A ideia de que robôs e máquinas poderão um dia substituir os seres humanos fascina e assusta muitas pessoas. A literatura, o cinema e os desenhos animados dão-nos imagens de robôs que assumem o controlo da humanidade num futuro não muito distante. Até ao início do século XXI, o tema da inteligência artificial estava confinado ao mundo académico, à ficção científica e a algumas indústrias. No final do século passado, a Google trouxe a inteligência artificial para vida de todos nós de uma forma palpável.
A inteligência artificial está em todo o lado, nas redes sociais, na publicidade, na investigação científica, no desenvolvimento industrial, entre tantas outras coisas. Muitos programas informáticos são alimentados por motores de inteligência artificial. Os telemóveis, computadores e outros aparelhos eletrónicos incorporam sistemas de inteligência artificial.
Mas a revolução da inteligência artificial parece não ter chegado ao mundo do Direito. Obviamente, muitos advogados e escritórios de advogados usam sistemas de inteligência artificial, alguns deles concebidos especificamente para advogados. Mas a inteligência artificial não transformou a advocacia da mesma forma que transformou outras atividades.
As mudanças provocadas pelas tecnologias de inteligência artificial, tornam necessário discutir o papel da inteligência artificial no futuro da advocacia e do Direito.
Comecemos por definir “inteligência artificial”. Segundo a Enciclopédia Britânica “a inteligência artificial (IA) é a capacidade de um computador digital ou robô controlado por computador para executar tarefas normalmente associadas a seres inteligentes”. “Inteligência artificial” designa a capacidade de uma máquina simular a lógica de um algoritmo. Um algoritmo é uma sequência finita de instruções determinadas que são utilizadas para executar uma operação. Os algoritmos são utilizados como especificações para efetuar cálculos, processar dados, elaborar raciocínios ou tomar decisões de forma automatizada e outras tarefas. A inteligência artificial dá às máquinas a capacidade de perceber um determinado ambiente e de tomar medidas para alcançar os objetivos estabelecidos por um programa informático.
Para alguns advogados, é impossível que a inteligência artificial seja aplicável ao mundo do Direito, pelo menos no que respeita aos assuntos jurídicos mais complexos, porque a atividade jurídica, independentemente da sua forma, trabalha com “palavras”. A retórica e a gramática sempre estiveram no cerne de todas as profissões jurídicas. As palavras podem ser ambíguas, ter múltiplos significados dependendo do contexto e da sua ordem na frase. A interpretação das palavras parece ser uma atividade puramente humana.
Contudo, devido à sua natureza “prescritiva”, o Direito e a lei dependem de simples processos de raciocínio dedutivo, o que torna o Direito numa atividade apta para “codificação” através de inteligência artificial. Em termos mais simples, o Direito não é imune à inteligência artificial; pelo contrário, o Direito é um campo ideal para a inteligência artificial. Para que isso aconteça, é preciso “codificar o pensamento jurídico”.
Para “codificar o pensamento jurídico” é necessário criar os processos que permitirão às máquinas interpretar leis, contratos e decisões judiciais, o que parece estar ainda longe porque as “palavras”, as “decisões judiciais”, as questões jurídicas, em geral, assumem diversos significados, muitas vezes ambíguos e abertos à manipulação. A diferença entre o “certo” e o “errado” pode não ser clara, nem sempre se reduz a “sim” ou “não”, branco e preto, não é uma série de 0s e 1s.
No entanto, o pensamento jurídico pode e será “codificado” num futuro não muito distante.
Os sistemas de revisão de documentos utilizam já tecnologias de aprendizagem automática e tecnologia de reconhecimento de padrões para identificar conceitos chave de contratos, classificar cláusulas, padrões nas decisões judiciais, assinalar discrepâncias e similitudes na aplicação e interpretação de leis e contratos, etc.
No futuro, a inteligência artificial permitirá aos juízes identificar os elementos-chave das suas decisões e oferecer-lhes um roteiro para o processo de tomada de decisão. Tomemos o exemplo de uma simples decisão judicial sobre a competência do tribunal sobre determinada matéria que lhe é apresentada. Todos os países do mundo têm regras claramente definidas para determinar a jurisdição dos seus tribunais, regras essas que podem ser codificadas em linguagem informática, ou seja, num algoritmo.
Os futuros algoritmos jurídicos ajudarão juízes e advogados a determinar se um assunto se enquadra numa ou noutra categoria jurídica e como a lei será aplicada em casos específicos. Tal estará apenas a um passo do poder de determinar a aplicação de normas jurídicas. A integração de uma conduta na previsão de uma norma é uma tarefa que no futuro será realizada por sistemas informáticos, com um grau crescente de complexidade, eliminando falsos positivos, aplicando regras de conflitos de direitos, identificando a existência de causas de justificação ou de exculpação, etc.
Muitos argumentarão que o Direito tem características específicas, nomeadamente a interferência de sentimentos e convicções, o que torna impossível a sua redução a algoritmos.
É errado analisar a inteligência artificial através desse prisma. Há duas áreas em que a inteligência artificial terá dificuldades em dominar: primeiro, na camada exterior das leis atuais, onde prevalecem elementos culturais, sentimentais e políticos que encobrem o núcleo das leis. Com o tempo, estes elementos serão depurados por algoritmos mais poderosos. A força da racionalidade desses algoritmos levará à descoberta de regras mais simples e, portanto, mais justas, livres de muitas das incoerências e conflitos que hoje se verificam.
A inteligência artificial criará formas mais rápidas e eficientes de desempenhar todas as tarefas jurídicas, como é o caso da gestão de conhecimento, análise de documentos, redação de contratos, análise de contenciosos, preparação de peças processuais.
Todas as profissões jurídicas beneficiarão com a inteligência artificial. Os legisladores farão melhores leis; os juízes darão sentenças mais justas; os advogados poderão aperfeiçoar as suas peças processuais com maior eficiência e qualidade. Muitos conflitos serão resolvidos antes de chegarem aos tribunais porque se a probabilidade de sucesso for baixa, essa parte procurará chegar a acordo ou desistirá de ir a tribunal.
A inteligência artificial não substituirá os advogados, mas mudará radicalmente a forma como os advogados prestam serviços.
No fim de contas, o pensamento jurídico deverá permanecer na esfera das atividades humanas porque dentro do núcleo de todas as normas jurídicas vivem valores e os valores não são “computáveis”. Os valores não podem ser reduzidos às formulações matemáticas de algoritmos. A criação e a aplicação da lei devem, no final, ser feitas por seres humanos e para os seres humanos.
O Direito é uma ciência e uma técnica, mas é também uma arte e, portanto, não pode ser reduzido a algoritmos. Este é o limite da aplicação da inteligência artificial ao Direito e o limite para qualquer tecnologia alimentada por inteligência artificial.
Este artigo foi publicado na revista física da Advocatus de Novembro/ Dezembro de 2021.
No contexto vivido nos últimos meses, no qual o teletrabalho se tornou obrigatório durante mais de 360 dias para a grande maioria dos trabalhadores, surgiu a questão de saber se o pagamento do subsídio de refeição continuaria a ser devido, visto que os trabalhadores passariam a desempenhar as suas funções fora do local de trabalho habitual para passarem a desempenhar no seu domicílio.
Destacaram-se duas opiniões contrapostas: por um lado, uma parte da doutrina e da jurisprudência entendia que o subsídio de alimentação apenas seria devido para fazer face a despesas que o trabalhador tem fora do seu domicílio, e, portanto, não se justificava o pagamento; por outro lado, outra parte da doutrina e da jurisprudência entendia que mesmo prestando a atividade em teletrabalho, as despesas com refeições se mantinham, e consequentemente, deveria manter-se o respetivo pagamento.
A Direção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho e a Autoridade para as Condições de Trabalho, no contexto da obrigatoriedade do teletrabalho, pronunciaram-se no sentido do pagamento do subsídio de refeição. Apenas, em casos excecionais, designadamente disposição contratual ou por via de instrumento de regulamentação coletiva que dispensassem a não obrigatoriedade de tal pagamento, era possível a sua não aplicação aos teletrabalhadores.
Nos dias de hoje o teletrabalho, salvo situações excecionadas determinadas na lei, deixou de ser, numa primeira fase, obrigatório e, mais recentemente, recomendado.
Pergunta-se: as empresas podem, por acordo, estabelecer o não pagamento do subsídio de refeição aos trabalhadores que prestam a sua atividade em teletrabalho?
Pensemos no seguinte: o subsídio de refeição não está abrangido pelas normas constitucionais que “protegem” o direito à retribuição dos trabalhadores, o que nos leva a crer que não é devido em todos as situações. Mas, outros argumentos podem ser apontados no mesmo sentido.
A razão pela qual consideramos ser possível a elaboração de um acordo no qual não se incluam o pagamento do subsídio de refeição é simples: o teletrabalho carateriza-se pela prestação, na sua maioria, fora da empresa, através de meios tecnológicos, motivo pelo que o trabalhador presta a sua refeição como se num dia de descanso se encontrasse. Consequentemente, o teletrabalhador não incorre em despesas adicionais, comparativamente com a situação que aconteceria se estivesse no local de trabalho.
Julgamos que de forma diametralmente oposta ao que se verificou nos meses anteriores, a obrigatoriedade de pagamento deixou de ser uma realidade. O teletrabalho aplica-se apenas perante a vontade das partes, regendo-se pelas normas do Código do Trabalho, pelo que na falta de acordo entre a empresa e o trabalhador o regime não pode ser imposto pela entidade empregadora.
Ainda assim, admitimos que, existindo nos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho aplicáveis disposições que determinem a obrigatoriedade de pagamento deste subsídio aos trabalhadores nas situações de teletrabalho, este será sempre devido e não pode ser afastado, sequer, por contrato de em sentido contrário. O conteúdo do artigo 476.º do Código do Trabalho não deixa margem para qualquer dúvida interpretativa: apenas seria possível a consagração de uma disposição no contrato de trabalho mais favorável ao trabalhador; acontecendo precisamente o contrário, pelo facto de ser “eliminado” um direito consagrado no instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, é notória uma violação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador.
Ainda assim, perante determinadas exceções relativamente às quais a lei continua a determina a obrigatoriedade de teletrabalho, uma vez reunidos todos os pressupostos legais para a sua aplicação, o pagamento do subsídio de refeição continua a ser devido, não havendo qualquer possibilidade de disposição convencional em contrário.
Este artigo foi publicado no Dinheiro Vivo no dia 23.10.2021. Pode consultá-lo aqui.
Poucos agentes do setor económico nacional terão sido tão afetados pela pandemia da Covid-19 como os lojistas a operar em centros comerciais. Talvez por isso, ainda hoje, correm nos tribunais portugueses centenas de litígios que opõem estes lojistas aos proprietários e entidades gestoras dos centros comerciais.
A batalha jurídica começou em meados do ano de 2020, com a discussão em torno do início da aplicação da medida de defesa dos lojistas, prevista no artigo 168.º-A, n.º 5 da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, e da inconstitucionalidade da respetiva norma, que isentava os lojistas de centros comerciais do pagamento das rendas fixas devidas entre março e dezembro desse ano.
Já em 2021, quando essa medida deixou de se aplicar, mas, mais do que nunca, os efeitos da pandemia, as medidas restritivas e as perdas económicas dos lojistas se fizeram sentir, a batalha jurídica prosseguiu em torno do direito a obter uma diminuição das rendas a pagar aos centros comerciais.
Aqui, mais uma vez, quando acordos não foram alcançados, os argumentos e as teses jurídicas multiplicaram-se, envolvendo o preenchimento de conceitos indeterminados, a aplicação de regimes legais pouco utilizados nas últimas décadas – como os da impossibilidade em caso de eventos de força maior e da alteração das circunstâncias – e prova quase diabólica.
Enquanto em Portugal os Tribunais ainda não têm uma posição clara quanto a este aspeto, em Espanha começam a surgir sinais de que o “rei vai nu”, apesar de no ordenamento jurídico espanhol não existir sequer um regime legal semelhante ao da alteração das circunstâncias.
O caso espanhol mais relevante opôs um arrendatário comercial ao seu senhorio, num processo que decorreu no Tribunal de Primeira Instância n.º 81 de Madrid.
Numa decisão de 25 de setembro, o Tribunal considerou ser evidente que a crise sanitária e pandémica consubstancia uma alteração das circunstâncias, que as rendas definidas pelas partes tinham sido acordadas num contexto muito diferente daquele que se viveu durante essa crise, que o seu surgimento foi absolutamente imprevisível e que, em consequência, houve um grave desequilíbrio entre o esforço económico que se exigia a cada uma das partes, com prejuízo muito superior para o arrendatário.
Em conclusão, o Tribunal de Madrid decidiu pela suspensão da obrigação de pagamento da renda até à reabertura do estabelecimento comercial e pela redução da renda em 50% a partir desse momento.
O Tribunal de Madrid colocou a tónica no facto de os efeitos da pandemia se terem feito sentir de modo muito diferente entre as partes, tendo uma delas – o arrendatário – sido lesado numa escala desproporcionalmente maior e, por isso, as condições inicialmente contratualizadas terem deixado de fazer sentido.
O mesmo acontece com os lojistas em Portugal e, muito em particular, com aqueles que estão estabelecidos em centros comerciais. É por demais evidente que, proporcionalmente, os lojistas foram a parte mais sacrificada pela pandemia do Covid-
19 na relação contratual com os centros comerciais: não beneficiaram de medidas de apoio na época em que as medidas sanitárias foram mais restritivas e nunca deixaram de ter de pagar uma componente remuneratória, apesar de, durante vários meses, terem sido impossibilitados de operar.
Por agora, estamos ainda absortos na teoria – em discutir a letra da lei, a jurisprudência anterior mais ou menos certeira e as várias teses doutrinárias na matéria –, em vez de colocarmos o foco nos factos e na assimetria dos efeitos provocados pela pandemia nas esferas jurídicas das partes.
É desejável que os Tribunais Portugueses venham rapidamente a dizer que “o rei vai nu”, apontando ser óbvio que a pandemia prejudicou a maioria dos agentes do mercado do comércio e retalho, mas, acima de tudo e desproporcionalmente, prejudicou os lojistas em centros comerciais, decidindo pela justa divisão desse sacrifício, reequilibrando os contratos com os gestores dos centros comerciais e quebrando este estado de “transe jurídico” generalizado que se tem vivido no último ano e meio.
O artigo publicado no Jornal de Negócios no dia 06.10.2021 foi escrito no dia 16.09.2021. Pode consultá-lo aqui. A versão abaixo é uma versão atualizada.
O fim do serviço de interruptibilidade, fixado para 31 de outubro, fez a felicidade da esquerda, que o usou como uma das suas bandeiras populistas, mas deixa em dificuldades as empresas grandes consumidoras de eletricidade nas indústrias vidreira, da celulose, da siderurgia, etc.. O que está em causa: quando um consumidor compra eletricidade, contrata-a e espera recebê-la sem interrupções. Em momentos de pico de consumo ou de baixa de produção, pode tornar-se necessário interromper o fornecimento de eletricidade a alguns consumidores para assegurar que outros como os serviços essenciais recebem eletricidade continuamente. Na maioria dos países criaram-se sistemas, de adesão voluntaria, pelos quais os consumidores elegíveis (por norma os grandes consumidores em alta e media tensão) aceitam sofrer cortes no fornecimento sempre que necessário mediante uma contrapartida. A isto se chama um serviço de interruptibilidade. Nalguns países mais liberais, o preço deste serviço acerta-se através de contratos de serviços de interruptibilidade em que os consumidores aceitam comprar parte da sua eletricidade sujeita a interrupções em condições de preços e quantidades livremente estabelecidas. Noutros países, o acerto faz-se por concurso público (semestral em França, anual em Espanha) em que cada concorrente propõe o valor que está disposto a receber pela disponibilidade para interromper o consumo. Este método não evita que a capacidade de interruptibilidade posta a concurso possa exceder a capacidade efetivamente necessária. Em Portugal, estabeleceu-se, no fatídico ano de 2010, um serviço de interruptibilidade baseado em contratos de adesão anuais, nos quais o volume contratado é definido administrativamente e preço é estabelecido através de fórmula fixada por portaria. Ou seja, nos antípodas do ajuste de preços pelo encontro da oferta e da procura.
A REN, a quem cabe a gestão deste serviço, no relatório relativo ao ano de 2020, refere estas duas coisas espantosas: “(d) A remuneração pela prestação do serviço de interruptibilidade representou 101,9 M€; (e) O operador da rede de transporte não emitiu nenhuma ordem de redução de potência.” Esta e situações similares que ocorreram nos anos anteriores, levaram a esquerda da esquerda portuguesa aos arames, gritando daqui del rei, temos de cortar mais esta renda excessiva. E os grandes consumidores, ficaram pelos cabelos, que se lhes foi uma receita para reduzir a sua fatura de eletricidade, já sobrecarregada de impostos… e logo agora que os preços no OMIE já passam largamente os 200 euros por MWh, coisa nunca vista! A esquerda da esquerda está certa ao considerar injustificado o gasto de mais de 100 milhões de euros ao ano por um serviço que as mais das vezes não é sequer utilizado. E é justo o lamento das empresas grandes consumidoras porque lhes vão tirar um fator que contrabalançava a falta de competitividade arrastada pelos custos energéticos em Portugal. Mas, se por um lado, não se pode extinguir o serviço de interruptibilidade sem criar uma alternativa para as situações de necessidade de interrupção do fornecimento de eletricidade; por outro, desde 2010 usou-se o serviço de interruptibilidade, em Portugal com mais descaramento que noutros Estados das União Europeia, como uma ajuda de Estado às empresas grandes consumidoras.
O interesse de todos recomenda, primeiro, a substituição do atual por um outro serviço de interruptibilidade, por ser necessário ao funcionamento do sistema elétrico nacional; segundo, a contratação e remuneração da interruptibilidade com base nas necessidades efetivas do sistema, ao preço mais baixo que as empresas grandes consumidoras ofereçam; terceiro, outras formas de aliviar o peso que o próprio Estado tem nos custos de produção das indústrias grandes consumidoras, na sua maioria também grandes exportadoras. Se para as duas primeiras recomendações basta seguir o exemplo de outros países, já a terceira choca com a visão ideológica dos nossos governantes que os leva sempre a preferir afogar primeiro as empresas (e os cidadãos) em impostos e depois tentar a reanimação quase sempre sem êxito ou com sacrifícios maiores para todos: Governo anunciou o pagamento este ano de uma compensação de 25 milhões de euros pelos custos indiretos do CELE às indústrias grandes consumidoras de eletricidade e prometeu (o que tem o valor facial das promessas políticas) uma redução de 30% nas tarifas de acesso às redes para 2022. Tudo medidas avulsas de fabrico instantâneo, complicações que eternizam a burocracia do sistema, compensações que parecem favores, com capacidade diminuta de resolver o problema de fundo que está na carga fiscal e nos muitíssimos custos de sistema descarregados nas tarifas que todos, indústria e cidadãos, pagamos.
Este artigo foi publicado na edição bimensal de Julho/Agosto de 2021 da revista Vida Judiciária.
O Direito do Trabalho é – e sempre foi – um ramo de direito privado progressista e de vanguarda.
Na sua origem, esteve a necessidade de proteção da parte mais fraca e a procura do reequilíbrio das prestações. Centrado na criação de condições mínimas de trabalho, na dignificação do trabalho e na justiça contratual, o Direito do Trabalho socializou o direito privado, esteve na criação de normas imperativas mínimas e legitimou a negociação coletiva e as estruturas de representação dos trabalhadores.
O Direito do Trabalho dos séculos XIX e XX teve essa grande virtude: adaptou e moldou o Direito Civil de forma a evitar relações privadas desiguais e injustas, fazendo-o em nome da justiça contratual e social. Numa primeira fase, tratou-se de criar um conjunto de regras próprias para reger o contrato individual de trabalho. É nesta fase que emergem as regras relativas à limitação do tempo de trabalho, ao direito ao repouso diário, semanal e anual, à segurança e saúde no trabalho, à reparação de acidentes de trabalho e à criação do salário mínimo nacional. Mais tarde, tais regras estenderam-se ao domínio do Direito do Trabalho Coletivo. As estruturas representativas de trabalhadores são legitimadas, a negociação coletiva institucionaliza-se e é incentivada e o direito à greve assume a natureza de direito fundamental.
Esta primeira fase do Direito do Trabalho, consistente na criação de um corpo de regras jurídicas próprias e autónomas face às do Direito Civil, marca a autonomia sistemática deste ramo do Direito. E se inicialmente tais regras foram positivadas, apenas, em diplomas legislativos de índole nacional, rapidamente passaram a florescer nas constituições dos Estados modernos. Em primeiro lugar, na Constituição mexicana de 1917; depois, na Constituição de Weimar de 1919; e, de então em diante, na generalidade das constituições aprovadas ao longo de todo o século XX.
Para além deste movimento, relativo à elevação dos direitos laborais a direitos fundamentais, o Direito do Trabalho também se internacionalizou. Com a criação da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, a aprovação e difusão de minimum labor standards tornou-se um imperativo mundial. De então para cá, a OIT criou centenas de convenções e recomendações relativos a múltiplos temas laborais, que fazem parte, hoje em dia, da cultura jurídica mundial: temas relativos à limitação do tempo de trabalho, à proteção contra o despedimento, à igualdade e não discriminação, à conciliação entre a vida profissional e familiar, à salvaguarda dos salários e mesmo à proscrição do assédio laboral, passaram a proliferar à escala global.
Mas cedo se percebeu que não bastava um corpo de regras próprias.
Por isso, paulatinamente, o Direito do Trabalho parte para a construção de um conjunto de princípios (normativos) específicos, que fazem parte do seu processo de interpretação e aplicação. Ou seja, mais do que ter regras jurídicas próprias, o amadurecimento do Direito do Trabalho foi acompanhado da criação de princípios jurídicos que lhe são específicos, que ditam a forma como as suas regras devem ser interpretadas e aplicadas e que só existem neste ramo do Direito. De entre todos, desponta o princípio da proteção do trabalhador – a partícula divina do Direito do Trabalho e o seu norte magnético. Por esta via, mais do que autonomia sistemática, o Direito do Trabalho ganhou, também, autonomia dogmática. Passou a ser um ramo de direito quase completo: com regras próprias, nacionais e internacionais; com princípios jurídicos próprios; e com enorme desenvolvimento jurisprudencial, doutrinário e académico.
O Direito do Trabalho faz parte da nossa vida e gere o quotidiano de milhões de contratos de trabalho celebrados um pouco por todo o mudo.
Mas a sua capacidade de adaptação e de transformação não se ficam por aqui.
Se quisermos encontrar um ramo do Direito que foi capaz de se adaptar à pandemia da doença Covid 19 e de dar resposta rápida e eficaz aos desafios que a mesma nos trouxe, esse ramo do Direito chama-se Direito do Trabalho.
Se bem atentarmos, os grandes mecanismos criados pelos governos, à escala global, para combater a pandemia, passaram, quase sem exceção, pelo Direito do Trabalho – a implementação de mecanismos de lay off simplificado para garantir a manutenção dos empregos; a criação de apoios à retoma progressiva da atividade, para promover a retoma económica das empresas; a imposição de limitações aos despedimentos coletivos para evitar o aumento exponencial do desemprego; bem como o recurso ao teletrabalho e ao trabalho remoto, tiveram por base, invariavelmente, o Direito do Trabalho que conhecemos. Em nome dos valores que promove – a justiça social – e dos princípios que prossegue – maxime o princípio da proteção do trabalhador – o Direito do Trabalho soube encontrar no seu corpo de regras e princípios a forma adequada para dar resposta a uma situação de crise de saúde pública que, se nada fosse feito, facilmente redundaria numa crise social.
O Direito do Trabalho soube, portanto, estar à altura dos acontecimentos, realçando a importância do Direito enquanto ciência humana imprescindível para a regulação da vida em sociedade.
Mas isto não significa o fim da História.
Muito menos o fim da História do Direito do Trabalho.
As próximas décadas vão trazer novos desafios e novas oportunidades que vão voltar a colocar à prova este ramo do Direito.
Com a massificação da robotização, do uso da inteligência artificial, do tratamento de dados em larga escala e da utilização de algoritmos enquanto instrumentos de gestão da relação laboral, teremos, naturalmente, novos desafios que importa acautelar. Seja ao nível da manutenção do emprego e da substituição do homem pela máquina, seja no em matéria de igualdade e não discriminação, seja a propósito da preservação da privacidade e das liberdade individuais, teremos, nas próximas décadas, novos problemas que irão colocar à prova – mais uma vez – o Direito do Trabalho.
Por outro lado, o modelo tradicional do contrato de trabalho, centrado numa única relação laboral (estável) ao longo da vida, que se começou a erodir no final do século XX, parece hoje uma miragem. As relações laborais passaram a ser instáveis, precárias, alicerçadas em plataformas digitais e, não raras vezes, no nomadismo digital. Passámos a ter uma variedade enorme de contratos de trabalho atípicos, que não estão regulados nos códigos do trabalho e nas legislações laborais que conhecemos. Nalguns casos, este movimento é promovido pelos empresários, que procuram fugir à rigidez do Direito do Trabalho. Noutros casos, porém, são os próprios trabalhadores que, em nome da ideia de liberdade e da opção por abraçar “projetos” em detrimento de “empregos”, optam por este novo modo de vida. É o caso dos libertarians, que privilegiam a liberdade individual em detrimento do coletivo e da ordem social ou corporativa, bem como dos millennials, que trocam de emprego com frequência em busca de novos desafios e aventuras ou tão simplesmente para evitar dificuldades típicas de muitas carreiras de evolução lenta progressiva.
Por fim, face a novos universos de trabalhadores – os economicamente dependentes – e perante novos desafios em matéria de transição climática e energética, temos, também, novos reptos em matéria de negociação coletiva. O Direito do Trabalho terá pela frente, também, uma segunda vaga de negociações coletivas – a negociação coletiva para o bem comum (“Bargaining For the Common Good”), que ultrapassam os temas tradicionais dos salários, das carreiras e dos conteúdos funcionais, para dar lugar a novas questões que interessam à comunidade – a proteção de minorias, do clima e da natureza, por exemplo.
As próximas décadas são, portanto, desafiantes para o Direito do Trabalho, o qual, mais uma vez, terá de se (re)adaptar.
A luta pela diminuição do tempo de trabalho e pela melhor conciliação entre a vida familiar e a vida profissional; a proteção da privacidade e dos dados pessoais; a regulação dos algoritmos e da inteligência artificial para evitar despedimentos cegos e o exercício do poder de direção de forma discriminatória; a proteção de novo universos de trabalhadores que não são juridicamente dependentes; a regulação de novas formas de trabalho, como o que se executa nas plataformas digitais; e a modernização da negociação coletiva, são os novos desafios a que o Direito do Trabalho terá de dar resposta.
Ninguém consegue, com honestidade intelectual, prever o futuro.
Todavia, perante o passado que conhecemos e depois de termos assistido, no presente, à resposta dada pelo Direito do Trabalho à crise pandémica das nossas vidas, é capaz de não ser muito difícil, neste caso, antecipar o futuro – o Direito do Trabalho saberá, mais uma vez, estar na vanguarda e regular com propriedade os novos desafios que o progresso nos está a trazer.
É certamente o que todos desejamos.
Este artigo foi publicado na Advocatus no dia 21.09.2021. Pode consultá-lo aqui.
Com a massificação da vacinação “Covid-19”, o último trimestre de 2021 promete ser o do regresso dos trabalhadores às instalações das empresas. Mas, desta vez, tudo aponta para que se trate de um regresso ao trabalho marcado por aquilo a que ontem chamávamos de “Futuro do Trabalho”.
O Futuro já está entre nós e tem um nome: Trabalho Híbrido. Uma combinação feliz entre trabalho remoto e trabalho presencial.
É esta a grande nova tendência das economias ocidentais: Estados Unidos da América, Canadá, Austrália, Brasil e Europa estão a apostar fortemente em modelos de trabalho híbridos que conjugam o trabalho presencial (vertical ou horizontal), com o trabalho remoto que marcou a pandemia.
O trabalho remoto e o teletrabalho, já o sabemos, tem tremendas vantagens para todos os agentes e para a comunidade:
- Para as empresas, potencia a redução de custos com instalações e gera maior capacidade de angariação de colaboradores geograficamente distantes, para além de permitir a continuidade da operação em fases de confinamento;
- Para os trabalhadores, garante-lhes maior liberdade de atuação, melhor conciliação entre a vida profissional e a vida privada, a capacidade de trabalharem para empresas de diversas geografias e a redução de custos e tempo associados a deslocações diárias entre casa e trabalho;
- Para a comunidade, é um enorme fator de redução do commuting, um instrumento de redução das emissões de CO2; uma tremenda oportunidade de desenvolvimento de zonas rurais antes esquecidas e abandonadas; e um importante fator de contenção de novos surtos pandémicos que podem continuar a suceder, por força da variante Delta ou de outras que lhe possam suceder.
Mas o trabalho remoto em regime de exclusividade tem também desvantagens manifestas: acentua o isolamento social; gera maiores dificuldades de progressão na carreira; afasta os trabalhadores das estruturas associativas e sindicais; e reduz o trabalho de grupo, o intercâmbio de ideias e a criatividade dele resultante. O trabalho remoto em exclusividade afasta as pessoas e o contacto humano.
Por isso, o modelo híbrido, em profissões que não exigem uma presença física constante, pode potenciar as vantagens do trabalho remoto e minimizar as suas desvantagens. Garante a rotatividade de trabalhadores e menor aglomeração de pessoas, permitindo aos colaboradores beneficiar de duas realidades que se complementam: o trabalho presencial e o trabalho remoto.
Todavia, para que o mesmo funcione bem, há algumas prevenções a tomar:
- Planeamento: as empresas e os seus departamentos de RH devem planear de forma inteligente e clara a distribuição do trabalho híbrido entre os seus trabalhadores; nalguns casos, por exemplo, os colaboradores trabalham 2 dias por semana em regime presencial e 3 dias em trabalho remoto; noutros, pode ser o inverso; ou podemos ter semanas integrais de trabalho presencial e outras de trabalho remoto;
- Comunicação: o planeamento deve ser devidamente e antecipadamente comunicado aos colaboradores, para que estes possam programar as suas vidas e saber com o que contam; o pior que pode suceder numa organização é falta de comunicação e a utilização de “cortinas de fumo” sobre o modelo a adotar; a incerteza e a falta de comunicação sobre como vai ser o futuro geram ansiedade, “ruído” desnecessário e menor produtividade;
- Envolvimento: os colaboradores devem ser envolvidos na solução; não necessariamente em jeito de consulta ou através emissão de pareceres prévios, mas, pelo menos, através da boa explicitação das regras adotadas e de mecanismos de comunicação constantes e efetivos;
- Adaptação: os planos de trabalho híbrido não devem ser definitivos; devem ser flexíveis, de modo a acompanhar a evolução da pandemia e a adaptação a esta nova forma de trabalho; eles podem (e devem) ser alterados e recalibrados, na medida em que tal se justifique; e os trabalhadores devem ter consciência da natureza temporária dos planos a adotar.
Sabemos que o Futuro do Trabalho não anda para trás e que envolverá trabalho híbrido, nomadismo digital, trabalho em plataformas digitais, muita digitalização e o uso de algoritmos. Com ele, surgem novas oportunidades, mas também novos riscos e desafios que devem ser acautelados.
A solução não está em tentar proibir ou decretar o regresso ao passado, a solução passa pela regulamentação destas novas tendências, em nome da Agenda do Trabalho Digno. O Futuro do Trabalho deve ser acarinhado e regulamentado, para que possa trazer novas oportunidades, trabalhos dignos e mais bem remunerados, com mais liberdade e com menos precariedade.
Este artigo foi publicado pela Advocatus no dia 21.09.2021. Pode consultá-lo aqui.
No atual contexto em que nos encontramos, no qual o teletrabalho se tornou uma realidade sem comparação possível no passado, discute-se a necessidade de reforçar um conjunto de matérias que já se encontram contempladas no Código do Trabalho, mas, relativamente às quais, se pondera algum reforço de um ponto ou de outro em termos de privacidade e limitação do tempo de trabalho/direto à desconexão.
Relativamente ao direito à desconexão, há quem entenda que se encontra positivado na legislação laboral vigente (Código do Trabalho), não considerando qualquer necessidade de alteração. Por outro lado, há quem considere que tal não acontece. Por fim, uma terceira linha de orientação, admite a necessidade de serem feitas algumas clarificações, não obstante admitirem a consagração na legislação laboral.
A implementação “massiva” do teletrabalho fez com que muitos trabalhadores prestassem atividade muito para além do seu período normal de trabalho, mantendo um contacto permanente com a Entidade Empregadora, colegas de trabalho e clientes. Perante esta realidade é de admitir uma intervenção no sentido da clarificação.
Pergunta-se: a clarificação do direito à desconexão deve ser feita por via legislativa? Ou existe alguma outra alternativa?
Pensemos no que sucedeu há uns anos (2017) em França: fruto de vários estudos efetuados por empresas multinacionais que apontavam para o crescente aumento dos níveis de stress e de falta de descanso dos seus trabalhadores, uma das mais emblemáticas e inovadoras alterações legislativas surge a propósito do denominado “direito à desconexão digital”, que até então nunca tinha sido regulado. A alteração legislativa passou a consagrar o dever de as empresas francesas negociarem com os trabalhadores novas regras internas para as comunicações efetuadas fora do horário de trabalho, de forma a limitar o número de horas em que o trabalhador está conectado com a empresa.
A razão é simples: visou-se garantir o período de descanso do trabalhador, promover a conjugação da sua vida privada com a vida familiar e garantir que o mesmo não está indefinida e ilimitadamente conectado com a empresa, através de dispositivos digitais. Quis-se, em suma, evitar que o horário de trabalho se prolongue para além da jornada de trabalho, através da utilização excessiva do correio eletrónico ou de outros meios de comunicação digital que ligam o trabalhador à empresa.
Será que em Portugal a solução pode ser semelhante?
Julgamos que fará mais sentido a regulamentação em sede de contratação coletiva. Mais do que um problema legal, de eventual falta de clarificação na lei do “direito à desconexão”, estamos perante um problema de ordem cultural. Não será fácil inverter uma mentalidade (não só das empresas, mas também dos trabalhadores) que julga desfavoravelmente um trabalhador que se “desconecta” durante o seu período de descanso. Naturalmente que, alterar “mentalidades” não será totalmente pacífico por via da contratação coletiva. Ainda assim, consideramos que será o melhor a fazer.
Por via da contratação coletiva, consideramos que será mais fácil: (i) concretizar as condições em que o direito à desconexão pode, excecionalmente, sofrer limitações; (ii) servir para defender os interesses do trabalhador, contribuindo de forma “educativa” para a moderação da atual prática de conexão permanente; (iii) criar mecanismos de conciliação entre a vida pessoal e familiar; (iv) adaptar o direito à desconexão às realidade do teletrabalho e de regimes híbridos de prestação de trabalho.
Ainda assim, admitimos que, durante alguns anos, muitas questões se podem manter, tais como as solicitações constantes provenientes de clientes. A mudança de mentalidades não será “automática” mas, de forma concertada, mediante acordo entre as partes envolvidas, pode ser melhor prosseguida., mais do que por via de uma clarificação da legislação laboral.
Muito se tem falado sobre a divulgação de dados pessoais pelo Município de Lisboa e sobre a legalidade de uma possível decisão de exoneração do Encarregado de Proteção de Dados, pelo que não vamos entrar aqui pela polémica política ou mesmo sobre a legalidade de uma eventual exoneração do Encarregado de Proteção de Dados do município.
Este artigo não trata, portanto, da transferência de dados pessoais pela Câmara Municipal de Lisboa, nem do papel do Encarregado de Proteção de Dados (Data Protection Officer – DPO) na comunicação de dados pessoais de ativistas russos à Embaixada da Rússia.
Importante é perceber como podem acontecer estas coisas. Por que razão organizações públicas e privadas usam e abusam dos nossos dados pessoais e faltam ao respeito a regras jurídicas claras em matéria de cumprimento e conformidade (compliance), em matérias de ética e responsabilidade social e ambiental.
O objetivo deste artigo é responder à pergunta: o que falta e o que pode ser feito para que estas situações não se repitam.
Parece-nos que o que está em causa é, sobretudo, a falta de “cultura” das organizações. Ou seja, muitas organizações públicas e privadas habituaram-se a fazer o que sempre foi feito, porque sempre foi feito assim, o que lhes dá uma ilusão de segurança, que é, na verdade, uma falsa segurança.
O facto de ter sido sempre assim, feito pelas mesmas pessoas ou por outras que as antecederam na função, acabando por se transformar num processo mecânico, sem qualquer espírito crítico (ou autocrítico), não está bem e acaba por contaminar, como um vírus silencioso, a organização.
As questões associadas à proteção de dados pessoais (que sempre existiram, mas para as quais as pessoas não estavam alerta ou não lhes davam a devida importância) são propícias a encaixar-se nesse padrão de comportamento tão recorrente dentro das organizações, muitas delas, parecendo estar sufocadas ou embrenhadas nos seus próprios procedimentos, sem nunca fazer sequer uma autoavaliação, para já não falar da falta de avaliações independentes.
A implementação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) não é uma tarefa fácil e deve ser transversal a todas as organizações – “de fio a pavio” –, não se podendo ficar pela publicação de um conjunto de políticas e códigos e por alterações de fachada. Nem tão-pouco são aconselháveis alterações profundas sem qualquer adesão ao contexto da organização ou sem um verdadeiro envolvimento dos colaboradores.
De qualquer forma, esta situação nunca poderá ser resolvida por uma só pessoa, sem a participação ativa e proativa dos demais colaboradores e sem que a organização esteja ciente ou preparada para alterar padrões de comportamento e para mudar de vida. E não estamos a falar de uma mudança necessariamente brusca, mas ainda assim de uma mudança radical! Claro que, como todos sabemos, falar em mudança assusta!
Isto para dizer que um Data Protection Officer (DPO) não é um super-homem que vem salvar a organização dos vilões e da inércia dos demais colaboradores. Há que ter em atenção que, muitos vezes, a função de DPO é desempenhada por colaboradores da própria organização, que acumulam essa função com outras funções que já desempenhavam originalmente e que por uma questão de necessidade (ou, melhor, de imposição legal) e de poupança de recursos se veem obrigados a aceitar. Muitas vezes o papel dos restantes colaboradores é inexistente em matéria de proteção de dados, porque, como dizem e se convencem, a proteção de dados nada tem que ver com eles (por ser da competência do DPO), quando não deve ser só da competência do DPO. Assim, a própria organização corre o sério risco de acabar por falhar. E, sem dúvida, que, desta forma, todos falham.
A função de DPO é difícil e exigente. Os DPOs têm de ter experiência, têm de ter formação, têm de se atualizar permanentemente, têm de ter ajuda externa, têm de ter a colaboração, o respeito e a ajuda dos demais colaboradores da organização e têm de ter “poder” para mandar fazer ou impedir que se faça.
Atenção que as questões de cumprimento e conformidade não se circunscrevem apenas à proteção de dados pessoais, ainda que a este nível até deveria ser mais fácil entender a relevância do tema, pois, todos somos titulares de dados pessoais, pelo que, mais cedo ou mais tarde, cada um de nós até poderá ser afetado por uma qualquer inércia nesta matéria.
Esta inércia é muito comum quando procuramos apurar o nível de cumprimento e conformidade (compliance), ou, melhor, o seu estado de desenvolvimento. Muitas vezes, esse estado é precário, ainda que se crie a falsa ilusão que assim não é, pois, a organização até tem um código de conduta e de ética, várias políticas, processos e procedimentos em curso. A organização até acaba por se convencer que está a fazer tudo bem, pois nunca houve uma situação de incumprimento grave ou muito grave; até ao dia…
Um dos erros mais comuns é pensar que uma cultura da organização surge por magia de códigos e políticas copiadas de manuais de outras organizações mais evoluídas com uma revisão superficial, mas não deve ser assim.
Uma cultura de ética e de conformidade decorre, em primeira linha, da intenção da organização em fazer bem, em fazer o que está certo, da consciência de que há sempre margem para melhorar e que, para isso, é preciso contar com as pessoas – não daquele colaborador em particular ou apenas da direção de topo –, mas de todos. Mais: é preciso ter a abertura para se aceitar ser sujeito a um escrutínio verdadeiramente independente para que as organizações não estagnem nem perpetuem os mesmos erros. É preciso cultura…
Há dias, o Diário da República publicou a Lei n.º 29/2021, na qual se permite às micro e pequenas empresas e empresários em nome individual em situação de crise empresarial e às empresas sujeitas a encerramento por determinação legal ou administrativa no âmbito das medidas de controlo da COVID-19, pedir a suspensão sem custos dos contratos de fornecimento de água, gás, energia e comunicações eletrónicas. A lei é simples e de certo modo autoexplicativa: são 60 dias de suspensão, sem qualquer custo para o utilizador dos serviços, que deve ser requerida até ao dia 15 de cada mês para se aplicar a partir do início do mês seguinte, sem necessidade de aguardar a resposta do operador, já que os requerimentos se consideram tacitamente deferidos. Na prática, quem, no âmbito da pandemia da COVID-19, decidir encerrar (obviamente, quem não encerra precisará dos serviços) ou for obrigado a encerrar o seu estabelecimento, poderá não ter de pagar durante dois meses as contas dos serviços que não vai utilizar no período em que estiver encerrado.
Perante tal simplicidade (não fora faltar a aprovação do fatídico modelo de requerimento pelos reguladores dos serviços essenciais abrangidos - não vivemos sem formulários no nosso país), cabe perguntar: porquê só agora? Não estamos todos à espera de em julho (o primeiro mês a que esta medida se poderá aplicar) ter a economia em recuperação? Será que a Assembleia da República espera novas medidas de encerramento administrativo este ano? E por que razão não se aplicou esta medida durante o estado de emergência, nomeadamente às empresas que foram obrigadas a encerrar por longos períodos quer em 2020, quer já em 2021? E porquê só 60 dia de suspensão?
O reconhecimento de que a COVID-19 implicou uma profunda alteração das circunstâncias em que as empresas tiverem e terão de viver, deve trazer consigo o reconhecimento de que muitos contratos deviam ter sido e ainda têm de ser alterados para que não se tornem excessivamente onerosos para as partes mais afetadas pela pandemia.
Não somos adeptos de que seja o Estado a fazê-lo. Preferimos que, em primeiro lugar, sejam as partes consensualmente a tomar as medidas de reequilíbrio contratual e que, em segundo lugar, na falta de acordo, esse papel caiba aos tribunais. Reconhecemos, no entanto, que tem havido por parte dos intervenientes menos afetados nos diversos mercados muita dificuldade em facilitar um pouco a vida àqueles mais afetados pela pandemia. Veja-se o caso da guerra aberta entre proprietários de centros comerciais e lojistas. Já os tribunais fazem o que podem ao ritmo que podem, ritmo esse, no entanto, que nem sempre se ajusta à necessidade de uma justiça efetiva, como sabemos. Diga-se, no entanto, que recentemente os tribunais portugueses já declararam que a pandemia da COVID-19 é fundamento para resolução dos contratos de arrendamento comercial por parte dos arrendatários e deram razão a lojistas em centros comerciais que se opuseram ao pagamento de rendas fixas que lhes estavam a ser indevidamente exigidas. Pena que a justiça seja cara e de difícil acesso para a maioria das empresas e estabelecimentos individuais mais afetados pela pandemia.
No caso dos contratos de serviços essenciais, também seria de esperar que, estando as empresas mais pequenas temporariamente impossibilitadas (pelo impacto direto da pandemia ou das medidas de encerramento) de fazer uso de tais serviços, lhes não fosse exigido o qualquer pagamento contratual por parte dos operadores. Bastava que os operadores emitissem notas de crédito às pequenas empresas relativamente aos meses durante o estado de emergência em que não tivessem registado quaisquer consumos. Infelizmente, que saibamos, nenhum dos operadores tomou essa iniciativa, mas ainda vão a tempo…!
Assim, embora talvez uma iniciativa da Assembleia da República se justificasse, esta agora posta em prática é curta: o limite de 60 dias não se entende, antes devia estender-se a todo o tempo em que não houvesse consumos enquanto haja estado de calamidade; devia prever-se também a possibilidade de resolução sem custos, nomeadamente os de fidelização. E já nem nos atrevemos a sugerir a retroatividade (essa deve ficar à consciência dos operadores). Por outro lado, a iniciativa chega tarde, pois era bem mais precisa quando o país estava em estado de emergência e muitas empresas sujeitas a encerramentos administrativos. Esta medidas podiam ter-se tomado em abril, maio ou até dezembro de 2020, quando se tomaram outras para garantir o acesso individual e das famílias a serviços essenciais. O atraso parece ficar a dever-se a uma falta de planeamento das medidas de apoio, sobretudo às empresas, medidas que vêm ao sabor das agendas políticas e que têm, por isso, resultado numa deficiente e errática produção legislativa com custos e ineficiências que eram evitáveis.
Esperemos que poucos precisem dela e que esta lei valha pouco mais agora que nunca, já que o contrário significaria que os tempos difíceis estariam de volta. E ninguém quer que o mal nos volte a bater à porta!
A Inteligência Artificial visa criar modelos de inteligência através de programas de computador que, por sua vez, conseguem, a partir da análise de padrões de comportamento, deduzir ou inferir novos conhecimentos a partir de conhecimentos pré-existentes.
Isto leva-nos então a perguntar-nos se a inteligência não é uma capacidade exclusiva do ser humano? Afinal, as máquinas podem pensar? E aqui surgem dúvidas.
Com vista a obter resposta para algumas dessas questões, Alan Turing, no seu artigo Computing Machinery and Intelligence , desenvolveu um teste que ficou conhecido como The Imitation Game (ou “Teste de Turing”), cujo principal objetivo era o de verificar a capacidade de uma máquina de revelar um comportamento inteligente equivalente ao de um ser humano.
O Teste de Turing envolvia três participantes: um homem e uma mulher, que ficavam na mesma sala, e um interlocutor, que, numa outra sala isolada, colocava questões por escrito aos outros dois participantes, por forma a descobrir qual deles era o homem e a mulher. O interlocutor não podia ter qualquer contacto com os dois outros participantes.
Mas, e se, sem o interlocutor saber, um desses participantes fosse substituído por um computador? O interlocutor conseguiria distinguir o participante humano da máquina? Houve casos, em que conseguiu, mas noutros não, e o computador venceu o teste. Nesta situação, poderemos dizer que o computador pensava? E pensava de forma semelhante a um ser humano?
Salvo melhor opinião, a resposta deve ser negativa. Claro que, no Teste de Turing, para além dos seus resultados ficarem dependentes da inteligência do interlocutor, o teste não permitia, de um modo geral, distinguir entre o “ser” e o “parecer ser” inteligente. De qualquer forma, é inegável que o Teste de Turing é ainda hoje uma referência para os estudos sobre Inteligência Artificial, de que é exemplo o teste de CAPTCHA (da abreviatura de Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans Apart), utilizado para evitar spam.
A pergunta e a resposta anteriores não são, porém, descabidas.
O pensamento é uma característica inata do ser humano que, embora possa ser (ou vir a ser) parcialmente replicado por máquinas, dificilmente poderá vir a ser replicado em termos gerais – a chamada Inteligência Artificial geral.
É verdade que hoje em dia já existem máquinas de Inteligência Artificial em diversos campos, por exemplo, na medicina, ao nível da radiologia e do prognóstico médico, que são evoluídas e que permitem substituir o Homem em determinadas tarefas por ele anteriormente realizadas e até mesmo obter resultados a partir da análise de um manancial de informação. Também já existem veículos autónomos. Aliás, há bem pouco tempo, um desses veículos autónomos não conseguiu impedir a colisão contra um peão, que atravessava fora da passadeira e num local pouco iluminado, o que reacendeu a questão de saber de quem seria afinal a responsabilidade. Do Homem ou da máquina?
Mais uma vez, a resposta parece ser: do Homem, que criou a máquina, mas a questão (e a sua resposta) não são tão simples quanto, à primeira vista, poderiam parecer.
Como jurista de profissão, não poderia, assim, deixar de assinalar que há (novas) questões éticas, que terão um reflexo relevante no Direito e, nomeadamente, nos “modelos clássicos” de imputação, que poderão não vir a servir nos casos de Inteligência Artificial.
Imaginemos, por exemplo, uma máquina de Inteligência Artificial, que é utilizada por uma instituição hospitalar, para ministrar medicamentos a um doente e que, num dia, ministra uma dose errada e, em resultado disso, o doente acaba por falecer. De quem é a responsabilidade? Da instituição hospitalar? Do fabricante da máquina? De ambos? E a que título? Há responsabilidade subjetiva, que implica a existência de culpa?
Ora, a perceção do que é moralmente certo ou errado é uma caraterística da existência humana, que apenas, de forma inverosímil, ou se se quiser, artificial, poderá ser replicada por máquinas, pelo que, até que medida poderá fazer sentido dizer que a culpa foi da máquina?
E a responsabilidade objetiva, mais facilmente enquadrável naquela situação em que o veículo autónomo atropela o peão, poderá ser aplicável aos casos de Inteligência Artificial? Até que ponto os atuais modelos de imputação permitem responder cabalmente ao uso da Inteligência Artificial?
Talvez por isso não seja mal pensado começar, ao estilo do autor de ficção científica Isaac Asimov, no conto Runaround («Eu, robot»), por definir três “leis” (princípios), pelos quais se deverá pautar a ”relação Homem/máquina”: (1) Um robot não pode lesar um ser humano ou permitir, por omissão, que um ser humano seja lesado; (2) Um robot deve obedecer ao ser humano, salvo quando essas ordens entrem em conflito com o primeiro princípio; (3) Um robot deve proteger a sua própria existência, desde que tal não entre em conflito com o primeiro ou segundo princípios.
A estes três princípios encontra-se subjacente uma ideia fundamental: que o ser humano é o princípio, meio e fim da Inteligência Artificial e que, portanto, a responsabilidade pelos actos e omissões das máquinas não poderão deixar de ser também afinal uma responsabilidade humana, até para se salvaguardar que, dolosamente, sejam cometidos crimes por humanos através de máquinas com o objetivo de a estas últimas se imputar a culpa. Como isso se fará já é outra questão, que terá de encontrar uma resposta na Ética antes de passar para o Direito ou, se se preferir, ser resolvida pelo Direito a partir da Ética.