Publicado no ECO.
A ideia de “Corporate Social Responsibility” não deve servir apenas para abrilhantar a política de marketing empresarial e promover a respetiva marca corporativa. Deve, isso sim, servir para criar valor efetivo para outros agentes para além dos acionistas e da equipa de gestão, em especial para os consumidores, trabalhadores, fornecedores e comunidade local
No mesmo sentido, as associações patronais não devem servir apenas para exigir do Estado mais apoios e mais subsídios. Devem contribuir com soluções inventivas para minimizar a crise
À escala global, a resposta à crise tem vindo essencialmente do Estado.
Em Espanha, para evitar despedimentos e manter o nível do emprego, criou-se o Expediente de Regulação Tenporal de Emprego; em França, acionou-se o chômage partiel; na Alemanha, utilizou-se o kurzarbeit; em Portugal, adotou-se o Lay-Off Simplificado. Em todos os casos, o modelo usado é semelhante: Os contratos de trabalho suspendem-se ou reduz-se o período normal de trabalho e o Estado comparticipa no pagamento de parte do salário do trabalhador.
Este tem sido o modelo tradicional. E o que tem sucedido é um pouco isto: as empresas esperam que o Estado as subsidie, preferencialmente a fundo perdido. E as associações que as representam, por sua vez, limitam-se a reivindicar tais apoios.
É verdade que o Estado serve para proteger os seus cidadãos em caso de necessidade. Mas isso não significa que os empresários e respetivas associações não possam ser inventivos ou procurar soluções alternativas. É o que se espera, de quem é empreendedor. E é o que tem sido ensaiado noutras geografias, onde as empresas têm procurado reinventar-se.
A esse propósito, foi recentemente criado um novo conceito de partilha (sharing), neste caso de trabalhadores: o “Redeployment”.
Basicamente, o “Redeployment” baseia-se na economia de partilha B2B, através da qual as empresas partilham os seus recursos físicos e intangíveis. Ao manter os seus recursos e ativos totalmente utilizados, as empresas podem maximizar valor, gerar novas receitas, reduzir o desperdício e ampliar o seu impacto positivo na sociedade. E podem, claro está, evitar despedimentos coletivos. No caso dos trabalhadores, a partilha permite-lhes, querendo, manter-se ativos e realizar novas experiências de trabalho noutras empresas. Nesta lógica, as empresas que em tempos de crise têm excesso de mão-de-obra, cedem os seus trabalhadores às que excecionalmente estão com falta da mesma. Tudo isto, numa lógica de voluntariedade dos trabalhadores cedidos.
A título exemplificativo: as empresas que fabricam aviões e que estão atualmente com excesso de mão-de-obra, ao invés de promoverem despedimentos coletivos, cedem temporariamente os seus trabalhadores às que fabricam ventiladores para hospitais, que estão atualmente com falta de mão-de-obra. No final, os trabalhadores, ou regressam à empresa inicial, ou passam a trabalhar na cessionária. Com isto, mantêm o emprego e ganham novas competências.
Para o efeito, as associações patronais têm dado apoio, essencialmente ao nível da partilha de informação e da criação de plataformas online.
Por exemplo: a associação empresarial francesa Vénétis, que congrega 300 pequenas empresas, tem-se dedicado à partilha de trabalhadores entre os seus membros, com base no conceito de “tempo compartilhado”. A People + Work Connect, por sua vez, é uma plataforma lançada no auge da pandemia Covid 19 por empresas de consultoria americanas, que conta com mais de 265 empresas de 95 países. No total, esta plataforma já disponibilizou mais de 400.000 postos de trabalho.
Em ambos os casos, o conceito é o mesmo: A manutenção de empregos não é apenas uma tarefa do Estado. As empresas podem (e devem) partilhar informação, ajudar-se reciprocamente e apoiar os seus trabalhadores. São iniciativas destas o que se espera das empresas. E é o que se espera, acima de tudo, das associações e das grandes confederações patronais.
No seu discurso de inauguração, em 1961, John F. Kennedy disse uma frase lapidar: “não penses no que o teu país pode fazer por ti, mas no que podes fazer pelo teu país”. Talvez se possa fazer o mesmo repto às nossas associações patronais: não pensem apenas no Lay Off e nos subsídios que o país vos pode dar; pensem, acima de tudo, no que as vossas associações podem fazer pelo país, pelos trabalhadores e pelo bem comum.
Se o fizerem, têm mais legitimidade para pedir; se apenas pedirem, legitimam a subsídio-dependência, tão criticada pelos liberais e pelos verdadeiros empreendedores.
A sociedade empresarial, querendo, pode criar soluções inventivas e criativas para manter o nível de emprego. A economia e o país agradecem.
Publicado na Advocatus.
A descoberta da vacina contra a Covid-19 pode ser um fator decisivo para proteger a saúde pública. E pode ser importante, também, para recuperarmos a nossa liberdade de trabalho e de circulação. Mas é legítimo colocar-se a seguinte questão: Pode a vacina ser obrigatória? E pode uma empresa, por exemplo, recusar trabalho a quem não se vacine?
As questões acima enunciadas lidam com diferentes normas previstas na nossa Constituição: por um lado, o direito à proteção da saúde e o dever de a defender, cabendo ao Estado a incumbência de garantir a saúde pública (64.º); por outro lado, o direito da pessoa à integridade pessoal (25.º), ao livre desenvolvimento da personalidade (26.º) e à liberdade de trabalho (47.º).
A obrigatoriedade da vacina pode ser um imperativo de saúde pública, mas também pode atentar contra as pessoas que não querem ser vacinadas. Por um lado, ela joga a favor do bem comum. Por outro lado, pode ser atentatória das liberdades individuais.
É aqui que entra o Direito. Sempre que há necessidade de articulação de dois princípios tendencialmente opostos, importa promover a sua conjugação, segundo princípios de proporcionalidade, necessidade e adequação.
Havendo colisão de direitos, o Código Civil determina que os seus titulares devem ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (artigo 335.º). Estando em causa a compressão de direitos fundamentais, a Constituição determina que as restrições devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos (artigo 18.º).
É neste justo equilíbrio que se deve tratar este assunto.
Na medida que haja evidência científica de que as vacinas são realmente necessárias e seguras para conter a pandemia, ela pode ser obrigatória. Mas estando em causa uma limitação à liberdade individual, há que ser-se particularmente exigente na fundamentação e na forma de aprovação. Por um lado, a obrigatoriedade deve ser suportada na ciência e na saúde pública. Por outro lado, a sua aprovação deve ser levada a efeito por lei da Assembleia da República.
A obrigatoriedade da vacina e a sua admissibilidade foi, de resto, acolhida, no país das liberdades individuais, em 1905, pelo Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América, no caso Jacobson v. Massachusetts.
Na altura, face a um surto de varíola na cidade de Cambridge, o Estado do Massachusetts autorizou a vacinação obrigatória. Jacobson, Pastor de uma Igreja, recusou-se a ser vacinado, alegando que havia sido vacinado na sua própria infância (na Suécia) e que a vacina lhe tinha provocado graves problemas de saúde ao longo da sua vida. Por se ter recusado, foi-lhe aplicada a pena prescrita na lei: o pagamento de 5$USD. Jacobson recorreu desta decisão, invocado a sua liberdade individual e a 14ª Emenda Constitucional.
O Supremo Tribunal, numa decisão que passou a constituir um importante precedente judicial, concluiu que “a liberdade consagrada na Constituição não importa o direito absoluto de cada pessoa de estar, em todos os momentos e em todas as circunstâncias, totalmente livre de restrições”, e que “em toda a sociedade encarregada do dever de conservar a segurança de seus membros, os direitos do indivíduo em relação à sua liberdade podem, às vezes, sob a pressão de grandes perigos, estar sujeitos a restrições”.
Desde então, desde que ancoradas em motivos científicos e em leis razoáveis e proporcionais, as vacinas obrigatórias passaram a ser admitidas, em nome da saúde pública.
Seja como for, há duas notas finais a registar: a primeira, é a de que o incumprimento da obrigatoriedade nunca pode ter como consequência a vacinação compulsiva, contra a integridade física da pessoa. A consequência, ou passa pela aplicação de uma multa, ou por uma sanção indireta, como seja a restrição de acesso a serviços ou funções públicas. A segunda, é que sem uma lei que determine a obrigatoriedade da vacinação, as empresas não podem recusar o acesso ou a prestação de trabalho por quem não esteja vacinado.
Os “anti-vaccination movements” já começaram uma campanha nas redes sociais contra a vacinação obrigatória, na maior parte das vezes com recurso a teorias conspirativas e a fake news.
Também por esta razão, se o Estado quiser impor a vacinação obrigatória, convém que o faça de forma particularmente fundamentada e com muita pedagogia, sob pena de dar azo (ainda mais) ao crescimento de movimentos populistas.
Publicado na Advogar.
A igualdade de género está hoje consagrada na generalidade dos tratados e convenções internacionais e na generalidade das constituições dos Estados modernos. É um direito fundamental e um valor fundamental de desenvolvimento.
A igualdade de género significa, no essencial, que todos têm direito a igualdade de oportunidades e de tratamento e que ninguém deve ser privilegiado ou privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, do género.
A igualdade manifesta-se também no acesso ao emprego e nas condições de trabalho.
O mercado de trabalho atual pauta-se por um elevado dinamismo de novas formas de trabalho e emprego, transformações significativas nas relações de género, mas, em simultâneo, pela elevada assimetria dos indicadores de género entre mulheres e homens.
As assimetrias subsistem, apesar de se encontrarem consagradas na legislação laboral portuguesa diversas concretizações do princípio da igualdade, seja no acesso ao trabalho, seja ao nível da formação profissional e progressão na carreira; seja em sede de igualdade salarial
Perante o reconhecimento dessas diferenças, atualmente, as empresas encontram-se adstritas a um conjunto de obrigações relacionadas com a promoção da igualdade de género.
Desde logo a lei impõe uma proporção de pessoas de cada sexo designadas para cada órgão de administração e fiscalização. Nos termos da lei, esta proporção não pode ser inferior a:
(i) 33,3% em entidade do setor público empresarial, a partir de 1 de janeiro de 2018;
(ii) 20% em empresa cotada em bolsa, a partir de 1 de janeiro de 2018; e
(iii) 33,3% em empresa cotada em bolsa, a partir de 1 de janeiro de 2020.
Em segundo lugar, as entidades do setor público empresarial e as empresas cotadas em bolsa devem elaborar anualmente planos para a igualdade tendentes a alcançar uma efetiva igualdade de tratamento e de oportunidades entre homens e mulheres, promovendo a eliminação da discriminação em função do sexo e fomentando a conciliação entre vida pessoal, familiar e profissional, devendo publicá-los no respetivo sítio na Internet.
Acresce ainda a obrigação de promoção, por parte das empresas do setor empresarial do Estado, de elaboração de um relatório, a divulgar internamente e a disponibilizar no respetivo sítio na Internet, sobre as remunerações pagas a mulheres e homens, tendo em vista o diagnóstico e a prevenção de diferenças injustificadas naquelas remunerações.
Não obstante as referidas obrigações apenas respeitarem a um conjunto limitado de empresas, qualquer empresa pode (e deve) desenvolver e implementar um plano para a igualdade ou um relatório referente às remunerações dos seus trabalhadores.
A igualdade de género, em suma, deve fazer parte da política interna de “compliance” empresarial, de forma a que as empresas possam acrescentar valor à sua organização, enquanto instrumento de responsabilidade social.
A igualdade de género faz parte do ideal de vida societária dos países ocidentais.
O legislador tem feito a sua parte.
Compete agora às empresas, em nome da sua responsabilidade ética e social, fazerem-no também, não só cumprindo com as regras legais, mas (se possível) indo mais além, através da adoção voluntária de códigos de conduta que promovam a igualdade de oportunidades.
Publicado na Advogar.
A ideia da justificação de faltas por morte de animais de companhia motivou inúmeras mensagens a anunciar matanças do porco, investimentos milionários em peixinhos de água doce e poemas de amizade a galinhas poedeiras. Nas piadas instantâneas, nós somos imbatíveis. Mas não haverá matéria digna de reflexão?
No início de outubro, a ex-deputada do PAN Cristina Rodrigues apresentou dois Projetos de Lei [1] que, por um lado, estendem o regime de faltas para assistência à família aos animais de companhia e, por outro, visam garantir o direito ao luto dos trabalhadores através da justificação de falta de “até um dia por falecimento de animal de companhia do agregado familiar registado no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC)”.
A serem aprovadas, as medidas seriam pioneiras. De facto, no R.U. existe uma petição[2]pela implementação de um dia de luto pelos animais domésticos, criada por uma trabalhadora despedida por faltar depois da morte do seu cão. No entanto, a iniciativa ainda não resultou em qualquer ato legislativo. Há também empresas nos E.U.A. que concedem dias de luto pelos animais de companhia, mas por ser política interna e não por decorrer da lei. Em Itália, um Tribunal julgou justificadas as faltas de uma trabalhadora que vivia sozinha e cujo cão foi sujeito a uma cirurgia. Mas foi o (exigente) quadro legal relacionado com a assistência aos animais que sustentou a Decisão italiana, não existindo uma norma laboral de dispensa do trabalho para aqueles casos.
Em Portugal, além das previstas na lei, são justificadas quaisquer outras faltas autorizadas ou aprovadas pelo empregador. Contudo, embora já não sejam juridicamente qualificados como coisas, o seu abate seja proibido e o seu mau trato ou abandono sejam já matéria crime, parece longínquo o reconhecimento legal de um animal de companhia como um membro “equiparado ao agregado familiar”, ainda que apenas em certas matérias. Efetivamente, apesar de mais de metade das famílias portuguesas terem um animal de estimação e de os Tribunais já reconhecerem o desgosto pela sua perda como digno de tutela efetiva, e mesmo estando o proprietário de um animal obrigado a assegurar o seu bem-estar– o que inclui a garantia de acesso a cuidados médico-veterinários -duvida-se que se agende para breve uma discussão sobre o tema, atendendo, sobretudo, a três ordens de razão.
A primeira tem que ver com questões procedimentais: os Projetos de Lei foram apresentados por uma Deputada não inscrita - que como tal, não tem poder de agendamento de iniciativas próprias. A segunda razão prende-se com o contexto atual. Sem desvalorizar o papel que os animais de companhia podem assumir num cenário pandémico com milhares de pessoas votadas ao isolamento, a verdade é que a sociedade está agora focada na saúde das pessoas pelo que, mal ou bem, a questão não parece estar na ordem do dia. E a terceira razão está relacionada com o quadro legal referente à justificação das faltas e, em especial, à relevância que é atribuída pelo CT - importando a “hierarquia” definida pelo CC - a cada membro da família. E é em relação a este último ponto que poderá ser útil alguma reflexão, não nos parecendo, de todo, insofismável nem a “ordem de importância” que a lei atribui aos elementos da família, nem tão pouco que pertença à esfera exclusiva do legislador a fixação dessa mesma “ordem” ou “hierarquia”.
Ou seja: atualmente, o CT permite que o trabalhador falte justificadamente até 5 dias consecutivos por falecimento de cônjuge, unido de facto ou em economia comum, parente ou afim no 1.º grau na linha reta. Pelo falecimento de outro parente ou afim na linha reta ou no 2.º grau da linha colateral, pode faltar até 2 dias consecutivos. A Lei não prevê a justificação de faltas após o falecimento de tios nem de primos.
Estas faltas justificadas não são remuneradas mas, em tudo o mais, são consideradas como prestação efetiva de trabalho, não sendo contabilizadas para a verificação do dever de assiduidade, cuja violação pode consubstanciar justa causa de despedimento.
Ora, atendendo à diversidade de relações familiares, aos laços de afetividade e proximidade característicos da atualidade – que diferem substancialmente dos laços tradicionais, em vigor quando o CC foi publicado – não seria de equacionar um sistema em que os trabalhadores passassem a designar os membros da família relativamente aos quais preferiam que esses direitos fossem exercidos? Ou porque não pensar numa redação ainda mais lata, em que o trabalhador tivesse direito a um número concreto de dias por ano, e cujo intuito fosse a utilização por morte de entes próximos?
Algo semelhante acontece, por exemplo, na província de Ontário, no Canadá: os trabalhadores têm atualmente direito a até 10 dias de licença de “emergência pessoal”, podendo ser usada para “questões urgentes relacionadas com um determinado número de pessoas identificadas pelo trabalhador” (“listed individuals”). Passando o CT a ter uma redação semelhante - desde que coadunável com obrigações legais relacionadas, por exemplo, com os filhos - seria o trabalhador, e não a Lei, a identificar os familiares (ou as pessoas fora da família) por quem precisaria de se ausentar.
Numa outra redação da lei, em Alberta, os trabalhadores têm direito a até 5 dias por ano para cumprir "responsabilidades familiares em relação a um membro da família” – sem que seja, sequer, designado pelo trabalhador qual o membro ou membros familiares mais próximos.
E existem até Estados que conferem até 7 dias de licença sem vencimento durante o ano para ”assuntos de responsabilidade familiar” – o que, julga-se, poderá incluir a situação de morte ou assistência a qualquer familiar, ou até, numa situação limite, o enterro de um animal de companhia.
O conceito de “família” e as relações de proximidade têm vindo a evoluir e a transformar-se, e ao Direito compete acompanhar essas transformações. Um tio pode ser a figura paterna da família, um primo pode ser quase irmão e um cão pode ser, de facto, - feliz ou infelizmente – o mais importante, ou até o único ser vivo que existe na vida de alguém. E, sem comparar animais com humanos, seria, talvez, importante, cada um escolher o luto que sente que tem que fazer.
Publicado no ECO.
Já muito foi escrito sobre a vitória de Joe Biden/Kamala Harris. No essencial, tem-se sublinhado a vitória da moderação sobre o radicalismo; do caráter pessoal sobre a falta do mesmo; da verdade sobre a mentira; da normalização institucional sobre o caos governativo; da pacificação da sociedade sobre o clima belicista; da tolerância sobre o racismo; e do multilateralismo sobre o isolacionismo internacional de Donald J. Trump.
Mas pouco ainda foi escrito sobre a política de emprego que Joe Biden vem prometendo. E o que promete, não é pouco – é um repristinar das políticas laborais de Franklin Delano Roosevelt e do National Labor Relations Act, a mais importante lei laboral americana (de 1935), segundo a qual a negociação coletiva deve ser encorajada e promovida.
Eis o que Biden promete em matéria laboral:
- Reforço do sindicalismo, a quem se deve a luta por melhores condições de trabalho e a criação da classe média americana, que é, segundo Biden, o “backbone” da economia americana. Defende, por isso, o aumento do número de trabalhadores sindicalizados (10,5% da força de trabalho em 2020, que confronta com 35% em 1950);
- Promoção da negociação coletiva, quer no setor privado, quer no setor público (de onde tem estado afastada), incluindo até nas relações de franchising e para os trabalhadores independentes da “gig economy”;
- A negociação coletiva deve apostar na partilha de lucros entre os acionistas, os gestores e os trabalhadores – “when you work hard, you share in the prosperity your work created”;
- Reforço da agenda do trabalho decente, que assegura que os trabalhadores são tratados de forma digna, devendo receber os salários, os benefícios e a proteção que merecem;
- Aumento do salário mínimo nacional para 15U$USD/h em todos os estados;
- Responsabilização individual dos gestores que violem leis laborais, designadamente no caso da contratação de falsos trabalhadores independentes;
- Criação de uma lei federal que adote a presunção de existência de contrato de trabalho para os que trabalham nas plataformas digitais, à semelhança da lei californiana “ABC”, de forma a terminar com o que apelida de “epidemic misclassification”;
- Reforço das agências de fiscalização em matéria de emprego – Department of Labor e Equal Employment Opportunity Comission – através da contratação de mais inspetores;
- Defesa do direito à greve, incluindo greves intermitentes e mesmo “boicotes” secundários, que são formas de luta, não contra o empregador, mas contra empresas que são clientes do empregador e que “esmagam” a respetiva política de preços, fazendo-o baixar salários;
- Expansão da defesa dos direitos laborais dos trabalhadores agrários e dos trabalhadores domésticos, através da reforma do Fairness for Farmworkers Act e do Domestic Workers’ Bill of Rights.
As medidas acima enunciadas têm um forte cunho ideológico e assentam na atuação do Estado, mesmo contra a vontade das empresas. A sua aprovação e eficácia, consequentemente, ficam por provar. Como se costuma dizer: ver para crer.
Mas há um ponto distintivo, para além dos acima enunciados. Trata-se da aposta na “compliance laboral”.
A compliance traduz o cumprimento da lei por parte das empresas, bem como a observância de boas práticas empresariais. Envolve questões de transparência, não discriminação, privacidade, concorrência leal, questões éticas, ambientais e boas práticas laborais. Ora, o que o novo Presidente eleito parece querer fazer, é convidar as empresas a cumprirem as leis laborais e a irem para além destas, fazendo depender a celebração de contratos públicos e a atribuição de fundos estatais à adoção de boas práticas empresariais.
Parece que a famosa “corporate social responsability” verá, finalmente, uma concretização legal com significado, a propósito da “compliance laboral”. E na medida em que venha a ser institucionalizada nos Estado Unidos, já se sabe: a compliance vem para ficar.
A ser assim, o Direito do Trabalho volta a mostrar o seu pioneirismo em temas sociais.
Publicado no ECO.
Portugal está empenhado em promover a transição para a economia digital. Para além de termos um ministério especificamente dedicado a este tema, o Ministério da Economia e Transição Digital, foi recentemente aprovado o Plano de Ação para a Transição Digital, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2020, de 21 de abril.
Além do mais, temos uma ótima rede de banda larga, que cobre todo o território nacional, excelentes estruturas rodoviárias, elevados índices de segurança e um sistema nacional de saúde que – pelo menos por ora – tem sabido responder à pandemia da doença Covid-19. Mas temos mais. Temos uma costa atlântica de excelência, aldeias e cidades do interior prontas a receber novos residentes e uma Reserva Mundial de Surf (Ericeira) que é um fator de atração para milhares de nómadas digitais.
Os nómadas digitais são, acima de tudo, jovens (e menos jovens) literados e com autonomia financeira, que trabalham em regime de teletrabalho e que o fazem a partir de diferentes partes do Globo, alternando os países por onde se fixam temporariamente. Trata-se de uma tendência cada vez mais marcante e que tem sido incentivada e suportada por diversas empresas globais, em especial as tecnológicas. Ao contrário do turismo tradicional, os nómadas digitais fixam-se em determinados países por períodos prolongados, adaptando-se à cultura local. Trazem conhecimento, inteligência, uma nova forma de estar e – claro – potenciam o consumo interno. Alugam casas, animam o comércio local, ocupam espaços de co-working e têm capacidade financeira para o fazer. Estão a trabalhar e têm independência financeira, sendo pagos pelas empresas internacionais para quem trabalham.
A Ericeira é um exemplo – neste momento, centenas de nómadas de várias partes do globo, que por força da pandemia passaram a trabalhar em trabalho remoto, estão a viver e a trabalhar a partir dali para diferentes empresas e países, aproveitando o clima, a natureza oceânica, o surf e os produtos locais. Mas fazem-no a título informal, sem qualquer enquadramento governamental. Não sei, mesmo, se o Governo português tem consciência deste movimento.
Ora, há diversos países que estão atentos a esta tendência e que estão a trabalhar com profissionalismo para atrair nómadas digitais.
Numa recente reportagem do Washington Post, são sinalizados alguns países que criaram regimes especiais para atrair nómadas digitais dos Estados Unidos, durante o período da pandemia.
Antigua e Barbuda, por exemplo, criou o “Nomad Digital Residence Program”, que concede vistos até 2 anos aos nómadas com rendimento igual ou superior a 50.000$USD por ano. O custo da emissão deste visto especial ascende a 1500$USD por pessoa, 2.000USD$ por casal e 3.000USD$ por família de três ou mais elementos. Com base neste visto, os nómadas podem entrar e sair do país o número de vezes que quiserem, sob condição de manterem residência neste país e de apresentarem testes negativos da doença Covid-19.
No mesmo sentido, a pequena ilha Aruba lançou em setembro o “One Happy Workation”, que cria um “remote work visa”. O visto tem a duração de 90 dias e os nómadas devem garantir, durante esse período, o alojamento em residências ou hotéis. O Governo promove pacotes de alojamentos em condomínios ou residências, equipadas com wifi, zonas comuns e programas turísticos e desportivos associados (mergulho, vela, yogga, etc).
Na Europa, o primeiro visto para nómadas digitais foi aprovado na Estónia, no auge da pandemia criou o Digital Nomad Visa. Por força deste novo visto, o Governo atribui autorizações de residência até 1 ano, exigindo como requisito que os nómadas tenham um salário mínimo mensal de 3.000€. O novo visto foi criado em junho e, segundo o Governo estónio, desde então receberam milhares de pedidos de visto provenientes dos Estados Unidos, Canadá, Rússia e Ásia.
Em julho, foi a vez da Georgia, que criou um programa especial (“Remotely from Georgia”) para atrair nómadas digitais de 95 países, por períodos iguais ou superiores a 180 dias. Para o efeito, exige-se que os mesmos tenham rendimentos mínimos mensais de 2.000€.
Portugal, para já, nada fez nesse sentido, pelo menos de forma estruturada e integrada. Mas pode e deve fazê-lo.
Se consideramos a transição digital como um dos instrumentos essenciais da estratégia de desenvolvimento do país e se queremos ser uma referência neste domínio, devemos reter todos aqueles que nos últimos anos têm vindo ao nosso país assistir ao Web Summit, mesmo os extracomunitários.
A pandemia é inimiga do turismo e das viagens de curta duração, mas pode potenciar a fixação de todos aqueles que passaram a trabalhar de forma remota, à escala global.
Sendo a aposta no consumo interno uma medida de combate à crise económica que se avizinha, porque não tentar (também) esta via?
A realização inteiramente virtual de audiências arbitrais é relativamente recente, tendo conhecido um crescimento exponencial com a pandemia Covid-19.
A disseminação do novo Coronavírus obrigou à imposição de medidas restritivas na circulação e no contacto humano, mas já antes haviam sido dados alguns passos no sentido da virtualização dos processos arbitrais, nomeadamente através do chamado Online Dispute Resolution (ODR), uma modalidade de resolução alternativa de litígios entre consumidores e fornecedores de bens ou prestadores de serviço, através de plataformas online.
Sem embargo, até ao advento da pandemia, grande parte das arbitragens internacionais eram realizadas presencialmente, com recurso ocasional à videoconferência para inquirição de algumas testemunhas cuja deslocação ao lugar da arbitragem fosse excessivamente onerosa ou impraticável (por exemplo, em caso de limitações de locomoção ou doença).
O evento da pandemia e as medidas de emergência e de contingência que sobrevieram um pouco por todo o mundo trouxeram a suspensão provisória das atividades de resolução de litígios através dos tribunais estaduais e arbitrais.
Retomada a atividade judicial e arbitral, surgiu a necessidade do recurso intensivo às novas tecnologias para a realização de audiências dos tribunais. Por um lado, por ser necessário recuperar dos atrasos na resolução de litígios e ao mesmo tempo que se verifica um aumento dos litígios; por outro lado, pela importância da proteção da saúde pública, obedecendo às restrições de circulação e do contacto entre pessoas.
As restrições impostas pelos Governos para combater a propagação do novo Coronavírus afetaram processos arbitrais já em curso, impedindo a sua continuação presencial e obrigando a uma avaliação custo-benefício entre a realização imediata das audiências agendadas (e em muitos casos já preparadas, pelas partes e pelo tribunal arbitral) por videoconferência e à suspensão dos procedimentos por tempo indeterminado. Mais, o novo contexto trouxe dúvidas quanto à conveniência, tramitação e localização efetiva de novos processos arbitrais virtuais.
Nesta nova realidade, a circunstância de as arbitragens internacionais terem lugar através de plataformas virtuais – ao invés de um lugar físico, situado num determinado Estado – fez surgir novas questões no que diz respeito à definição da sede ou lugar da arbitragem.
Com efeito, no caso de uma audiência virtual, as partes e o tribunal podem estar fisicamente localizados em vários Estados, sendo certo que a existência de uma cláusula contratual de escolha da lei aplicável ao processo ou ao mérito da causa não constitui necessariamente um acordo das partes quanto ao lugar da arbitragem.
Na ausência de acordo entre as partes, o lugar da arbitragem é, em vários instrumentos internacionais (como a Convenção de Nova Iorque de 1958), um critério para a determinação da lei substantiva e processual aplicável à causa e com especial relevância para a arbitrabilidade do litígio, validade da convenção de arbitragem, executoriedade das decisões arbitrais e possibilidade de emissão de ordens preliminares pelo tribunal arbitral.
É, por isso, importante limitar ao máximo as incertezas no âmbito da realização de audiências arbitrais online, em que pode estar em causa a definição da respetiva sede e, consequentemente, da lei aplicável ao processo e ao mérito da causa.
Essa limitação deve ser realizada através da inserção de um clausulado expresso, ab initio, na convenção de arbitragem integrante do contrato principal ou posteriormente em documento autónomo. Neste clausulado, devem as partes definir:
(i) Que as audiências arbitrais decorrerão (desde o seu início ou a partir de determinado momento) por videoconferência, através de uma determinada plataforma virtual;
(ii) Que para os devidos efeitos o processo arbitral se considerará realizado num determinado local.
Se a primeira cláusula será relativamente linear, já a segunda poderá conter um nível de detalhe variável, em conformidade com a complexidade ou a relevância económica da arbitragem, podendo as partes optar por mencionar expressamente a relação entre a sede convencionada e a lei aplicável ao foro e ao mérito da causa.
Por exemplo, para efeitos de realização de audiências por videoconferência, podem as partes redigir uma cláusula da seguinte forma simplificada: “As partes acordam que as audiências terão lugar através da Plataforma [nome da plataforma], por videoconferência”.
A essa cláusula deve acrescer uma outra, que estipule, por exemplo:
(i) “As partes fixam como lugar da arbitragem o Estado […]”; ou
(ii) “É fixado como lugar da arbitragem (ou /as partes estipulam como lugar da arbitragem ou /as partes consideram que o lugar da arbitragem é) o Estado […]. As leis substantivas e processuais do Estado […] regem o mérito da causa e o processo arbitral em tudo o que não for regulado pela lei escolhida pelas partes ou pelas regras do tribunal arbitral, incluindo, sem limitação, a executoriedade da decisão arbitral”.
Embora a realização virtual de audiências arbitrais seja relativamente recente, a sua predominância no contexto atual explica que alguns Centros de Arbitragem tenham já criado modelos de procedimento e de redação de cláusulas para arbitragens conduzidas virtualmente. Saliente-se, a título de exemplo, o Modelo da American Arbitration Association, as Guidelines da Câmara de Comércio Internacional ou o Protocolo de Seoul sobre videoconferência em arbitragem internacional da Korean Commercial Arbitration Board (KCAB).
A pandemia Covid-19 acelerou exponencialmente o recurso aos meios virtuais para a realização de audiências arbitrais. É expectável e desejável que as várias dificuldades implicadas no caráter virtual das audiências vão sendo ultrapassadas com a colaboração das partes, dos seus advogados, dos árbitros e dos centros de arbitragem.
Entre as formas de limitação das situações de incerteza atualmente existentes encontra-se a definição progressiva de regras especificamente aplicáveis às arbitragens conduzidas virtualmente, incluindo no que respeita à sede da arbitragem e a outras matérias, como o próprio procedimento, a produção de prova ou a garantia de um processo justo e equitativo.
Será assim possível, mesmo após o aligeiramento das medidas restritivas da circulação e do contacto entre pessoas, tirar o melhor partido da utilização das novas tecnologias nas audiências arbitrais, eliminando dúvidas e surpresas indesejáveis para as partes, maximizando a celeridade do processo e contribuindo para a diminuição do impacto ambiental das audiências presenciais, especialmente em arbitragens internacionais.
Publicado na Advogar.
A pandemia COVID-19 foi responsável por alterações significativas no mundo laboral, entre as quais a criação de uma nova tendência: o alargamento do recurso ao regime do teletrabalho.
De um momento para o outro, o teletrabalho passou a ser a regra aplicável à maioria dos trabalhadores, que passaram a ter um “escritório em casa”.
A recente mudança originou um conjunto de questões sobre o tema, nomeadamente devido ao surgimento de diversos diplomas que contêm novas disposições sobre teletrabalho, e que passaram a consagrar novas normas, para além das que já se encontravam consagradas no Código do Trabalho.
Em sede de regulamentação do teletrabalho, cumpre ainda mencionar a sua importância em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho (“IRCT”). Isto, porque é reconhecido o papel cada vez mais importante desempenhado pelo diálogo social e pela negociação coletiva na procura de soluções em função da especificidade de cada área, de cada local de trabalho, de cada setor. Dados recentes referem inclusivamente um aumento muito significativo dos IRCTS publicados, destacando-se ainda um conjunto de novas matérias que deles passaram a constar, tais como: (i) tecnologias de informação e comunicação; (ii) direitos de personalidade; (iii) direito à desconexão; (iv) igualdade; (v) parentalidade e (vi) teletrabalho.
Paralelamente à implementação de novas formas de trabalho, a pandemia criou, certamente, condições para reforçar, em sede de negociação coletiva, a consagração destas matérias (v.g. teletrabalho).
No âmbito desta temática, não obstante estarem consagrados no Código do Trabalho os princípios e normas, a regulamentação deste regime passa a estar, atualmente, incluída na lista de matérias que devem ser objeto de aperfeiçoamento e de adequação ao setor e à atividade a que se aplicam, tendo em consideração a aplicação prática e massificada nos dias de hoje.
A regulamentação permite a consagração de disposições específicas referentes ao teletrabalho, associadas a diferentes matérias e em que a sua aplicação implica necessariamente: (i) direito à desconexão; (ii) definição de local de trabalho; (iii) regime de pagamento de despesas decorrentes de teletrabalho; (iv) duração do contrato de trabalho em regime de teletrabalho.
A consagração, em sede de convenção coletiva, de disposições específicas sobre as referidas matérias, não põe em causa, de forma alguma, as regras gerais do regime legal de teletrabalho, nomeadamente o princípio da igualdade de tratamento de trabalhador em regime de teletrabalho. O que está em causa é apenas a concretização dessas disposições, permitindo esclarecer dúvidas interpretativas que delas surjam, bem como a sua adequação ao setor e ao tipo de atividade a que se aplica o regime do teletrabalho.
Trata-se de aperfeiçoar a regulamentação de uma nova realidade que tende agora, cada vez mais, a consolidar-se e a desenvolver-se enquanto vetor da flexibilização laboral, e que assume uma importância crescente, fruto não só do incremento das tecnologias da informação e de comunicação, mas também da experiência de implementação prática pela qual a sociedade passou nos últimos meses.
Publicado no ECO.
Ruth Ginsburg, Juíza do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América (EUA), recentemente falecida, foi uma ‘pathmarker’ do Direito, ou seja, alguém que ousou trilhar e apontar novos caminhos, em nome do bem comum. A sua forma de ver e conceber o Direito deixou uma marca. A sua escrita, simples e escorreita, foi marcante. O seu percurso enquanto defensora dos direitos civis, foi ímpar.
Defensora acérrima do princípio da igualdade entre homens e mulheres, Ruth Ginsburg colocou na agenda do Direito o discurso da justiça social e da igualdade de oportunidades.
E fê-lo desde cedo.
Aos treze anos de idade, em junho de 1946, assinalando a criação das Nações Unidas, Ruth publicou no Highway Herald, jornal da sua Elementary School 238 (Brooklyn), um editorial em que enuncia aqueles que eram, para si, os principais documentos da humanidade. Os “Dez Mandamentos”, por conter um código de ética; a Magna Carta (1215), por acolher o primeiro núcleo de direitos fundamentais dos cidadãos; o Bill of Rights (1689), por limitar o poder régio e atribuir competências ao parlamento; a Declaração de Independência dos EUA (1776), por afirmar a liberdade e a igualdade perante a lei; e a Carta das Nações Unidas (1945), por enunciar promover a paz internacional e a tolerância entre os povos.
Ao passo que os seus colegas escreviam sobre atividades desportivas, escolares e circenses, Ruth anunciava ao que vinha: ver e viver o Direito como um poderoso instrumento de justiça social.
Desde então, não mais deixou de o fazer.
Formada em 1959, torna-se Professora na Rudgers School of Law (1963) e, mais tarde, na Columbia University School of Law (1972), sendo igualmente diretora da ACLU Women´s Rights Project. Neste período, deve-se a Ruth Ginsburg a publicação de diversas obras sobre discriminação sexual e a organização do primeiro grande seminário jurídico sobre “O Direito e a Mulher”.
Segue-se a sua nomeação para Juíza do U.S. Court of Appeals do Distrito de Columbia (1980), feita pelo Presidente Jimmy Carter e, por fim, a sua nomeação para Juíza do Supreme Court (1993), feita pelo Presidente Bill Clinton.
Deve-se a Ruth Ginsburg grande parte do progresso jurídico em torno da igualdade de género. O sucesso da sua doutrina baseou-se numa linha clara e simples, assente em duas regras basilares: a desigualdade entre homens e mulheres é contrária aos valores fundamentais expressos na Declaração de Independência; e o Direito deve ser usado para construir uma sociedade mais justa e equilibrada.
Na sua biografia, My Own Words, conta-se que no dia em que a entrevistou como candidata a Juíza do Supremo, o Presidente Bill Clinton e o seu staff ficaram impressionados, não com a capacidade intelectual da candidata, que já conheciam, mas com a sua simplicidade, carácter e humanismo.
No final da conversa, os assessores do Presidente pediram a Ruth Ginsburg para ir para casa e aguardar por um eventual telefonema de confirmação, que deveria ocorrer ao final da tarde. O Presidente, todavia, foi assistir a um jogo das finais da NBA, que opunham os Chicago Bulls e os Phoenix Suns, o qual acabou por se tornar num dos jogos mais longos da história da NBA – 3h e 20m, depois de um triplo prolongamento. Ruth, que desconhecia as incidências do jogo, deu o caso como perdido.
Mas o telefonema do Presidente apareceu, já a noite ia longa.
No dia seguinte, no seu discurso de aceitação realizado no Rose Garden da Casa Branca, Ruth voltou a dizer ao que ia: trabalhar com os seus colegas do Supremo para promover “o progresso do Direito, ao serviço da sociedade”. E foi o que fez.
Deve-se a Ruth Ginsburg a evolução jurisprudencial do Supremo, que desde então não mais deixou de afirmar a doutrina da igualdade de oportunidades, própria de cidadãos livres e independentes.
O seu legado é incontornável: o Direito deve estar ao serviço da sociedade. Sem Direito, não há progresso, nem justiça social.
Compete agora às gerações mais novas saber honrar esta herança e defender o legado desta notável jurista.
Publicado no ECO.
A aplicação STAYAWAY COVID, desenvolvida pelo Instituto de Engenharia de Sistemas de Computadores, Ciência e Tecnologia (INESC TEC), em parceria com o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e as empresas Keyruptive e Ubirider, foi recentemente lançada e já conta com mais de um milhão de “downloads” nos sistemas operativos Android e iOS.
Esta aplicação, que é de instalação e utilização voluntárias, permite alertar os utilizadores para o risco de eventual contágio da doença COVID-19 quando o telemóvel do utilizador tenha estado a uma distância inferior a dois metros durante mais de 15 minutos do telemóvel de outra pessoa (também ela utilizadora da aplicação) a quem tenha sido depois diagnosticada a doença COVID.
A STAYAWAY COVID é uma aplicação de notificação da exposição individual a fatores de risco de contágio que, enquanto instrumento de saúde pública, tem por objetivo interromper a cadeia de propagação da doença COVID-19. Para atingir este objetivo, é, porém, necessário que o maior número possível de pessoas descarregue e utilize a aplicação e que insira a informação necessária no sistema, pois isto aumentará a probabilidade de vir a ser diagnosticado um maior número de pessoas, mesmo que ainda não apresente sintomas.
Antes de uma prévia utilização da aplicação, é, assim, legítimo que os seus potenciais utilizadores se questionem quanto à segurança desta aplicação e de que forma é assegurada a sua privacidade.
Como qualquer aplicação informática não é obviamente possível assegurar que a STAYAWAY COVID constitui uma aplicação 100% segura. Esta garantia ninguém poderá dar. Esta circunstância (que, diga-se, não valerá apenas para a aplicação STAYAWAY, mas para as aplicações em geral) não mitiga, de forma alguma, um potencial utilizador de fazer uma escolha consciente (entre instalar ou não a aplicação) e de tomar uma decisão informada de acordo com os riscos.
Embora a aplicação STAYAWAY COVID não aceda aos dados de identificação do utilizador (por exemplo, nome, morada, números de identificação, aplicações de redes sociais, etc.), nem recolha dados de localização do utilizador ou de terceiros (por exemplo, o local onde ocorreu o risco de contágio), isto não significa que a sua utilização não implique um risco de identificabilidade e de localização do utilizador.
A aplicação só funciona com a interface “Bluetooth Low Energy” (BLE) ativa, o que permite, de forma precisa, saber a localização de telemóveis, que emitem sinais que podem ser lidos por recetores instalados em qualquer local (por exemplo, na via pública). Logo, não é possível afirmar que não existe um risco de rastreamento da localização e das deslocações do utilizador por terceiros.
Esse risco existe, mas pode ser minimizado, uma vez que a aplicação funciona sob o sistema fornecido pela Google e a Apple, designado “Google-Apple Exposure Notification” (Sistema de Notificação de Exposição Google-Apple, “GAEN”), que permite utilizar um endereço aleatório sujeito a alterações periódicas para a comunicação dos chamados códigos “RPI” (“Rolling Proximity Identifiers”) e, deste modo, que não se estabeleça uma relação com um determinado telemóvel, impedindo o rastreamento.
Sucede que a Google e a Apple (dependendo do sistema utilizado para descarregar a aplicação, Android ou iOS) ficam com o verdadeiro endereço da interface de “Bluetooth” e não é verdadeiramente possível saber como estes colossos informáticos utilizam ou utilizarão a informação no futuro.
Neste âmbito, não há como negar que impera a opacidade do sistema. O código do sistema GAEN não é um código aberto, pelo que não se encontra sujeito a escrutínio, podendo, inclusive, ser alterado por livre iniciativa da Google ou da Apple. Os próprios criadores da aplicação STAYAWAY e o responsável pelo tratamento dos dados, que, no caso, é a Direção Geral da Saúde, tão-pouco detêm o controlo total dos dados dos utilizadores, uma vez que o tratamento é realizado pelo sistema operativo dos dispositivos móveis do utilizador.
O recurso à interface da Google e da Apple constitui, assim, um dos aspetos mais críticos desta aplicação. Isto não significa, porém, que não se deva instalar e utilizar a aplicação.
Em relação a outras aplicações que têm a informação agregada numa única base de dados, a aplicação STAYAWAY foi concebida para que a informação fique parcialmente descentralizada (o armazenamento das chaves e dos identificadores recebidos de terceiros com quem se teve um contacto de proximidade são remetidos para o telemóvel do utilizador), o que, do ponto de vista da proteção dos dados, permite mitigar o nível de afetação dos direitos dos utilizadores.
Um outro aspeto positivo a ter em conta é que a aplicação oferece garantias de não re-identificação dos dados através da pseudonimização (ou seja, os dados são tratados de forma a que deixem de poder ser atribuídos a um indivíduo específico, salvo através de informações suplementares que são mantidas separadamente e sujeitas a medidas técnicas específicas), o que dificulta a utilização de dados para outras finalidades e a sua interconexão com outros tratamentos de dados.
Além do mais, o apagamento automático dos dados e o seu curto prazo de conservação (14 dias) são também aspetos relevantes a considerar e que permitem mitigar, em caso de ocorrência de incidentes de segurança, o nível de afetação da privacidade dos seus utilizadores.
Dentro do atual contexto, é importante que cada utilizador possa fazer uma escolha informada e consciente antes de decidir instalar e utilizar a aplicação (mas isto não valerá apenas para a aplicação STAYAWAY, mas para as aplicações em geral), que tem, sem dúvida, os seus méritos e poderá vir a ser muito útil no combate à propagação da doença COVID, mas claro em conjunto com o cumprimento das restantes recomendações da Direção Geral da Saúde.