2020-11-17

Publicado na Advogar.

A ideia da justificação de faltas por morte de animais de companhia motivou inúmeras mensagens a anunciar matanças do porco, investimentos milionários em peixinhos de água doce e poemas de amizade a galinhas poedeiras. Nas piadas instantâneas, nós somos imbatíveis. Mas não haverá matéria digna de reflexão?

No início de outubro, a ex-deputada do PAN Cristina Rodrigues apresentou dois Projetos de Lei [1] que, por um lado, estendem o regime de faltas para assistência à família aos animais de companhia e, por outro, visam garantir o direito ao luto dos trabalhadores através da justificação de falta de “até um dia por falecimento de animal de companhia do agregado familiar registado no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC)”.

A serem aprovadas, as medidas seriam pioneiras. De facto, no R.U. existe uma petição[2]pela implementação de um dia de luto pelos animais domésticos, criada por uma trabalhadora despedida por faltar depois da morte do seu cão. No entanto, a iniciativa ainda não resultou em qualquer ato legislativo. Há também empresas nos E.U.A. que concedem dias de luto pelos animais de companhia, mas por ser política interna e não por decorrer da lei. Em Itália, um Tribunal julgou justificadas as faltas de uma trabalhadora que vivia sozinha e cujo cão foi sujeito a uma cirurgia. Mas foi o (exigente) quadro legal relacionado com a assistência aos animais que sustentou a Decisão italiana, não existindo uma norma laboral de dispensa do trabalho para aqueles casos.

Em Portugal, além das previstas na lei, são justificadas quaisquer outras faltas autorizadas ou aprovadas pelo empregador.  Contudo, embora já não sejam juridicamente qualificados como coisas, o seu abate seja proibido e o seu mau trato ou abandono sejam já matéria crime, parece longínquo o reconhecimento legal de um animal de companhia como um membro “equiparado ao agregado familiar”, ainda que apenas em certas matérias. Efetivamente, apesar de mais de metade das famílias portuguesas terem um animal de estimação e de os Tribunais já reconhecerem o desgosto pela sua perda como digno de tutela efetiva, e mesmo estando o proprietário de um animal obrigado a assegurar o seu bem-estar– o que inclui a garantia de acesso a cuidados médico-veterinários -duvida-se que se agende para breve uma discussão sobre o tema, atendendo, sobretudo, a três ordens de razão.

A primeira tem que ver com questões procedimentais: os Projetos de Lei foram apresentados por uma Deputada não inscrita - que como tal, não tem poder de agendamento de iniciativas próprias. A segunda razão prende-se com o contexto atual. Sem desvalorizar o papel que os animais de companhia podem assumir num cenário pandémico com milhares de pessoas votadas ao isolamento, a verdade é que a sociedade está agora focada na saúde das pessoas pelo que, mal ou bem, a questão não parece estar na ordem do dia. E a terceira razão está relacionada com o quadro legal referente à justificação das faltas e, em especial, à relevância que é atribuída pelo CT - importando a “hierarquia” definida pelo CC - a cada membro da família. E é em relação a este último ponto que poderá ser útil alguma reflexão, não nos parecendo, de todo, insofismável nem a “ordem de importância” que a lei atribui aos elementos da família, nem tão pouco que pertença à esfera exclusiva do legislador a fixação dessa mesma “ordem” ou “hierarquia”.  

Ou seja: atualmente, o CT permite que o trabalhador falte justificadamente até 5 dias consecutivos por falecimento de cônjuge, unido de facto ou em economia comum, parente ou afim no 1.º grau na linha reta. Pelo falecimento de outro parente ou afim na linha reta ou no 2.º grau da linha colateral, pode faltar até 2 dias consecutivos. A Lei não prevê a justificação de faltas após o falecimento de tios nem de primos.

Estas faltas justificadas não são remuneradas mas, em tudo o mais, são consideradas como prestação efetiva de trabalho, não sendo contabilizadas para a verificação do dever de assiduidade, cuja violação pode consubstanciar justa causa de despedimento.

Ora, atendendo à diversidade de relações familiares, aos laços de afetividade e proximidade característicos da atualidade – que diferem substancialmente dos laços tradicionais, em vigor quando o CC foi publicado – não seria de equacionar um sistema em que os trabalhadores passassem a designar os membros da família relativamente aos quais preferiam que esses direitos fossem exercidos? Ou porque não pensar numa redação ainda mais lata, em que o trabalhador tivesse direito a um número concreto de dias por ano, e cujo intuito fosse a utilização por morte de entes próximos?

Algo semelhante acontece, por exemplo, na província de Ontário, no Canadá: os trabalhadores têm atualmente direito a até 10 dias de licença de “emergência pessoal”, podendo ser usada para “questões urgentes relacionadas com um determinado número de pessoas identificadas pelo trabalhador” (“listed individuals”). Passando o CT a ter uma redação semelhante - desde que coadunável com obrigações legais relacionadas, por exemplo, com os filhos - seria o trabalhador, e não a Lei, a identificar os familiares (ou as pessoas fora da família) por quem precisaria de se ausentar.

Numa outra redação da lei, em Alberta, os trabalhadores têm direito a até 5 dias por ano para cumprir "responsabilidades familiares em relação a um membro da família” – sem que seja, sequer, designado pelo trabalhador qual o membro ou membros familiares mais próximos.

E existem até Estados que conferem até 7 dias de licença sem vencimento durante o ano para ”assuntos de responsabilidade familiar” – o que, julga-se, poderá incluir a situação de morte ou assistência a qualquer familiar, ou até, numa situação limite, o enterro de um animal de companhia.

O conceito de “família” e as relações de proximidade têm vindo a evoluir e a transformar-se, e ao Direito compete acompanhar essas transformações. Um tio pode ser a figura paterna da família, um primo pode ser quase irmão e um cão pode ser, de facto, - feliz ou infelizmente – o mais importante, ou até o único ser vivo que existe na vida de alguém. E, sem comparar animais com humanos, seria, talvez, importante, cada um escolher o luto que sente que tem que fazer.



 

 

2020-11-11
Guilherme Dray

Publicado no ECO.

Já muito foi escrito sobre a vitória de Joe Biden/Kamala Harris. No essencial, tem-se sublinhado a vitória da moderação sobre o radicalismo; do caráter pessoal sobre a falta do mesmo; da verdade sobre a mentira; da normalização institucional sobre o caos governativo; da pacificação da sociedade sobre o clima belicista; da tolerância sobre o racismo; e do multilateralismo sobre o isolacionismo internacional de Donald J. Trump.

Mas pouco ainda foi escrito sobre a política de emprego que Joe Biden vem prometendo. E o que promete, não é pouco – é um repristinar das políticas laborais de Franklin Delano Roosevelt e do National Labor Relations Act, a mais importante lei laboral americana (de 1935), segundo a qual a negociação coletiva deve ser encorajada e promovida.

Eis o que Biden promete em matéria laboral:

  • Reforço do sindicalismo, a quem se deve a luta por melhores condições de trabalho e a criação da classe média americana, que é, segundo Biden, o “backbone” da economia americana. Defende, por isso, o aumento do número de trabalhadores sindicalizados (10,5% da força de trabalho em 2020, que confronta com 35% em 1950);
  • Promoção da negociação coletiva, quer no setor privado, quer no setor público (de onde tem estado afastada), incluindo até nas relações de franchising e para os trabalhadores independentes da “gig economy”;
  • A negociação coletiva deve apostar na partilha de lucros entre os acionistas, os gestores e os trabalhadores – “when you work hard, you share in the prosperity your work created”;
  • Reforço da agenda do trabalho decente, que assegura que os trabalhadores são tratados de forma digna, devendo receber os salários, os benefícios e a proteção que merecem;
  • Aumento do salário mínimo nacional para 15U$USD/h em todos os estados;
  • Responsabilização individual dos gestores que violem leis laborais, designadamente no caso da contratação de falsos trabalhadores independentes;
  • Criação de uma lei federal que adote a presunção de existência de contrato de trabalho para os que trabalham nas plataformas digitais, à semelhança da lei californiana “ABC”, de forma a terminar com o que apelida de “epidemic misclassification”;
  • Reforço das agências de fiscalização em matéria de emprego – Department of Labor e Equal Employment Opportunity Comission – através da contratação de mais inspetores;
  • Defesa do direito à greve, incluindo greves intermitentes e mesmo “boicotes” secundários, que são formas de luta, não contra o empregador, mas contra empresas que são clientes do empregador e que “esmagam” a respetiva política de preços, fazendo-o baixar salários;
  • Expansão da defesa dos direitos laborais dos trabalhadores agrários e dos trabalhadores domésticos, através da reforma do Fairness for Farmworkers Act e do Domestic Workers’ Bill of Rights.

As medidas acima enunciadas têm um forte cunho ideológico e assentam na atuação do Estado, mesmo contra a vontade das empresas. A sua aprovação e eficácia, consequentemente, ficam por provar. Como se costuma dizer: ver para crer.

Mas há um ponto distintivo, para além dos acima enunciados. Trata-se da aposta na “compliance laboral”.

A compliance traduz o cumprimento da lei por parte das empresas, bem como a observância de boas práticas empresariais. Envolve questões de transparência, não discriminação, privacidade, concorrência leal, questões éticas, ambientais e boas práticas laborais. Ora, o que o novo Presidente eleito parece querer fazer, é convidar as empresas a cumprirem as leis laborais e a irem para além destas, fazendo depender a celebração de contratos públicos e a atribuição de fundos estatais à adoção de boas práticas empresariais.

Parece que a famosa “corporate social responsability” verá, finalmente, uma concretização legal com significado, a propósito da “compliance laboral”. E na medida em que venha a ser institucionalizada nos Estado Unidos, já se sabe: a compliance vem para ficar.

A ser assim, o Direito do Trabalho volta a mostrar o seu pioneirismo em temas sociais.

2020-10-21
Guilherme Dray

Publicado no ECO.

Portugal está empenhado em promover a transição para a economia digital. Para além de termos um ministério especificamente dedicado a este tema, o Ministério da Economia e Transição Digital, foi recentemente aprovado o Plano de Ação para a Transição Digital, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2020, de 21 de abril.

Além do mais, temos uma ótima rede de banda larga, que cobre todo o território nacional, excelentes estruturas rodoviárias, elevados índices de segurança e um sistema nacional de saúde que – pelo menos por ora – tem sabido responder à pandemia da doença Covid-19. Mas temos mais. Temos uma costa atlântica de excelência, aldeias e cidades do interior prontas a receber novos residentes e uma Reserva Mundial de Surf (Ericeira) que é um fator de atração para milhares de nómadas digitais.

Os nómadas digitais são, acima de tudo, jovens (e menos jovens) literados e com autonomia financeira, que trabalham em regime de teletrabalho e que o fazem a partir de diferentes partes do Globo, alternando os países por onde se fixam temporariamente. Trata-se de uma tendência cada vez mais marcante e que tem sido incentivada e suportada por diversas empresas globais, em especial as tecnológicas. Ao contrário do turismo tradicional, os nómadas digitais fixam-se em determinados países por períodos prolongados, adaptando-se à cultura local. Trazem conhecimento, inteligência, uma nova forma de estar e – claro – potenciam o consumo interno. Alugam casas, animam o comércio local, ocupam espaços de co-working e têm capacidade financeira para o fazer. Estão a trabalhar e têm independência financeira, sendo pagos pelas empresas internacionais para quem trabalham.

A Ericeira é um exemplo – neste momento, centenas de nómadas de várias partes do globo, que por força da pandemia passaram a trabalhar em trabalho remoto, estão a viver e a trabalhar a partir dali para diferentes empresas e países, aproveitando o clima, a natureza oceânica, o surf e os produtos locais. Mas fazem-no a título informal, sem qualquer enquadramento governamental. Não sei, mesmo, se o Governo português tem consciência deste movimento.

Ora, há diversos países que estão atentos a esta tendência e que estão a trabalhar com profissionalismo para atrair nómadas digitais.

Numa recente reportagem do Washington Post, são sinalizados alguns países que criaram regimes especiais para atrair nómadas digitais dos Estados Unidos, durante o período da pandemia.

Antigua e Barbuda, por exemplo, criou o “Nomad Digital Residence Program”, que concede vistos até 2 anos aos nómadas com rendimento igual ou superior a 50.000$USD por ano. O custo da emissão deste visto especial ascende a 1500$USD por pessoa, 2.000USD$ por casal e 3.000USD$ por família de três ou mais elementos. Com base neste visto, os nómadas podem entrar e sair do país o número de vezes que quiserem, sob condição de manterem residência neste país e de apresentarem testes negativos da doença Covid-19.

No mesmo sentido, a pequena ilha Aruba lançou em setembro o “One Happy Workation”, que cria um “remote work visa”. O visto tem a duração de 90 dias e os nómadas devem garantir, durante esse período, o alojamento em residências ou hotéis. O Governo promove pacotes de alojamentos em condomínios ou residências, equipadas com wifi, zonas comuns e programas turísticos e desportivos associados (mergulho, vela, yogga, etc).

Na Europa, o primeiro visto para nómadas digitais foi aprovado na Estónia, no auge da pandemia criou o Digital Nomad Visa. Por força deste novo visto, o Governo atribui autorizações de residência até 1 ano, exigindo como requisito que os nómadas tenham um salário mínimo mensal de 3.000€. O novo visto foi criado em junho e, segundo o Governo estónio, desde então receberam milhares de pedidos de visto provenientes dos Estados Unidos, Canadá, Rússia e Ásia.

Em julho, foi a vez da Georgia, que criou um programa especial (“Remotely from Georgia”) para atrair nómadas digitais de 95 países, por períodos iguais ou superiores a 180 dias. Para o efeito, exige-se que os mesmos tenham rendimentos mínimos mensais de 2.000€.

Portugal, para já, nada fez nesse sentido, pelo menos de forma estruturada e integrada. Mas pode e deve fazê-lo.

Se consideramos a transição digital como um dos instrumentos essenciais da estratégia de desenvolvimento do país e se queremos ser uma referência neste domínio, devemos reter todos aqueles que nos últimos anos têm vindo ao nosso país assistir ao Web Summit, mesmo os extracomunitários.

A pandemia é inimiga do turismo e das viagens de curta duração, mas pode potenciar a fixação de todos aqueles que passaram a trabalhar de forma remota, à escala global.

Sendo a aposta no consumo interno uma medida de combate à crise económica que se avizinha, porque não tentar (também) esta via?

2020-10-08

A realização inteiramente virtual de audiências arbitrais é relativamente recente, tendo conhecido um crescimento exponencial com a pandemia Covid-19.

A disseminação do novo Coronavírus obrigou à imposição de medidas restritivas na circulação e no contacto humano, mas já antes haviam sido dados alguns passos no sentido da virtualização dos processos arbitrais, nomeadamente através do chamado Online Dispute Resolution (ODR), uma modalidade de resolução alternativa de litígios entre consumidores e fornecedores de bens ou prestadores de serviço, através de plataformas online.

Sem embargo, até ao advento da pandemia, grande parte das arbitragens internacionais eram realizadas presencialmente, com recurso ocasional à videoconferência para inquirição de algumas testemunhas cuja deslocação ao lugar da arbitragem fosse excessivamente onerosa ou impraticável (por exemplo, em caso de limitações de locomoção ou doença).

O evento da pandemia e as medidas de emergência e de contingência que sobrevieram um pouco por todo o mundo trouxeram a suspensão provisória das atividades de resolução de litígios através dos tribunais estaduais e arbitrais.

Retomada a atividade judicial e arbitral, surgiu a necessidade do recurso intensivo às novas tecnologias para a realização de audiências dos tribunais. Por um lado, por ser necessário recuperar dos atrasos na resolução de litígios e ao mesmo tempo que se verifica um aumento dos litígios; por outro lado, pela importância da proteção da saúde pública, obedecendo às restrições de circulação e do contacto entre pessoas.

As restrições impostas pelos Governos para combater a propagação do novo Coronavírus afetaram processos arbitrais já em curso, impedindo a sua continuação presencial e obrigando a uma avaliação custo-benefício entre a realização imediata das audiências agendadas (e em muitos casos já preparadas, pelas partes e pelo tribunal arbitral) por videoconferência e à suspensão dos procedimentos por tempo indeterminado. Mais, o novo contexto trouxe dúvidas quanto à conveniência, tramitação e localização efetiva de novos processos arbitrais virtuais.

Nesta nova realidade, a circunstância de as arbitragens internacionais terem lugar através de plataformas virtuais – ao invés de um lugar físico, situado num determinado Estado – fez surgir novas questões no que diz respeito à definição da sede ou lugar da arbitragem.

Com efeito, no caso de uma audiência virtual, as partes e o tribunal podem estar fisicamente localizados em vários Estados, sendo certo que a existência de uma cláusula contratual de escolha da lei aplicável ao processo ou ao mérito da causa não constitui necessariamente um acordo das partes quanto ao lugar da arbitragem.

Na ausência de acordo entre as partes, o lugar da arbitragem é, em vários instrumentos internacionais (como a Convenção de Nova Iorque de 1958), um critério para a determinação da lei substantiva e processual aplicável à causa e com especial relevância para a arbitrabilidade do litígio, validade da convenção de arbitragem, executoriedade das decisões arbitrais e possibilidade de emissão de ordens preliminares pelo tribunal arbitral.

É, por isso, importante limitar ao máximo as incertezas no âmbito da realização de audiências arbitrais online, em que pode estar em causa a definição da respetiva sede e, consequentemente, da lei aplicável ao processo e ao mérito da causa.

Essa limitação deve ser realizada através da inserção de um clausulado expresso, ab initio, na convenção de arbitragem integrante do contrato principal ou posteriormente em documento autónomo. Neste clausulado, devem as partes definir:

(i) Que as audiências arbitrais decorrerão (desde o seu início ou a partir de determinado momento) por videoconferência, através de uma determinada plataforma virtual;

(ii) Que para os devidos efeitos o processo arbitral se considerará realizado num determinado local.

Se a primeira cláusula será relativamente linear, já a segunda poderá conter um nível de detalhe variável, em conformidade com a complexidade ou a relevância económica da arbitragem, podendo as partes optar por mencionar expressamente a relação entre a sede convencionada e a lei aplicável ao foro e ao mérito da causa.

Por exemplo, para efeitos de realização de audiências por videoconferência, podem as partes redigir uma cláusula da seguinte forma simplificada: “As partes acordam que as audiências terão lugar através da Plataforma [nome da plataforma], por videoconferência”.

A essa cláusula deve acrescer uma outra, que estipule, por exemplo:

(i) “As partes fixam como lugar da arbitragem o Estado […]”; ou

(ii) “É fixado como lugar da arbitragem (ou /as partes estipulam como lugar da arbitragem ou /as partes consideram que o lugar da arbitragem é) o Estado […]. As leis substantivas e processuais do Estado […] regem o mérito da causa e o processo arbitral em tudo o que não for regulado pela lei escolhida pelas partes ou pelas regras do tribunal arbitral, incluindo, sem limitação, a executoriedade da decisão arbitral”.

Embora a realização virtual de audiências arbitrais seja relativamente recente, a sua predominância no contexto atual explica que alguns Centros de Arbitragem tenham já criado modelos de procedimento e de redação de cláusulas para arbitragens conduzidas virtualmente. Saliente-se, a título de exemplo, o Modelo da American Arbitration Association, as Guidelines da Câmara de Comércio Internacional ou o Protocolo de Seoul sobre videoconferência em arbitragem internacional da Korean Commercial Arbitration Board (KCAB).

A pandemia Covid-19 acelerou exponencialmente o recurso aos meios virtuais para a realização de audiências arbitrais. É expectável e desejável que as várias dificuldades implicadas no caráter virtual das audiências vão sendo ultrapassadas com a colaboração das partes, dos seus advogados, dos árbitros e dos centros de arbitragem.

Entre as formas de limitação das situações de incerteza atualmente existentes encontra-se a definição progressiva de regras especificamente aplicáveis às arbitragens conduzidas virtualmente, incluindo no que respeita à sede da arbitragem e a outras matérias, como o próprio procedimento, a produção de prova ou a garantia de um processo justo e equitativo.

Será assim possível, mesmo após o aligeiramento das medidas restritivas da circulação e do contacto entre pessoas, tirar o melhor partido da utilização das novas tecnologias nas audiências arbitrais, eliminando dúvidas e surpresas indesejáveis para as partes, maximizando a celeridade do processo e contribuindo para a diminuição do impacto ambiental das audiências presenciais, especialmente em arbitragens internacionais.

Publicado na Advogar

A pandemia COVID-19 foi responsável por alterações significativas no mundo laboral, entre as quais a criação de uma nova tendência: o alargamento do recurso ao regime do teletrabalho.

De um momento para o outro, o teletrabalho passou a ser a regra aplicável à maioria dos trabalhadores, que passaram a ter um “escritório em casa”.

A recente mudança originou um conjunto de questões sobre o tema, nomeadamente devido ao surgimento de diversos diplomas que contêm novas disposições sobre teletrabalho, e que passaram a consagrar novas normas, para além das que já se encontravam consagradas no Código do Trabalho.

Em sede de regulamentação do teletrabalho, cumpre ainda mencionar a sua importância em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho (“IRCT”). Isto, porque é reconhecido o papel cada vez mais importante desempenhado pelo diálogo social e pela negociação coletiva na procura de soluções em função da especificidade de cada área, de cada local de trabalho, de cada setor. Dados recentes referem inclusivamente um aumento muito significativo dos IRCTS publicados, destacando-se ainda um conjunto de novas matérias que deles passaram a constar, tais como: (i) tecnologias de informação e comunicação; (ii) direitos de personalidade; (iii) direito à desconexão; (iv) igualdade; (v) parentalidade e (vi) teletrabalho.

Paralelamente à implementação de novas formas de trabalho, a pandemia criou, certamente, condições para reforçar, em sede de negociação coletiva, a consagração destas matérias (v.g. teletrabalho).

No âmbito desta temática, não obstante estarem consagrados no Código do Trabalho os princípios e normas, a regulamentação deste regime passa a estar, atualmente, incluída na lista de matérias que devem ser objeto de aperfeiçoamento e de adequação ao setor e à atividade a que se aplicam, tendo em consideração a aplicação prática e massificada nos dias de hoje.

A regulamentação permite a consagração de disposições específicas referentes ao teletrabalho, associadas a diferentes matérias e em que a sua aplicação implica necessariamente: (i) direito à desconexão; (ii) definição de local de trabalho; (iii) regime de pagamento de despesas decorrentes de teletrabalho; (iv) duração do contrato de trabalho em regime de teletrabalho.

A consagração, em sede de convenção coletiva, de disposições específicas sobre as referidas matérias, não põe em causa, de forma alguma, as regras gerais do regime legal de teletrabalho, nomeadamente o princípio da igualdade de tratamento de trabalhador em regime de teletrabalho. O que está em causa é apenas a concretização dessas disposições, permitindo esclarecer dúvidas interpretativas que delas surjam, bem como a sua adequação ao setor e ao tipo de atividade a que se aplica o regime do teletrabalho.

Trata-se de aperfeiçoar a regulamentação de uma nova realidade que tende agora, cada vez mais, a consolidar-se e a desenvolver-se enquanto vetor da flexibilização laboral, e que assume uma importância crescente, fruto não só do incremento das tecnologias da informação e de comunicação, mas também da experiência de implementação prática pela qual a sociedade passou nos últimos meses.

2020-09-30
Guilherme Dray

Publicado no ECO

Ruth Ginsburg, Juíza do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América (EUA), recentemente falecida, foi uma ‘pathmarker’ do Direito, ou seja, alguém que ousou trilhar e apontar novos caminhos, em nome do bem comum. A sua forma de ver e conceber o Direito deixou uma marca. A sua escrita, simples e escorreita, foi marcante. O seu percurso enquanto defensora dos direitos civis, foi ímpar.

Defensora acérrima do princípio da igualdade entre homens e mulheres, Ruth Ginsburg colocou na agenda do Direito o discurso da justiça social e da igualdade de oportunidades.

E fê-lo desde cedo.

Aos treze anos de idade, em junho de 1946, assinalando a criação das Nações Unidas, Ruth publicou no Highway Herald, jornal da sua Elementary School 238 (Brooklyn), um editorial em que enuncia aqueles que eram, para si, os principais documentos da humanidade. Os “Dez Mandamentos”, por conter um código de ética; a Magna Carta (1215), por acolher o primeiro núcleo de direitos fundamentais dos cidadãos; o Bill of Rights (1689), por limitar o poder régio e atribuir competências ao parlamento; a Declaração de Independência dos EUA (1776), por afirmar a liberdade e a igualdade perante a lei; e a Carta das Nações Unidas (1945), por enunciar promover a paz internacional e a tolerância entre os povos.

Ao passo que os seus colegas escreviam sobre atividades desportivas, escolares e circenses, Ruth anunciava ao que vinha: ver e viver o Direito como um poderoso instrumento de justiça social.

Desde então, não mais deixou de o fazer.

Formada em 1959, torna-se Professora na Rudgers School of Law (1963) e, mais tarde, na Columbia University School of Law (1972), sendo igualmente diretora da ACLU Women´s Rights Project. Neste período, deve-se a Ruth Ginsburg a publicação de diversas obras sobre discriminação sexual e a organização do primeiro grande seminário jurídico sobre “O Direito e a Mulher”.

Segue-se a sua nomeação para Juíza do U.S. Court of Appeals do Distrito de Columbia (1980), feita pelo Presidente Jimmy Carter e, por fim, a sua nomeação para Juíza do Supreme Court (1993), feita pelo Presidente Bill Clinton.

Deve-se a Ruth Ginsburg grande parte do progresso jurídico em torno da igualdade de género. O sucesso da sua doutrina baseou-se numa linha clara e simples, assente em duas regras basilares: a desigualdade entre homens e mulheres é contrária aos valores fundamentais expressos na Declaração de Independência; e o Direito deve ser usado para construir uma sociedade mais justa e equilibrada.

Na sua biografia, My Own Words, conta-se que no dia em que a entrevistou como candidata a Juíza do Supremo, o Presidente Bill Clinton e o seu staff ficaram impressionados, não com a capacidade intelectual da candidata, que já conheciam, mas com a sua simplicidade, carácter e humanismo.

No final da conversa, os assessores do Presidente pediram a Ruth Ginsburg para ir para casa e aguardar por um eventual telefonema de confirmação, que deveria ocorrer ao final da tarde. O Presidente, todavia, foi assistir a um jogo das finais da NBA, que opunham os Chicago Bulls e os Phoenix Suns, o qual acabou por se tornar num dos jogos mais longos da história da NBA – 3h e 20m, depois de um triplo prolongamento. Ruth, que desconhecia as incidências do jogo, deu o caso como perdido.

Mas o telefonema do Presidente apareceu, já a noite ia longa.

No dia seguinte, no seu discurso de aceitação realizado no Rose Garden da Casa Branca, Ruth voltou a dizer ao que ia: trabalhar com os seus colegas do Supremo para promover “o progresso do Direito, ao serviço da sociedade”. E foi o que fez.

Deve-se a Ruth Ginsburg a evolução jurisprudencial do Supremo, que desde então não mais deixou de afirmar a doutrina da igualdade de oportunidades, própria de cidadãos livres e independentes.

O seu legado é incontornável: o Direito deve estar ao serviço da sociedade. Sem Direito, não há progresso, nem justiça social.

Compete agora às gerações mais novas saber honrar esta herança e defender o legado desta notável jurista.

Publicado no ECO.

A aplicação STAYAWAY COVID, desenvolvida pelo Instituto de Engenharia de Sistemas de Computadores, Ciência e Tecnologia (INESC TEC), em parceria com o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e as empresas Keyruptive e Ubirider, foi recentemente lançada e já conta com mais de um milhão de “downloads” nos sistemas operativos Android e iOS.

Esta aplicação, que é de instalação e utilização voluntárias, permite alertar os utilizadores para o risco de eventual contágio da doença COVID-19 quando o telemóvel do utilizador tenha estado a uma distância inferior a dois metros durante mais de 15 minutos do telemóvel de outra pessoa (também ela utilizadora da aplicação) a quem tenha sido depois diagnosticada a doença COVID.

A STAYAWAY COVID é uma aplicação de notificação da exposição individual a fatores de risco de contágio que, enquanto instrumento de saúde pública, tem por objetivo interromper a cadeia de propagação da doença COVID-19. Para atingir este objetivo, é, porém, necessário que o maior número possível de pessoas descarregue e utilize a aplicação e que insira a informação necessária no sistema, pois isto aumentará a probabilidade de vir a ser diagnosticado um maior número de pessoas, mesmo que ainda não apresente sintomas.

Antes de uma prévia utilização da aplicação, é, assim, legítimo que os seus potenciais utilizadores se questionem quanto à segurança desta aplicação e de que forma é assegurada a sua privacidade.

Como qualquer aplicação informática não é obviamente possível assegurar que a STAYAWAY COVID constitui uma aplicação 100% segura. Esta garantia ninguém poderá dar. Esta circunstância (que, diga-se, não valerá apenas para a aplicação STAYAWAY, mas para as aplicações em geral) não mitiga, de forma alguma, um potencial utilizador de fazer uma escolha consciente (entre instalar ou não a aplicação) e de tomar uma decisão informada de acordo com os riscos.

Embora a aplicação STAYAWAY COVID não aceda aos dados de identificação do utilizador (por exemplo, nome, morada, números de identificação, aplicações de redes sociais, etc.), nem recolha dados de localização do utilizador ou de terceiros (por exemplo, o local onde ocorreu o risco de contágio), isto não significa que a sua utilização não implique um risco de identificabilidade e de localização do utilizador.

A aplicação só funciona com a interface “Bluetooth Low Energy” (BLE) ativa, o que permite, de forma precisa, saber a localização de telemóveis, que emitem sinais que podem ser lidos por recetores instalados em qualquer local (por exemplo, na via pública). Logo, não é possível afirmar que não existe um risco de rastreamento da localização e das deslocações do utilizador por terceiros.

Esse risco existe, mas pode ser minimizado, uma vez que a aplicação funciona sob o sistema fornecido pela Google e a Apple, designado “Google-Apple Exposure Notification” (Sistema de Notificação de Exposição Google-Apple, “GAEN”), que permite utilizar um endereço aleatório sujeito a alterações periódicas para a comunicação dos chamados códigos “RPI” (“Rolling Proximity Identifiers”) e, deste modo, que não se estabeleça uma relação com um determinado telemóvel, impedindo o rastreamento.

Sucede que a Google e a Apple (dependendo do sistema utilizado para descarregar a aplicação, Android ou iOS) ficam com o verdadeiro endereço da interface de “Bluetooth” e não é verdadeiramente possível saber como estes colossos informáticos utilizam ou utilizarão a informação no futuro.

Neste âmbito, não há como negar que impera a opacidade do sistema. O código do sistema GAEN não é um código aberto, pelo que não se encontra sujeito a escrutínio, podendo, inclusive, ser alterado por livre iniciativa da Google ou da Apple. Os próprios criadores da aplicação STAYAWAY e o responsável pelo tratamento dos dados, que, no caso, é a Direção Geral da Saúde, tão-pouco detêm o controlo total dos dados dos utilizadores, uma vez que o tratamento é realizado pelo sistema operativo dos dispositivos móveis do utilizador.

O recurso à interface da Google e da Apple constitui, assim, um dos aspetos mais críticos desta aplicação. Isto não significa, porém, que não se deva instalar e utilizar a aplicação.

Em relação a outras aplicações que têm a informação agregada numa única base de dados, a aplicação STAYAWAY foi concebida para que a informação fique parcialmente descentralizada (o armazenamento das chaves e dos identificadores recebidos de terceiros com quem se teve um contacto de proximidade são remetidos para o telemóvel do utilizador), o que, do ponto de vista da proteção dos dados, permite mitigar o nível de afetação dos direitos dos utilizadores.

Um outro aspeto positivo a ter em conta é que a aplicação oferece garantias de não re-identificação dos dados através da pseudonimização (ou seja, os dados são tratados de forma a que deixem de poder ser atribuídos a um indivíduo específico, salvo através de informações suplementares que são mantidas separadamente e sujeitas a medidas técnicas específicas), o que dificulta a utilização de dados para outras finalidades e a sua interconexão com outros tratamentos de dados.

Além do mais, o apagamento automático dos dados e o seu curto prazo de conservação (14 dias) são também aspetos relevantes a considerar e que permitem mitigar, em caso de ocorrência de incidentes de segurança, o nível de afetação da privacidade dos seus utilizadores.

Dentro do atual contexto, é importante que cada utilizador possa fazer uma escolha informada e consciente antes de decidir instalar e utilizar a aplicação (mas isto não valerá apenas para a aplicação STAYAWAY, mas para as aplicações em geral), que tem, sem dúvida, os seus méritos e poderá vir a ser muito útil no combate à propagação da doença COVID, mas claro em conjunto com o cumprimento das restantes recomendações da Direção Geral da Saúde.

2020-09-16
Guilherme Dray

Publicado no ECO.

O jardim da democracia é frágil. Um eventual falhanço da Europa no combate à crise económica e social decorrente da atual pandemia, teria efeitos catastróficos. Promoveria a desconfiança no regime, daria azo ao reforço dos movimentos nacionalistas e faria perigar as democracias liberais.

O período de férias é sempre uma janela de oportunidade para se fugir da banalidade e procurar perspetivas literárias que ficcionam o futuro e que raramente se encontram na nossa esfera quotidiana.

The Jungle Grows Back (“A selva volta a crescer”), de Robert Kagan, tem esse potencial. É um livro que encerra uma análise geopolítica global e que – infelizmente – recorda que o período de paz que se vive na Europa, desde o final da II Guerra Mundial, é uma simples poeira histórica e não um dado adquirido.

Nesta obra, o autor analisa a mudança que se está a operar na ordem mundial e sublinha o risco (real) de falência das democracias liberais e da paz mundial.

A análise é simples e esclarecedora.

As democracias liberais assentam nas liberdades individuais. Liberdade de pensamento, de expressão e de associação e liberdade económica. Regem-se pelo Estado de Direito e seguem os valores da tolerância, igualdade e inclusão, assim como na separação entre o Estado e a Religião. As democracias liberais estão nos antípodas de regimes totalitários e autocráticos, que subjugam a liberdade individual em nome de um alegado interesse coletivo. E distanciam-se, também, dos Estados religiosos, nos quais Estado e Religião se confundem.

O que varia, nas democracias ocidentais, não é o primado da pessoa e a defesa da sua autodeterminação. O que varia, é apenas o modelo de Estado Social. No modelo anglo-saxónico, o Estado Social é mínimo; no modelo escandinavo, é máximo; nos países da Europa do Sul, situa-se a meio termo.

A preservação das democracias liberais repousa, acima de tudo, na força irradiante dos seus valores e na promoção do bem comum.

Mas não apenas.

As democracias liberais têm igualmente dependido da comunhão de valores entre a Europa e os Estados Unidos da América (EUA), país que desde a II Grande Guerra esteve sempre presente na defesa deste way of life. Numa primeira fase, deveu-se aos EUA a derrota da Alemanha nazi; durante a “guerra fria”, estiveram na linha da frente contra o modelo soviético; mais recentemente, após a queda do muro de Berlim, ajudaram a conter movimentos religiosos com pretensões militares, como o do Daesh.

Este caminho está a esgotar-se.

A filosofia do “America First” e a exaltação do isolacionismo deixam a Europa sozinha. A antes apregoada “Atlantic Community”, que apostava numa ordem democrática entre os EUA e a Europa Ocidental, foi praticamente posta de parte pela atual Presidência americana, que questiona a anterior ordem democrática. A Europa deixou de ser vista como um parceiro, e passou a ser compreendida como um competidor.

Este facto, aliado ao Brexit e ao crescimento de movimentos nacionalistas, deixa a União Europeia isolada e à mercê de dois gigantes que não seguem o nosso modelo e que têm (ambos) ambições expansionistas: a China e a Rússia.

É neste contexto que a crise pandémica, pelas repercussões económicas e sociais que encerra, tem de ser combatida pela União Europeia sem hesitações, através da preservação dos empregos e do modelo de vida europeu.

Um eventual falhanço neste domínio teria efeitos catastróficos. Promoveria a desconfiança no regime, fortaleceria os movimentos nacionalistas e faria perigar as democracias liberais.

Em Portugal, a defesa simultânea das empresas, do emprego e dos rendimentos é decisiva. E o aumento (com significado) do salário mínimo, é um sinal de esperança e de sustentabilidade do regime, em especial se resultar de um acordo em sede de concertação social. Mas devemos ir mais além. As elites e as grandes empresas deveriam colaborar voluntariamente no combate à crise, em sede de responsabilidade social, promovendo uma maior distribuição da riqueza e apostando no emprego dos jovens.

O jardim da democracia é frágil e deve ser preservado.

E a selva está ao virar da esquina.

Publicado na Advogar.

A pandemia COVID-19 foi responsável por diversas “revoluções” no mundo laboral, entre as quais a criação de uma nova tendência: o alargamento exponencial do recurso ao teletrabalho.

Da noite para o dia, o teletrabalho teve de ser implementado na grande maioria das empresas portuguesas, passando o trabalho a partir de casa a ser a regra, e não a exceção, conforme sempre havia acontecido. 

A recente mudança originou um conjunto de questões sobre o tema, entre as quais se encontram aspetos verdadeiramente importantes do teletrabalho, tais como, de quem será a responsabilidade pelo pagamento de despesas e custos, nos quais o trabalhador incorre para o exercício da sua atividade em teletrabalho? Mantém o trabalhador o direito ao pagamento das prestações retributivas que já auferia, relacionadas com determinadas  despesas?

Importa distinguir diferentes situações.

A legislação laboral estabelece a presunção, ainda que ilidível, de que os instrumentos de trabalho relacionados com o manuseamento de teconologias de informação constitui propriedade do empregador, motivo pelo qual este é o responsável pelas respetivas despesas de instalação, manunteção e utilização (artigo 168.º do Código do Trabalho).

Por outras palavras: se o contrato de trabalho nada indicar quanto aos instrumentos de trabalho, parte-se do princípio de que estes pertencem ao empregador, que assegura a sua instalação, manutenção e despesas de utilização.

E o que acontece a outras despesas/prestações retributivas que o trabalhador auferia? Mantêm-se em regime de teletrabalho?

O Código do Trabalho reafirma o princípio da igualdde de tratamento do trabalhador em regime de teletrabalho (artigo 169.º do Código do Trabalho), de forma a garantir que o teletrabalhador não é prejudicado relativamente aos trabalhadores subordinados contratados segundo o regime comum.

Tal não significa que um trabalhador que deixe de prestar a sua atividade em regime normal, passando a laboral em teletrabalho, mantenha todas as prestações retributivas que lhe eram devidas. Existem prestações que apenas se justificam em função de contingências específicas relacionadas diretamente com o exercício da atividade fora do domicílio habitual do trabalhador.

Quando assim aconteça (v.g subsídio de refeição), passando o trabalhador a trabalhar em regime de teletrabalho, não deverá auferir o seu pagamento, não existindo qualquer violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, nem do princípio da igualdade. Só assim não sucederá, se as partes tiverem estipulado o pagamento de tal subsídio mesmo em regime de teletrabalho.

Com a implementação do regime de teletrabalho de forma massificada, e tendo sido suscitadas questões diversas relacionadas com este tema, os tribunais foram já chamados a pronunciar-se.

Nesse sentido, o Tribunal Federal da Suiça condenou uma empresa de contabilidade ao pagamento parcial da renda de casa de um trabalhador que se encontrava em regime de teletrabalho, dado que este apenas arrendou um apartamento para poder ter condições de trabalhar em regime de teletrabalho, a pedido do empregador.

Tendo a empresa alegado não ter chegado a acordo com o trabalhador com a devida antecedência quanto ao tipo de apartamento a arrendar, e por isso não ter de fazer o pagamento, o tribunal, não concordando com o empregador, acrescentou ainda que o trabalhador deveria solicitar uma indemnização com efeitos retroativos, após deixar a empresa.

De acordo com a decisão do tribunal, é irrelevante o facto de o trabalhador arrendar ou não um apartamento maior, por exemplo, para trabalhar a partir de casa, de forma adequada. Os decisores estimaram uma retribuição mensal no valor de 150 francos suiços (€141,5) pelo pagamento da renda do trabalhador.

Decidiu o tribunal no sentido de condenação da empresa, uma vez provado que, sem o arrendamento do espaço, o trabalhador não tinha um local adequado para prestar a sua atividade em regime de teletrabalho, motivo pelo qual o mesmo era necessário para o adequado exerício da sua profissão.

Para o tribunal, e tendo em consideração que de acordo com a legislação aplicável, o empregador deve reembolsar o trabalhador por todas as despesas em que necessariamente incorra na execução do contrato de trabalho e que indiretamente beneficiem o empregador, ainda que estejam em causa despesas do trabalhador que também o favoreçam na sua vida privada, a empresa deveria ser condenada a comparticipar no pagamento da renda.

A legislação laboral portuguesa nada estabelece nesse sentido.

Certamente questões como estas surgirão também no nosso país, podendo, eventualmente, vir a ser objeto de legislação.

Em suma: o Código do Trabalho apenas prevê o pagamento de despesas relacionadas com a instalação e utilização de tecnologias de informação pelo teletrabalhador, sendo omisso em relação às restantes. Nada sendo estabelecido no contrato de trabalho quando a essas, certamente que diversas questões práticas irão surgir, e que terão de ser objeto de decisões jurisprudenciais e, quem sabe de novas disposições legais.

2020-07-22
Susana Vieira

O n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil (“CC”) foi introduzido em 2018 com o objetivo de proteger a estabilidade da habitação do arrendatário e impedir a especulação imobiliária. Estabelece que o arrendatário para habitação de parte de um prédio que não esteja em propriedade horizontal tem direito de preferência em caso de venda do arrendado em termos idênticos aos de um arrendatário de uma fração autónoma, com as seguintes condições:

  • o direito é relativo à quota-parte do prédio que corresponde à permilagem do arrendado e pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; e
  • a aquisição pelo arrendatário (e preferente) é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.

O direito de preferência do arrendatário não é uma novidade, pois existe desde 1924 e tem sofrido diversas alterações ao longo dos tempos.

Do mesmo modo, não foi a primeira vez que o Tribunal Constitucional (“TC”) foi chamado a pronunciar-se sobre a eventual inconstitucionalidade das normas que o estabelecem, pois fê-lo em 2000 e em 2016 quanto a uma outra norma (a alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do CC) e à questão de saber se o direito de preferência tem necessariamente (e apenas) de incidir sobre o arrendado. Em ambos os casos, o TC concluiu pela “neutralidade da Constituição” na matéria e, consequentemente, pela não inconstitucionalidade.

A norma acima referida, constante do n.º 8 do artigo 1091.º do CC, tem, porém, um alcance bastante distinto do anteriormente analisado pelo TC. Foi considerada inconstitucional pelo Acórdão n.º 299/2020, com base nos argumentos que procuraremos explicar de forma resumida.

Um direito de preferência sui generis

O TC começa por referir que a parte arrendada de um prédio que não está em propriedade horizontal não tem autonomia jurídica, pelo que não pode, desde logo, ser transmitida como uma fração autónoma.

Desta circunstância resulta um direito de preferência sui generis pelas seguintes razões:

  • embora o direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC possa ser exercido em caso de transmissão de todo o prédio não constituído em propriedade horizontal, apenas incide sobre a parte arrendada. O exercício do direito de preferência dará, assim, lugar à compropriedade do prédio, sendo atribuído ao arrendatário preferente o uso exclusivo da quota-parte do prédio que adquire e extinguindo-se o contrato de arrendamento;
  • ao contrário do que se verifica habitualmente nos direitos de preferência, o direito previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC não assegura igualdade de condições (“tanto por tanto”) em relação à transmissão do prédio pretendida pelo proprietário. Por um lado, porque o arrendatário apenas tem o direito de adquirir, e o proprietário tem apenas a obrigação de lhe transmitir, a parte arrendada do prédio e não o prédio na sua totalidade conforme pretendia o proprietário. Por outro lado, porque o preço da transmissão ao arrendatário é fixado em função da permilagem que a parte arrendada representa no prédio e não o preço do negócio pretendido pelo proprietário.

O direito à propriedade privada e o direito de preferência

No seu artigo 62.º, n.º 1, a Constituição consagra a garantia da propriedade privada, ao estabelecer que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”.

O TC tem entendido que o estabelecimento de direitos de preferência não afeta, por si só, o conteúdo constitucionalmente reconhecido ao direito de propriedade porquanto não afeta a posição subjetiva do proprietário.

Com efeito, o proprietário tem inteira liberdade para dispor do imóvel objeto de preferência, nos termos que bem entender – nomeadamente, quanto ao preço e às condições de pagamento - e dessa perspetiva ser-lhe-á indiferente, em termos económicos, vendê-lo ao preferente ou a um terceiro.

É certo que a preferência constitui uma limitação da propriedade e, do ponto de vista de quem vende, pode ser relevante, por exemplo, a maior ou menor solvabilidade financeira do adquirente. No entanto, salvo esta restrição à liberdade de escolha da contraparte e os custos económicos que lhe estão associados, o direito de preferência não limita de outro modo a posição jurídica do proprietário, pois o negócio não deixa de ser celebrado ainda que com um adquirente diferente.

Nestes termos, o TC tem entendido que, estando em causa a liberdade de escolha da outra parte do negócio mas não a liberdade de transmissão, a lei pode limitar tal liberdade, designadamente através da atribuição de um direito de preferência, atendendo à necessidade de proteger outro tipo de interesses sem que tal viole o disposto no artigo 62.º da Constituição.

O direito de preferência sui generis como limitação significativa do direito à propriedade privada

O TC considerou que as limitações decorrentes do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC não se reduzem à faculdade de escolher livremente a pessoa com quem poderá ser realizado o negócio e têm outras implicações. Com efeito, esta norma:

  • constitui uma dupla limitação da liberdade de transmissão do proprietário porque este fica impedido de transmitir a terceiros a totalidade do prédio (o negócio pretendido) e, uma vez manifestada pelo arrendatário a intenção de preferir, fica obrigado a transmitir-lhe a quota-parte ideal do prédio correspondente à permilagem do locado (um negócio que não pretendia, numa espécie de “compropriedade forçada”;
  • limita a liberdade de estipular as condições de venda, pois não permite ao proprietário estipular livremente a quota a vender ou o respetivo preço; e
  • limita a faculdade de gozo do imóvel porquanto atribui ao preferente o “uso exclusivo” da parte do prédio adquirida, dispensando o acordo unânime dos restantes comproprietários.

Conclui o TC que existem “limitações significativas ao direito fundamental de propriedade privada” e que “a afetação do direito à liberdade jurídica do proprietário, singular ou comum, pode causar prejuízos apreciáveis” dado que “o exercício do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º [do CC] é suscetível de interferir negativamente no ativo patrimonial do proprietário” e “pode contribuir para desvalorização muito significativa do prédio”.

O direito de preferência como dimensão do direito à habitação

Nos termos do disposto no artigo 65.º da Constituição “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

O direito à habitação é, assim, um direito fundamental constitucionalmente protegido.  No entanto, este direito não tem necessariamente de ser concretizado através da propriedade. Pode sê-lo também através do arrendamento e, nessa medida, o direito à habitação do arrendatário, que inclui a faculdade de aceder à propriedade do local arrendado por via do direito de preferência, constitui uma restrição do direito de propriedade do senhorio.

Esta restrição não é, porém, ilimitada e deve respeitar o princípio da proporcionalidade, uma vez que o direito de propriedade é um direito fundamental. Assim, as restrições ao direito de propriedade que decorrem do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC “têm que revelar-se meio idóneo, exigível e proporcional” para alcançar as finalidades pretendidas de promoção da estabilidade na habitação e impedimento da especulação imobiliária.

A limitação desproporcional do direito de propriedade

Neste âmbito, o TC considerou que:

  • o direito de preferência em questão não permite ao arrendatário o acesso imediato à propriedade plena do local arrendado mas apenas à compropriedade. O arrendatário necessitará sempre do acordo de todos os restantes comproprietários para transmitir ou hipotecar a “sua” quota-parte especificada do prédio e ficará na dependência destes para concretizar a quota que lhe corresponde.

Por outro lado, embora o arrendatário possa recorrer à ação judicial de divisão de coisa comum, existe o risco de o prédio não reunir as condições legais e administrativas para poder ser dividido ou de, na referida ação, e em virtude dos seus próprios mecanismos, não ser adjudicada ao preferente a quota-parte de que tem o uso exclusivo, perdendo-se “a especial ligação do arrendatário ao locado, que constituía, em parte, a justificação para que lhe fosse atribuído o direito de preferência em análise”.

  • para garantir a habitação própria do arrendatário, não era indispensável que o direito de preferência tivesse por objeto uma parte do prédio correspondente à permilagem do locado.

Em alternativa, a lei poderia impor ao proprietário a obrigação de, previamente à sua transmissão, constituir o prédio em propriedade horizontal. Embora houvesse a considerar os custos de constituição da propriedade horizontal, esta alternativa seria menos limitativa para o proprietário, pois permitiria que o objeto do direito de preferência coincidisse com o local arrendado e que a preferência fosse exercida em paridade de condições, ou seja, “tanto por tanto”.

  • a opção pela aquisição da quota-parte do prédio, correspondente ao arrendado, não salvaguarda o equilíbrio de interesses entre proprietário e arrendatário. Não só a preferência não é concedida em condições de igualdade em relação a quem iria adquirir a totalidade do prédio como sujeita o proprietário a alienar uma parte do prédio contra a sua vontade e priva os restantes comproprietários da utilização direta ou aproveitamento imediato de parte do imóvel (atribuído em exclusividade ao preferente).

Deste modo, as características sui generis deste direito de preferência desvalorizam a propriedade muito para além da liberdade do proprietário de escolher o seu contraente, e limitam o uso ou aproveitamento que os demais comproprietários poderiam ter e retirar da propriedade comum.

Estas limitações colocadas ao proprietário e aos comproprietários no interesse do arrendatário são excessivas, desrazoáveis e gravosas, na medida em que não permitem alcançar os objetivos que estão na sua base – proteger o interesse do arrendatário na estabilidade da sua habitação e impedir a especulação imobiliária.

O TC concluiu assim que “[a] ponderação entre a intensidade da intervenção e o peso da sua justificação, o interesse da estabilidade na habitação, tem como resultado que a preferência numa quota-parte do prédio, correspondente ao locado, ultrapassa os limites impostos pela proporcionalidade à determinação do conteúdo e limites do direito de propriedade” e que se trata de uma “intervenção na propriedade [que] excede a medida constitucionalmente adequada da vinculação social”, pelo que o direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC viola o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.