e não constasse da Lei que aprova a Agenda do Trabalho Digno.

Sucede que isso não se verificou. A norma consta do novo artigo 338.-ºA da Lei n.º 13/2023, sob o título “Proibição do recurso à terceirização de serviços”. Apesar de aprovada, esta norma levanta muitas dúvidas legais, podendo, no limite, ser de constitucionalidade duvidosa.

Para a Assembleia da República esta é uma norma que visa proteger e combater a precariedade laboral; já para as empresas e confederações patronais esta é uma norma altamente limitadora da liberdade empresarial, chegando mesmo a ferir o direito constitucional da liberdade de iniciativa económica.

Ora, nos tempos que correm e que irão correr - em que as empresas necessitam de cada vez mais fazer restruturações empresariais -, proibir as empresas de recorrerem ao outsourcing pode ser contraproducente para o reforço da respetiva competitividade e eficiência. O recurso ao outsourcing permite que as empresas diminuam custos, pois quando uma empresa tem necessidade de fazer um despedimento (coletivo ou uma extinção de um posto de trabalho) e externalizar serviços é, claramente, salvo em situações de fraude, porque necessita de reduzir custos operacionais, sejam estes humanos ou em matéria de gestão de infraestruturas ou de equipamentos.

Proibir que uma empresa recorra à externalização de serviços numa altura em que atravessa dificuldades financeira pode ser, em muitos casos, uma medida penalizadora e prejudicial para as empresas e que, indiscutivelmente, limita a sua liberdade de atuação e de reorganização, podendo suscitar-se dúvidas quanto à sua constitucionalidade.

Além disso, a norma levanta ainda muitas dúvidas interpretativas.

Desde logo, ficamos na dúvida se a proibição afeta apenas as atividades principais da empresa ou se afeta qualquer tipo de serviços (como limpeza, refeitório ou segurança interna)? Em nossa opinião, a ser proibido, só o deveria ser para as atividades principais da empresa.

Surge ainda a dúvida do que acontece aos processos de outsourcing que ocorram em momento anterior a um despedimento coletivo (por exemplo uma semana antes)? Ou até mesmo do que acontece a este despedimento coletivo “colado” a um processo de outsourcing? É lícito ou ilícito? Se interpretamos literalmente a lei, a resposta é de que em momento anterior ao despedimento não há qualquer limitação de recurso ao outsourcing.

Questiona-se ainda se esta proibição de recurso ao outsourcing abrange os acordos de revogação que tenham tido por base o despedimento coletivo ou a extinção do posto de trabalho? Em nossa opinião, estes acordos não entram na equação e, portanto, a existência destes acordos de revogação não impede o posterior recurso ao outsourcing.

Em face do cenário exposto, acreditamos que, das duas uma: ou a norma relativa à proibição de outsourcing é objeto de fiscalização sucessiva junto do Tribunal Constitucional ou, não sendo e mantendo-se a atual norma nos exatos termos, teremos um incremento de litígios laborais.

Aguardamos, com expetativa, os próximos desenvolvimentos.

2023-02-28

Ana Paula Santiago, Associada Sénior da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião na revista digital ADVOCATUS da ECO, sobre as «Novas Medidas Contra o Trabalho Temporário Injustificado», publicado hoje, a  28 de fevereiro de 2023.

A “Agenda do Trabalho Digno” aprovada na Assembleia da República a 10 de fevereiro veio introduzir diversas alterações ao regime do trabalho temporário no Código do Trabalho, das quais destacamos as principais: (i) limite de renovações dos contratos de trabalho temporário a termo certo, (ii) limite de cedências de trabalho temporário, e, (iii) clarificação quanto às condições de trabalho relativas ao trabalhador temporário.

Uma das principais alterações foi a redução do número máximo de renovações dos contratos de trabalho temporário a termo certo, das atuais seis para quatro, estabelecendo a regra: “O contrato de trabalho temporário a termo certo não está sujeito ao limite de duração e, enquanto se mantiver o motivo justificativo, pode ser renovado até quatro vezes.”

Mas mais, ao fim de quatro anos de cedências temporárias pela mesma empresa ou outra que com esta se encontre em relação de domínio, de grupo, ou mantenha estruturas organizativas comuns, a empresa é obrigada a integrar o trabalhador no seu quadro de pessoal, convertendo-se o contrato de cedência temporária em contrato de trabalho por tempo indeterminado.

Foram também clarificadas as condições de trabalho relativas ao trabalhador temporário passando a constar no Código do Trabalho que o trabalhador temporário “tem direito a férias, subsídios de férias e de Natal, bem como outras prestações regulares e periódicas, em dinheiro ou em espécie, a que os trabalhadores do utilizador tenham direito por trabalho igual ou de valor igual”.

As alterações ao regime de renovação e duração dos contratos de trabalho temporário não se aplicará aos contratos celebrados a termo resolutivo celebrados antes da entrada em vigor da nova lei, no que respeita à sua admissibilidade, renovação e duração e à renovação dos contratos de trabalho temporário.

Destas alterações ao regime do trabalho temporário parece resultar que o legislador da “Agenda do Trabalho Digno,” procurou uma aproximação ao regime do trabalho a termo certo, designadamente, ao estabelecer limites máximos mais reduzidos de renovações, de duração e de sucessão de contratos de cedência temporária, diminuindo a flexibilidade das empresas ao recurso a este tipo de contratação temporária.

Não obstante estas novas regras serem mais rigorosas e exigentes para as empresas de trabalho temporário, ainda assim, na prática, poderão revelar-se insuficientes para combater o recurso injustificado ao trabalho temporário, e consequentemente, virem a revelar-se infrutíferas como bandeira contra o trabalho precário.

Por agora resta aguardar pela sua implementação pelas empresas, para podermos comprovar ou não os efeitos dissuasores destas novas medidas no recurso fraudulento ao trabalho temporário.

Joana Fuzeta da Ponte, advogada da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião na revista digital Advocatus da ECO, sobre o «A implementação da semana de quatro dias de trabalho», publicado hoje, 17 de janeiro de 2023.

Cada vez mais as empresas têm centrado a sua preocupação no aumento da produtividade dos trabalhadores.

Tendencialmente, no âmbito de uma perspetiva tradicionalo aumento da produtividade estava diretamente relacionado com a laboração dos trabalhadores de forma mais intensa, ou seja, produzindo mais no mesmo número de horas.

Essencialmente, durante a pandemia, os trabalhadores passaram a estar cada vez mais disponíveis 24h por dia, sete dias por semana, aumentando o número de horas trabalhadas e a sua disponibilidade constante para responder a emails e chamadas telefónicas.

Significou isto maior produtividade? Ou, por outro lado, será esta a visão atual do conceito de produtividade? Não necessariamente.

Atualmente constata-se que trabalhadores mais descansados trabalham melhor (de forma mais produtiva). Ou seja, é possível ser mais produtivo trabalhando menos horas. Tanto assim é que muitos países iniciaram recentemente a implementação da semana de quatro dias de trabalhocomo em diversas empresas.

Portugal não fica de parte, pois está prestes a iniciar um Programa-Piloto Semana de 4 dias, a realizar durante seis meses em empresas do setor privado, com o objetivo de avaliar os impactos desta modalidade de gestão do horário laboral, nas empresas, nos trabalhadores e nas suas famílias.

O Programa-Piloto assenta na prestação de atividade apenas em quatro dias, sem redução salarial e com redução do número de horas semanais dos trabalhadores, durante seis meses, e tem obrigatoriamente de abranger a grande maioria dos trabalhadores. As empresas que se candidatem fazem-no de forma voluntária e reversível, não tendo qualquer comparticipação financeira do Estado, que apenas providencia suporte técnico e administrativono apoio da transição.

Até ao final deste mês, as empresas interessadas devem manifestar o seu interesse em participar no projeto, estando a seleção dos participantes planeada para o próximo mês.

Os meses de março até maio serão de preparação da implementação do projeto que se iniciará em junho durante o período de seis meses.

Para avaliar a eficácia do projeto serão medidos, do lado dos trabalhadores, os efeitos no bem-estar, qualidade de vida, saúde física e mental, bem como a satisfação de prestação de atividade na empresa e intenção de nela permanecer.

Do lado das empresas serão essencialmente objeto de análise a produtividade, competitividade, taxa de absentismo e capacidade de recrutamento.

Estaremos de facto a viver uma revoluçãoda gestão da organização de trabalho?

Talvez. Só os próximos tempos irão determinar o sucesso (ou insucesso) da experiência piloto. 

2022-12-27

Joana Fuzeta da Ponte, advogada da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião na revista digital Advocatus da ECO, sobre o «Reforço das relações coletivas de trabalho e da negociação coletiva na nova legislação laboral», publicado hoje, 27 de dezembro de 2022.

A Agenda do Trabalho Digno, que visa alterar o Código do Trabalho, tem como um dos seus principais objetivos conferir maior dinamismo à negociação coletiva, bem como reforçar as relações coletivas de trabalho.

Isto porque é reconhecido o papel desempenhado pela negociação coletiva na promoção dos direitos dos trabalhadores, na adaptação das empresas à competitividade e na criação de paz social. Por outro lado, a negociação coletiva foi também fortemente impactada pela pandemia provocada pela doença Covid-19.No âmbito desta temática, a Agenda do Trabalho Digno prevê direitos coletivos para os economicamente dependentes. As pessoas em situação de dependência económica passam a ter direito: (i) à representação dos seus interesses socioprofissionais por associação sindical e por comissão de trabalhadores, ainda que delas não possam ser membros; (ii) à negociação de instrumentos de regulamentação coletivas de trabalho negociais, específicos para trabalhadores independentes, através de associações sindicais; (iii) à aplicação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho negociais já existentes e aplicáveis a trabalhadores, nos termos neles previstos.

A Agenda do Trabalho Digno admite também o exercício da atividade sindical na empresa ainda que não existam trabalhadores sindicalizados, mediante condições específicas aplicáveis e desde que não se afete o normal funcionamento da atividade produtiva.

A escolha da convenção coletiva pode não ser possível se o trabalhador já se encontrar abrangido por portaria de extensão e a emissão da portaria de extensão afasta a aplicação de convenção que tenha, eventualmente, sido escolhida.

A par das referidas alterações, o novo regime prevê que em caso de denúncia de convenção coletiva a parte destinatária pode requerer ao Presidente do Conselho Económico e Social arbitragem para apreciação da fundamentação da denúncia, a qual suspende os seus efeitos, impedindo a convenção de entrar em regime de sobrevigência.

As medidas previstas na Agenda do Trabalho Digno permitem, por outro lado, reforçar de modo inovador o papel dos instrumentos já existentes na lei, e nomeadamente das decisões resultantes de arbitragem necessária, tornando-os mais efetivos na prevenção de vazios de cobertura da negociação coletiva, reforçando-se, ainda, o papel da arbitragem na apreciação da fundamentação invocada para a denúncia de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho

Cada vez mais, as alterações pretendem caminhar para uma negociação coletiva que, quando equilibrada e bem-sucedida, garante a adaptabilidade da legislação laboral às especificidades do setor ou da empresa e o aumento da produtividade empresarial.

Em suma: sendo reconhecida a importância da negociação coletiva, a Agenda do Trabalho Digno procurou dinamizar a sua utilização, criando novas regras nesse sentido.

2022-12-27
Guilherme Dray

Guilherme Dray, sócio da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião no jornal Expresso sobre o «Algorithm Management e a Necessidade de Humanização da Gestão», publicado no dia 23 de dezembro de 2022.

A gestão algorítmica do trabalho veio para ficar.

Seja ao nível da seleção de trabalhadores, em matéria de distribuição de tarefas ou em sede de cessação do contrato de trabalho, o recurso a algoritmos para substituir a ação humana e para efeitos de exercício do poder de direção por parte das empresas é um hoje um dado incontornável.

Em matéria de seleção de trabalhadores, os algoritmos já são atualmente utilizados no habitualmente denominado employment background check. Ou seja, os algoritmos são utilizados para selecionar perfis de candidatos a emprego com base em determinados critérios, tais como, o facto de alguém estar (ou não) empregado, as suas qualificações, a Universidade onde estudou, a idade, o género, a nacionalidade, o local de residência, o passado criminal ou mesmo questões mais íntimas, como sejam as convicções políticas, religiosas, a orientação sexual ou a situação familiar do candidato(a) a emprego.

Em matéria de execução do contrato de trabalho, os algoritmos são utilizados para distribuir tarefas, criar escalas e horários de trabalho, avaliar a performance do trabalhador, criar ratings sobre o respetivo desempenho, determinar a sua progressão (ou não) na carreira e a atribuição de prémios de produtividade, bem como, em particular no âmbito das plataformas digitais, para desconectar e afastar o trabalhador caso o seu desempenho não seja considerado o mais adequado.

Em matéria de cessação do contrato de trabalho, os algoritmos já são utilizados para efeitos de seleção dos trabalhadores a despedir, seja em processos de despedimento por extinção do posto de trabalho, seja em despedimentos coletivos, com base em parâmetros que medem, nomeadamente, a assiduidade e o absentismo do trabalhador.

Os algoritmos vieram para ficar e a digitalização e automação do trabalho parece irreversível.

Podem ser benéficos, em matéria de gestão laboral, por garantirem maior eficiência e objetividade nas decisões, mas podem também ser perniciosos, discriminatórios e profundamente injustos na abordagem dos temas acima referidos.

Por essa razão, atenta a falta de transparência que lhes está associada, a falta de controlo humano que lhes está subjacente e, acima de tudo, a injustiça que pode resultar do facto de no futuro sermos exclusivamente “controlados” e “geridos” por algoritmos, diversas instâncias internacionais têm reclamado a necessidade de os regulamentar e “humanizar”, garantindo justiça, transparência e responsabilização.

A União Europeia, na proposta de Diretiva do Parlamento e do Conselho sobre a melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais, de 9/12/2021, preconiza a regulamentação dos algoritmos, através das seguintes regras:

- Artigo 6.º: estabelece um dever de transparência, determinando que o empregador deve informar o trabalhador sobre a utilização de algoritmos para controlar, supervisionar ou avaliar o seu desempenho;

- Artigo 7.º: impõe a necessidade de as empresas garantirem o controlo humano sobre a gestão algorítmica, devendo ser assegurada a existência de um profissional capacitado e com autoridade que fique responsável por controlar as decisões tomadas por algoritmos;

- Artigo 8.º: confere aos trabalhadores o direito de reclamarem perante uma pessoa qualificada da empresa sobre decisões tomadas com base em algoritmos, podendo pedir-lhe explicações e requerer a sua eventual revisão.

A nível nacional, a “Agenda Para o Trabalho Digno”, que deverá ser aprovada ainda este ano na Assembleia da República e que altera o Código do Trabalho, também consagra novas regras sobre o tema, que deverão entrar em vigor em 1 de janeiro de 2023, a saber:

- Artigo 3.º, n.º 3: estabelece que os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho apenas podem dispor sobre gestão algorítmica se o fizerem em sentido mais favorável ao trabalhador;

- Artigo 24.º: determina que as decisões tomadas com base em algoritmos não podem ser discriminatórias;

- Artigo 106.º: estabelece que o empregador deve informar o trabalhador sobre os parâmetros, as regras e as instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisões sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como as condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da atividade profissional; e

- Artigo 424.º: estabelece que as comissões de trabalhadores têm também o direito de ser informadas sobre as mesmas questões.

A ideia é clara: mais do que assistir ao seu crescimento sem nada fazer, importa regular a gestão algorítmica, de modo a combater a sua opacidade, a impedir práticas discriminatórias e a garantir a revisão humana das decisões tomadas com base em algoritmos.

O ano de 2023 vai trazer novidades sobre esta matéria. E as novidades apontam num sentido único: garantir a “humanização” da gestão empresarial.

Este artigo foi publicado no Jornal de Negócios no dia de hoje, 20-10-2022. 

Depois de um prolongado e complexo processo legislativo, a Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018[1], também conhecida por “Diretiva ECN+”, foi (tardiamente) transposta pela Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto.

A Lei n.º 17/2022 introduz significativas alterações à Lei da Concorrência (aprovada pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio), assim como aos Estatutos da Autoridade da Concorrência (“AdC”). Essas alterações são aplicáveis aos procedimentos desencadeados a partir de 16 de setembro de 2022, data da sua entrada em vigor.

Para uma melhor perceção do contexto da Diretiva ECN+ e da (tão) aguardada lei nacional de transposição, deve salientar-se que a Diretiva ECN+ apenas se aplica aos artigos 101.º (práticas restritivas da concorrência) e 102.º (abusos de posição dominante) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), que são suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros.

A aplicação destas regras de concorrência é assegurada pelas autoridades nacionais da concorrência (“ANC”), como é o caso da AdC, em paralelo com a Comissão Europeia, ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 1/2003[2], integrando a designada “Rede Europeia da Concorrência”.

A Diretiva ECN+ visa assegurar que as ANC dispõem de garantias de independência, de meios e de competência de execução e aplicação das coimas necessárias de modo a conseguirem aplicar, de forma eficaz, os artigos 101.º e 102.º do TFUE, mas acabará necessariamente por influenciar o Direito nacional da concorrência, em particular, quando este seja aplicado em paralelo, o que ocorre na maioria dos casos.

O objetivo fundamental da Diretiva ECN+ é a harmonização processual e procedimental, fruto do modelo descentralizado trazido pelo Regulamento (CE) n.º 1/2003 e de uma crescente integração (não isenta de críticas) do “public enforcement” das regras de Direito da concorrência entre os 27 Estados-membros.

De entre as alterações introduzidas à Lei da Concorrência, destacam-se as alterações relativas:

(i)  Ao reforço dos poderes de investigação da AdC, em particular no âmbito dos poderes de busca, exame, recolha e apreensão, incluindo buscas domiciliárias;

(ii) Aos prazos de recurso de decisões finais, que passam de 30 dias úteis para 60 dias, e ao efeito dos recursos de decisões sancionatórias, que terão efeito suspensivo quando o visado efetue o pagamento do valor total da coima ou de uma caução no valor de 50% da coima;

(iii) À prescrição do procedimento por infração, que passa a suspender-se pelo prazo que a decisão da AdC for objeto de recurso judicial, sem que exista uma limitação temporal, o que constitui uma alteração, no mínimo, discutível, por excessiva e desproporcional, e em violação dos princípios de segurança e certeza jurídica; e

(iv) Às coimas, passando a aplicar-se um limite máximo de 10% do volume de negócios total, a nível mundial (e não nacional), das empresas infratoras.

Nem todas as alterações introduzidas resultam da transposição da Diretiva ECN+, verificando-se, em alguns aspetos, um extravasar do previsto na Diretiva.

Assiste-se a uma reforma do regime de concorrência vigente, que surge, quase como despercebida (pelo menos, para já), suscitando diversas dúvidas ao nível da sua certeza e segurança jurídica. Antecipa-se assim um aumento da litigância, com um efeito contraproducente em relação ao objetivo último de integração do “public enforcement” das regras de concorrência nos diversos Estados-membros.

É, por isso, muito importante que as empresas se preparem para fazer face a estas novas alterações, com a adoção de programas de compliance no âmbito do Direito da concorrência, que devem consciencializar e sensibilizar os seus colaboradores para as práticas permitidas e proibidas, com uma enumeração de “To-Do and To-Don’t” e realçar as possíveis consequências de uma infração, nomeadamente, sanções financeiras, danos reputacionais, perda de clientela e de mercado, responsabilidade contraordenacional e criminal, incluindo dos seus órgãos de direção. Mas não só!

As empresas devem estar preparadas para reagir em casos de inspeções (dawn raids) da AdC, conhecendo quais são os seus direitos e deveres, que meios de tutela têm à sua disposição, que informação deve e pode ser transmitida à AdC.

Só um programa de compliance robusto, mas simultaneamente simples, direto e acessível, conseguirá responder eficazmente a estas exigências e às novas alterações, que terão repercussões, quer, na parte de deteção, bem como na parte de repressão de infrações, com um reforço dos poderes da AdC e um previsível aumento das coimas aplicáveis. 

Poderá, assim, ser caso para dizer que, a coberto da transposição da Diretiva ECN+, a Lei da Concorrência tornar-se-á uma “Lei da Concorrência +”.