Este artigo foi publicado pelo jornal Dinheiro Vivo no dia 09-03-2022. Poderá lê-lo aqui

 

Muitas empresas ainda limitam o âmbito da sua responsabilidade e ética empresarial ao mero cumprimento de obrigações de fonte legal. A rentabilidade continua a ser o critério principal, se não o único (em muitos casos), pelo qual pautam as suas decisões de negócio.

Mudanças sociais, legais e regulamentares estão, porém, a forçar as empresas a adotar uma abordagem diferente. A título de exemplo, as empresas devem agora fornecer uma divulgação clara não apenas da sua posição financeira, mas também não financeira, nomeadamente dos seus princípios e práticas de bom governo, e de responsabilidade social. Devem também contribuir para o respeito pelos direitos humanos, proibir qualquer discriminação no emprego e agir de uma forma social e ambientalmente responsável, aparecendo a sustentabilidade e o ESG (Environment, Social and Governance), como um “mote” agregador desta atual tendência, que veio (e bem) para ficar e com a visibilidade devida. 

No mundo de hoje, a governação societária, a responsabilidade social das empresas/sustentabilidade e o compliance devem funcionar em uníssono. Os pontos de vista tradicionais sobre competitividade e rentabilidade estão a mudar. E a mudança vai ser vertiginosa.

Algumas destas questões há muito que são reguladas, mas o controlo das práticas empresariais por outros intervenientes só agora tem vindo a crescer. Clientes, fornecedores, colaboradores e a sociedade em geral estão a prestar cada vez mais atenção à forma como as empresas se comportam socialmente e a exigir que satisfaçam determinados critérios, que as colocam em um diferente patamar da competitividade. Disto também dependerá a competitividade da empresa e o seu posicionamento no mercado face aos demais concorrentes.

Com efeito, é essencial que as empresas decidam rever as suas práticas de governação, não só para cumprir com as suas obrigações estatutárias, mas também para definir o seu posicionamento interno e no mercado, assim como assegurar a sua responsabilização perante os seus stakeholders (partes interessadas).

Desafios e mudanças no compliance

As empresas enfrentam também novos desafios em áreas como a gestão da diversidade e a igualdade de oportunidades, com o objetivo de aumentar proporcionalmente posições ocupadas por minorias e mulheres em cargos superiores.

A gestão da diversidade centra-se na valorização da "diferença" e na não discriminação, bem como no respeito por cada indivíduo no local de trabalho, independentemente da sua raça, género ou orientação sexual. O anti assédio, que recentemente ganhou força com o movimento "#MeToo", é outra preocupação que está a impulsionar a introdução de novas políticas e procedimentos no local de trabalho.

Assistimos também a um surto de novas leis e regulamentos em relação à responsabilidade social, sustentabilidade, prevenção do branqueamento de capitais, anticorrupção, proteção de dados pessoais, entre outros.

A responsabilidade social e a sustentabilidade - reconhecendo o papel de uma empresa na sociedade - através, por exemplo, de apoio mecenático e responsabilidade ambiental - não devem ser vistas como uma ferramenta de marketing para maximizar os lucros futuros, mas como um contributo para o bem-estar de todos os interessados: colaboradores, acionistas, fornecedores, clientes e sociedade.

A ética é uma parte essencial e complementar do compliance

Os investidores estão a mudar a forma como analisam o desempenho de uma empresa e tomam decisões com base em critérios que incluem considerações éticas. Há provas de que o comportamento ético empresarial está a ter um impacto crescente nas perceções de mercado das partes interessadas e nas decisões dos investidores e clientes relativamente à escolha das empresas da sua cadeia de fornecimento.

Em organizações com uma fraca cultura e ética empresarial, os colaboradores tendem a comportar-se de uma forma que pode levar a comportamentos pouco éticos e prejudiciais, aumentando o risco de violações e danos subsequentes.

Ora, as empresas serão obrigadas a assumir a responsabilidade pela sua gestão e pelos actos dos seus colaboradores, a menos que possam provar que realizaram todos os esforços para dissuadir ou aconselhar contra comportamentos ilegais e/ou fraudulentos. 

Por isso, é essencial que todos os colaboradores recebam formação relevante e que sejam desenvolvidos controlos em toda a empresa envolvendo todos os departamentos, especialmente os jurídicos e de compliance. As políticas, procedimentos ou controlos não serão eficazes se não forem preparados, implementados e aplicados de uma forma muito mais inclusiva dentro da empresa.

A chave não é apenas seguir a lei, mas ensinar aqueles dentro da empresa que o que deve ser feito não é uma escolha. A empresa deve compreender o "porquê" daquilo que deve ser seguido e o "porquê" de dever ser seguido enquanto prioridade empresarial.

O compliance não é uma tendência passageira

O compliance não pode ser reduzido a um conjunto de listas de controlo. Não existe uma solução de conformidade de tamanho único. 

Os departamentos jurídico e de compliance devem tomar medidas para desenvolver um quadro de promoção de ética empresarial e de compliance jurídico dentro da empresa e sobretudo à medida da sua organização. Estas medidas devem incluir:

  • Implementação de auditorias jurídicas internas;
  • Disponibilização regular de informação dentro da empresa sobre responsabilidade social empresarial e compliance jurídico;
  • Transmitir internamente informações relevantes sobre legislação local e outra legislação relacionada com a empresa;
  • Proporcionar cursos/workshops de formação sobre ética empresarial e compliance jurídico para cada colaborador e discutir a prevenção de condutas incorretas em toda a empresa; e,
  • Criação de uma linha de apoio à ética empresarial e ao compliance jurídico, ou seja, um sistema interno de denúncias.

As empresas devem compreender que a governação societária, responsabilidade social e compliance afetam toda a empresa, incluindo o conselho de administração, a direção, os acionistas, os colaboradores e outras partes interessadas. Está a tornar-se um exercício quotidiano para o qual devem estar totalmente preparadas.

É tempo de as empresas repensarem o compliance jurídico para além da tradicional gestão de risco e vê-lo como um activo empresarial estratégico. Responsabilidade, transparência e diálogo podem ajudar a tornar uma empresa mais fiável e a impulsionar os padrões de outras empresas ao mesmo nível. Todos ganham, mas não já necessariamente no sentido tradicional do lucro!

Este artigo foi publicado na Revista Advocatus no dia 8 de Março de 2022, poderá lê-lo através deste link

 

Depois de quase dois anos de constante publicação de novas leis com impactos laborais, o novo ano começou com mais uma alteração à legislação laboral.

 Motivada pela pandemia COVID-19, a mais recente alteração ao Código do Trabalho entrou em vigor no passado dia 1 de janeiro de 2022, modificando significativamente o regime de teletrabalho.

No âmbito das alterações, passou a ser possível a definir, por Regulamento Interno, as atividades e as condições em que a adoção do teletrabalho pode ser admissível, bem como, no caso de os equipamentos e sistemas utilizados no teletrabalho serem fornecidos pelo empregador, as respetivas condições de uso para além das necessidades do serviço. Este Regulamento, que decorre do poder regulamentar previsto no artigo 99.º do Código do Trabalho, deve ser, publicitado com observância do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, aprovado pelo Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016.

A regulamentação introduzida pela nova lei é “escassa” o que, naturalmente, dificulta a sua aplicação e conhecimento, quer pelas entidades empregadoras, quer pelos trabalhadores. Por isso, apesar de não ser obrigatória a elaboração deste Regulamento, todas as empresas, independentemente da sua dimensão, devem adotá-lo, por uma questão de transparência e uniformização de procedimentos.

O Regulamento em causa é um instrumento “complementar” às novas disposições normativas.

É importante para os trabalhadores saberem quais as condições em que é possível beneficiarem do regime de teletrabalho, através de regras concisas e claras, para que não surjam dúvidas. Estas regras devem ser cumpridas pela entidade empregadora e trabalhadores, e constituem um conjunto de medidas que contribuem para o sucesso da relação laboral, pois é a partir delas que todos sabem até onde podem ir e como devem agir.

O Regulamento permite que os trabalhadores tenham conhecimento de quais os seus direitos e deveres em matéria de teletrabalho, diminuindo os potenciais conflitos na empresa.

O regulamento interno de teletrabalho permite também que as regras sejam aplicadas de forma igual para todos os teletrabalhadores, não criando sentimentos de injustiça entre os mesmos.

Para que seja atingido o objetivo da sua elaboração, o regulamento deve conter, entre outros elementos, os seguintes: (i)  regime de teletrabalho; (ii) duração do acordo de teletrabalho; (iii) procedimento para denúncia e cessação do acordo de teletrabalho; (iv) procedimento para aplicação do regime (v.g. forma de requerer a sua aplicação; critérios aplicáveis pela entidade empregadora para decidir relativamente à sua aplicação, situações de recusa pela entidade empregadora) (v) forma e conteúdo do acordo; (vi) direitos e deveres das partes;  (vii) mecanismos de controlo da assiduidade do teletrabalhador; (viii) procedimento e formalidades a cumprir para comprovação de despesas adicionais em que o trabalhador incorra com o novo regime; (ix) regras de utilização dos instrumentos de trabalho e (x) medidas de prevenção de isolamento do trabalhador (v.g periodicidade de realização de reuniões presenciais na empresa; indicação da pessoa com quem o teletrabalhador deve ter contacto na empresa com determinada regularidade).

Em suma: o Regulamento Interno mencionado nas mais recentes alterações ao Código do Trabalho permite regulamentar o regime de teletrabalho nalguns dos seus aspetos essenciais, contribuindo para a aplicação de regras claras e uniformes entre todos, o que é especialmente relevante numa situação de contacto “à distância” entre empregador e trabalhador.

Este artigo foi publicado no Jornal Dinheiro Vivo, no dia 19-02-2022. Poderá encontrar essa versão aqui

Em 1996, Nick Szabo criou o termo smart contract num artigo revolucionário sobre a introdução da tecnologia digital no domínio dos contratos. Nesse artigo, Nick Szabo afirmou: "[n]ovas instituições, e novas formas de formalizar as relações que compõem estas instituições, são agora possíveis graças à revolução digital. Chamo a estes novos contratos "inteligentes" porque são muito mais funcionais do que os seus antepassados inanimados inscritos em papel. Não está implícito o uso de inteligência artificial. Um contrato inteligente é um conjunto de promessas, definidas digitalmente, incluindo protocolos dentro dos quais as partes executam estas promessas"[1].

Após 1996, o surgimento da tecnologia da blockchain permitiu a criação de novos sistemas de registo descentralizado de direitos, contratos e outros actos e factos jurídicos.

Existem várias classificações de smart contracts e smart legal contracts, consoante sejam total ou parcialmente automatizados e registados num sistema de blockchain ou não[2]. Neste artigo usamos a expressão smart contract, que se pode traduzir como “contrato inteligente”, na sua formulação mais simples e abrangente, ou seja, como as instruções informáticas que representam a intenção das partes em criar uma obrigação, mandar fazer um pagamento, adquirir um bem ou serviço ou desencadear um outro evento que tenha uma consequência jurídica.  

Os primeiros exemplos de contratos inteligentes foram as máquinas de venda automática. Ao inserir uma moeda numa máquina de venda automática, a pessoa que inseriu a moeda compra um snack ou uma bebida ao proprietário ou ao operador da máquina. As máquinas de venda de bilhetes são também antigos contratos automáticos, ou seja, auto-executáveis, através dos quais uma pessoa adquire o direito a usar um serviço de transporte, entrar num cinema, etc.

Mais recentemente, os contratos online com a Amazon e outros distribuidores online são também formas de contratos de compra automatizados que se enquadram no conceito de contrato inteligente porque permitem aos clientes adquirir bens e serviços ao dar instruções automatizadas através de uma máquina.

Em qualquer dos exemplos acima, existe um contrato com "linguagem natural" subjacente, ou seja, numa linguagem usada por pessoas e não instruções codificadas dadas a um computador. Muitas vezes, quando celebramos um contrato online, somos obrigados a aceitar um contrato padrão, por vezes numa língua estrangeira que podemos não compreender totalmente. Isto levanta questões sobre a validade dessas cláusulas face às leis de proteção dos consumidores. Não nos preocuparemos com estas implicações neste artigo. Neste artigo procuraremos estabelecer de que forma os "contratos codificados informaticamente", na sua definição mais ampla, podem ser usados na generalidade dos contratos.

As smart clauses ou "cláusulas inteligentes", se assim as quisermos designar, são instruções informáticas que usam linguagem informática e que podem, como vimos acima, traduzir-se no cumprimento de uma obrigação ou desencadear a verificação das condições contratuais. As obrigações codificadas informaticamente podem ser auto-executáveis na medida em que não necessitam de intervenção humana. As disposições contratuais codificadas informaticamente são agora usadas em todos os contratos online porque cada serviço ou produto adquirido online desencadeia consequências jurídicas, tais como a obrigação de pagar e a obrigação de fornecer um serviço ou bem.

A entrada em vigor e execução de contratos online têm ocorrido sem perturbações para os sistemas jurídicos. As leis de muitos países aceitam a validade dos contratos online. Os litígios que emergem desses contratos têm sido resolvidos de uma forma razoavelmente satisfatória porque os fornecedores que valorizam os seus clientes estão dispostos a resolver as reclamações de forma amigável e os clientes insatisfeitos com os fornecedores deixam pura e simplesmente de comprar a esses fornecedores. A lei da oferta e da procura que rege os mercados desenvolvidos e justos acaba por retirar a pressão do sistema, embora algumas cláusulas contratuais impostas aos consumidores e a conduta de alguns fornecedores online sejam por vezes ilegais e abusivas.

O entusiasmo em relação aos contratos inteligentes vai muito para além dos simples contratos entre empresas (ditos contratos B2B) e consumidores particulares (contratos B2C), onde a informação codificada informaticamente se traduz em ordens de serviço e de compra e/ou instruções de pagamento.

As cláusulas inteligentes codificadas em linguagem informática auto-executável podem incluir termos e fórmulas de pagamento complexas, definir condições suspensivas ou resolutivas e situações de incumprimento e ainda criar garantias reais ou pessoais. As cláusulas inteligentes podem ser usadas em todos os tipos de contratos, incluindo contratos complexos entre empresas, nomeadamente contratos de financiamento, compra e venda de ações, emissão, aquisição e alienação de valores mobiliários e outros títulos, ofertas em bolsas de valores, derivados financeiros, mercados de futuros, acordos de reestruturação, contratos de empreitada, etc.

Além disso, alguns aspetos de natureza técnica podem ser ligados a cláusulas inteligentes de modo a atribuir efeitos jurídicos a parâmetros técnicos definidos no contrato, nomeadamente em contratos de gestão e manutenção de redes de telecomunicações, redes elétricas, produção de energia, requisitos de software, etc. Atualmente, muitas dessas questões técnicas são deixadas à margem do contrato e colocadas em termos contratuais propositadamente vagos, que se traduzem no uso de expressões como "melhores esforços" e na submissão de decisões contratuais a juízos de razoabilidade. Em outros casos, quando esses assuntos se tornam irresolúveis pelas pessoas que gerem o dia-a-dia do contrato, as partes recorrem a mecanismos de mediação de conflitos ou mesmo a arbitragem ou aos tribunais.

Para poder desenvolver com sucesso contratos inteligentes, existem cinco regras práticas básicas que visam assegurar que as cláusulas inteligentes não vêm levantar questões mais difíceis do que aquelas que surgem nos contratos tradicionais.

Primeiro, as cláusulas inteligentes devem ser traduzidas em linguagem natural. Isto significa que qualquer cláusula inteligente deve ter uma cláusula equivalente em linguagem natural. A cláusula de linguagem natural deve ser tão objetiva e precisa quanto a cláusula inteligente e não incluir conceitos abertos que não possam ser traduzidos para a cláusula codificada informaticamente.

A necessidade desta regra não resulta de qualquer imposição legal, serve antes uma necessidade prática: as cláusulas devem ser compreensíveis por pessoas sem um conhecimento muito profundo da lei e dos aspetos técnicos do contrato. Os juízes e os decisores empresariais devem ser capazes de compreender as obrigações essenciais do contrato.

Se as cláusulas principais do contrato, que afetam o cumprimento do contrato, dependerem de uma cláusula codificada (que careça de uma equivalente em linguagem natural), será difícil compreender porque é que as partes escolheram essa solução em vez de outra. Obviamente, há contratos que tratam de assuntos técnicos complexos e difíceis de compreender, seja na sua formulação jurídica ou na sua envolvente comercial e técnica. Contudo, na maioria dos casos, os principais termos comerciais e técnicos são formulados em "linguagem natural" nos contratos e são compreendidos pelas pessoas presentes à mesa da negociação, mesmo quando incluem anexos técnicos complexos.

Em segundo lugar, o conteúdo das cláusulas inteligentes deve ser aberto e passível de auditoria. Isto significa que a aceitação do código deve ser feita por quadros técnicos ou assessores contratados por cada uma das partes. Este requisito visa garantir a igualdade das partes. As cláusulas inteligentes devem ser compreendidas e controladas por ambas as partes.

Não deve haver uma parte a controlar o código informático e as consequências da instrução gerada por esse código. Nos atuais contratos em linguagem natural, onde os aspetos técnicos, jurídicos e comerciais podem ser geralmente compreendidos pelas partes, cada parte deve ser assessorada pelos seus próprios advogados internos ou externos. Nos contratos em linguagem codificada, uma assimetria no conhecimento pode ser mais prejudicial do que não ter advogado. É necessário ter uma assessoria técnica especializada e procedimentos de verificação das cláusulas codificadas.

Em terceiro lugar, as cláusulas inteligentes devem ser protegidas. A integridade é um elemento-chave de qualquer contrato. Nos contratos em linguagem natural, a redação das cláusulas não pode ser alterada por uma das partes. Isto é assegurado na redação do contrato e através de outros requisitos formais impostos por lei ou acordados pelas partes. A adulteração das palavras de um contrato significa falsificar o conteúdo do contrato. As mesmas regras aplicam-se às cláusulas inteligentes e aos contratos inteligentes.

No entanto, como as cláusulas inteligentes são geralmente auto-executáveis, as consequências de uma possível adulteração do código do software contratual são mais diretas e podem originar um efeito “bola de neve” impossível de parar. Por esta razão, a integridade das cláusulas inteligentes deve ser assegurada.

Os sistemas de blockchain são uma forma adequada de garantir a integridade dos contratos porque os blocos de um blockchain não podem ser alterados sem o acordo dos nós do sistema (todos ou um número significativo de participantes no sistema, dependendo do tipo de algoritmo de consenso que é usado). Isto assegura a integridade do contrato de uma forma tão eficiente, se não mais eficiente, que os atuais serviços de registo de propriedade e registos civis e comerciais administrados pelos Estados ou outros sistemas centralizados, como é o caso das bolsas de valores. Contudo, a blockchain não é a única forma de garantir a integridade de um contrato inteligente. As partes podem nomear uma entidade independente para guardar o código ou mesmo controlar a sua aplicação.

Quatro, as cláusulas inteligentes que desencadeiam consequências jurídicas que exijam a intervenção humana não devem ser deixadas ao critério de uma das partes. Embora muitas cláusulas inteligentes estabeleçam mecanismos de auto-execução controlados por máquinas, há casos em que a intervenção humana é necessária para preencher lacunas ou interpretar os dados. Esta decisão não deve ser tomada por uma das partes.

Por exemplo, se o contrato estipula que uma das partes deve fazer um pagamento à outra se a temperatura atingir 45 graus e dois registos informáticos oficiais indicarem temperaturas diferentes, enquanto um assinala 44,9 graus o outro 45 graus, terá de ser tomada uma decisão sobre se a condição de pagamento foi ou não cumprida.

Este exemplo sustenta o facto de pequenas discrepâncias nos registos digitais ou a inexistência de um registo digital independente poderem exigir a intervenção humana para verificar ou certificar a verificação de condições contratuais auto-executáveis. Nesses casos, a pessoa responsável por essa decisão deve ser independente das partes.

Na Ethereum, as partes contratantes podem nomear pessoas, denominados “oráculos”, para tomar decisões que irão desencadear ou não a verificação de uma condição do contrato. Esta solução é adequada para contratos inteligentes registados na Ehtereum. Para contratos inteligentes fora de uma blockchain, as partes podem contratar entidades independentes e atribuir-lhes a função de preencher os dados em falta ou resolver inconsistências em registos digitais ou registos oficiais.

Cinco, os contratos com cláusulas inteligentes devem incluir mecanismos de resolução de litígios eficazes e rápidos. Como as cláusulas inteligentes podem aumentar o nível de complexidade do contrato e os tribunais não estão ainda preparados para lidar com estes problemas, os contratos inteligentes deveriam conter mecanismos de resolução de litígios.

Nos contratos online B2C existentes, muito poucas disputas são resolvidas nos tribunais porque o seu valor é baixo. Muitas vezes, o consumidor abstém-se simplesmente de comprar ao fornecedor que não cumpriu a sua obrigação de entrega. Esta não é a forma ideal de resolver os litígios que hoje em dia ficam por resolver, pelo que deveria ser criado um sistema transnacional de resolução dos litígios mais eficaz.

Em contratos mais valiosos, os litígios podem ser levados aos tribunais, mas o tempo de resolução pode ser demasiado longo para reparar os danos sofridos. As partes confiarão mais nos contratos inteligentes que contiverem mecanismos de resolução seguros e expeditos, como sejam os mecanismos de mediação e arbitragem que permitam assumir o controlo do código, parar ou corrigir o seu uso indevido, e reparar ou corrigir o código que se revelou não alcançar os objetivos pretendidos pelas partes.

Os contratos inteligentes são uma das maiores invenções da viragem do século. Melhoram a eficiência, aumentam a velocidade e a qualidade na entrega de bens e serviços.

Incluir cláusulas inteligentes em contratos de linguagem natural e criar sistemas adequados de resolução de litígios apoiados por mecanismos robustos de controlo e verificação serão os primeiros passos para criar contratos inteligentes.

A ideia de que robôs e máquinas poderão um dia substituir os seres humanos fascina e assusta muitas pessoas. A literatura, o cinema e os desenhos animados dão-nos imagens de robôs que assumem o controlo da humanidade num futuro não muito distante. Até ao início do século XXI, o tema da inteligência artificial estava confinado ao mundo académico, à ficção científica e a algumas indústrias. No final do século passado, a Google trouxe a inteligência artificial para vida de todos nós de uma forma palpável.

A inteligência artificial está em todo o lado, nas redes sociais, na publicidade, na investigação científica, no desenvolvimento industrial, entre tantas outras coisas. Muitos programas informáticos são alimentados por motores de inteligência artificial. Os telemóveis, computadores e outros aparelhos eletrónicos incorporam sistemas de inteligência artificial.

Mas a revolução da inteligência artificial parece não ter chegado ao mundo do Direito. Obviamente, muitos advogados e escritórios de advogados usam sistemas de inteligência artificial, alguns deles concebidos especificamente para advogados. Mas a inteligência artificial não transformou a advocacia da mesma forma que transformou outras atividades.

As mudanças provocadas pelas tecnologias de inteligência artificial, tornam necessário discutir o papel da inteligência artificial no futuro da advocacia e do Direito.

Comecemos por definir “inteligência artificial”. Segundo a Enciclopédia Britânica “a inteligência artificial (IA) é a capacidade de um computador digital ou robô controlado por computador para executar tarefas normalmente associadas a seres inteligentes”. “Inteligência artificial” designa a capacidade de uma máquina simular a lógica de um algoritmo. Um algoritmo é uma sequência finita de instruções determinadas que são utilizadas para executar uma operação. Os algoritmos são utilizados como especificações para efetuar cálculos, processar dados, elaborar raciocínios ou tomar decisões de forma automatizada e outras tarefas. A inteligência artificial dá às máquinas a capacidade de perceber um determinado ambiente e de tomar medidas para alcançar os objetivos estabelecidos por um programa informático.

Para alguns advogados, é impossível que a inteligência artificial seja aplicável ao mundo do Direito, pelo menos no que respeita aos assuntos jurídicos mais complexos, porque a atividade jurídica, independentemente da sua forma, trabalha com “palavras”. A retórica e a gramática sempre estiveram no cerne de todas as profissões jurídicas. As palavras podem ser ambíguas, ter múltiplos significados dependendo do contexto e da sua ordem na frase. A interpretação das palavras parece ser uma atividade puramente humana.

Contudo, devido à sua natureza “prescritiva”, o Direito e a lei dependem de simples processos de raciocínio dedutivo, o que torna o Direito numa atividade apta para “codificação” através de inteligência artificial. Em termos mais simples, o Direito não é imune à inteligência artificial; pelo contrário, o Direito é um campo ideal para a inteligência artificial. Para que isso aconteça, é preciso “codificar o pensamento jurídico”.

Para “codificar o pensamento jurídico” é necessário criar os processos que permitirão às máquinas interpretar leis, contratos e decisões judiciais, o que parece estar ainda longe porque as “palavras”, as “decisões judiciais”, as questões jurídicas, em geral, assumem diversos significados, muitas vezes ambíguos e abertos à manipulação. A diferença entre o “certo” e o “errado” pode não ser clara, nem sempre se reduz a “sim” ou “não”, branco e preto, não é uma série de 0s e 1s.

No entanto, o pensamento jurídico pode e será “codificado” num futuro não muito distante.

Os sistemas de revisão de documentos utilizam já tecnologias de aprendizagem automática e tecnologia de reconhecimento de padrões para identificar conceitos chave de contratos, classificar cláusulas, padrões nas decisões judiciais, assinalar discrepâncias e similitudes na aplicação e interpretação de leis e contratos, etc.

No futuro, a inteligência artificial permitirá aos juízes identificar os elementos-chave das suas decisões e oferecer-lhes um roteiro para o processo de tomada de decisão. Tomemos o exemplo de uma simples decisão judicial sobre a competência do tribunal sobre determinada matéria que lhe é apresentada. Todos os países do mundo têm regras claramente definidas para determinar a jurisdição dos seus tribunais, regras essas que podem ser codificadas em linguagem informática, ou seja, num algoritmo.

Os futuros algoritmos jurídicos ajudarão juízes e advogados a determinar se um assunto se enquadra numa ou noutra categoria jurídica e como a lei será aplicada em casos específicos. Tal estará apenas a um passo do poder de determinar a aplicação de normas jurídicas. A integração de uma conduta na previsão de uma norma é uma tarefa que no futuro será realizada por sistemas informáticos, com um grau crescente de complexidade, eliminando falsos positivos, aplicando regras de conflitos de direitos, identificando a existência de causas de justificação ou de exculpação, etc.

Muitos argumentarão que o Direito tem características específicas, nomeadamente a interferência de sentimentos e convicções, o que torna impossível a sua redução a algoritmos.

É errado analisar a inteligência artificial através desse prisma. Há duas áreas em que a inteligência artificial terá dificuldades em dominar: primeiro, na camada exterior das leis atuais, onde prevalecem elementos culturais, sentimentais e políticos que encobrem o núcleo das leis. Com o tempo, estes elementos serão depurados por algoritmos mais poderosos. A força da racionalidade desses algoritmos levará à descoberta de regras mais simples e, portanto, mais justas, livres de muitas das incoerências e conflitos que hoje se verificam.

A inteligência artificial criará formas mais rápidas e eficientes de desempenhar todas as tarefas jurídicas, como é o caso da gestão de conhecimento, análise de documentos, redação de contratos, análise de contenciosos, preparação de peças processuais.

Todas as profissões jurídicas beneficiarão com a inteligência artificial. Os legisladores farão melhores leis; os juízes darão sentenças mais justas; os advogados poderão aperfeiçoar as suas peças processuais com maior eficiência e qualidade. Muitos conflitos serão resolvidos antes de chegarem aos tribunais porque se a probabilidade de sucesso for baixa, essa parte procurará chegar a acordo ou desistirá de ir a tribunal.

A inteligência artificial não substituirá os advogados, mas mudará radicalmente a forma como os advogados prestam serviços.

No fim de contas, o pensamento jurídico deverá permanecer na esfera das atividades humanas porque dentro do núcleo de todas as normas jurídicas vivem valores e os valores não são “computáveis”. Os valores não podem ser reduzidos às formulações matemáticas de algoritmos. A criação e a aplicação da lei devem, no final, ser feitas por seres humanos e para os seres humanos.

O Direito é uma ciência e uma técnica, mas é também uma arte e, portanto, não pode ser reduzido a algoritmos. Este é o limite da aplicação da inteligência artificial ao Direito e o limite para qualquer tecnologia alimentada por inteligência artificial.

Este artigo foi publicado na revista física da Advocatus de Novembro/ Dezembro de 2021. 

No contexto vivido nos últimos meses, no qual o teletrabalho se tornou obrigatório durante mais de 360 dias para a grande maioria dos trabalhadores, surgiu a questão de saber se o pagamento do subsídio de refeição continuaria a ser devido, visto que os trabalhadores passariam a desempenhar as suas funções fora do local de trabalho habitual para passarem a desempenhar no seu domicílio.

Destacaram-se duas opiniões contrapostas: por um lado, uma parte da doutrina e da jurisprudência entendia que o subsídio de alimentação apenas seria devido para fazer face a despesas que o trabalhador tem fora do seu domicílio, e, portanto, não se justificava o pagamento; por outro lado, outra parte da doutrina e da jurisprudência entendia que mesmo prestando a atividade em teletrabalho, as despesas com refeições se mantinham, e consequentemente, deveria manter-se o respetivo pagamento.

A Direção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho e a Autoridade para as Condições de Trabalho, no contexto da obrigatoriedade do teletrabalho, pronunciaram-se no sentido do pagamento do subsídio de refeição. Apenas, em casos excecionais, designadamente disposição contratual ou por via de instrumento de regulamentação coletiva que dispensassem a não obrigatoriedade de tal pagamento, era possível a sua não aplicação aos teletrabalhadores.

Nos dias de hoje o teletrabalho, salvo situações excecionadas determinadas na lei, deixou de ser, numa primeira fase, obrigatório e, mais recentemente, recomendado.

Pergunta-se: as empresas podem, por acordo, estabelecer o não pagamento do subsídio de refeição aos trabalhadores que prestam a sua atividade em teletrabalho?

Pensemos no seguinte: o subsídio de refeição não está abrangido pelas normas constitucionais que “protegem” o direito à retribuição dos trabalhadores, o que nos leva a crer que não é devido em todos as situações. Mas, outros argumentos podem ser apontados no mesmo sentido.

A razão pela qual consideramos ser possível a elaboração de um acordo no qual não se incluam o pagamento do subsídio de refeição é simples: o teletrabalho carateriza-se pela prestação, na sua maioria, fora da empresa, através de meios tecnológicos, motivo pelo que o trabalhador presta a sua refeição como se num dia de descanso se encontrasse. Consequentemente, o teletrabalhador não incorre em despesas adicionais, comparativamente com a situação que aconteceria se estivesse no local de trabalho.

Julgamos que de forma diametralmente oposta ao que se verificou nos meses anteriores, a obrigatoriedade de pagamento deixou de ser uma realidade. O teletrabalho aplica-se apenas perante a vontade das partes, regendo-se pelas normas do Código do Trabalho, pelo que na falta de acordo entre a empresa e o trabalhador o regime não pode ser imposto pela entidade empregadora.

Ainda assim, admitimos que, existindo nos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho aplicáveis disposições que determinem a obrigatoriedade de pagamento deste subsídio aos trabalhadores nas situações de teletrabalho, este será sempre devido e não pode ser afastado, sequer, por contrato de em sentido contrário. O conteúdo do artigo 476.º do Código do Trabalho não deixa margem para qualquer dúvida interpretativa: apenas seria possível a consagração de uma disposição no contrato de trabalho mais favorável ao trabalhador; acontecendo precisamente o contrário, pelo facto de ser “eliminado” um direito consagrado no instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, é notória uma violação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador.

Ainda assim, perante determinadas exceções relativamente às quais a lei continua a determina a obrigatoriedade de teletrabalho, uma vez reunidos todos os pressupostos legais para a sua aplicação, o pagamento do subsídio de refeição continua a ser devido, não havendo qualquer possibilidade de disposição convencional em contrário.

Este artigo foi publicado no Dinheiro Vivo no dia 23.10.2021. Pode consultá-lo aqui

 

Poucos agentes do setor económico nacional terão sido tão afetados pela pandemia da Covid-19 como os lojistas a operar em centros comerciais. Talvez por isso, ainda hoje, correm nos tribunais portugueses centenas de litígios que opõem estes lojistas aos proprietários e entidades gestoras dos centros comerciais.

A batalha jurídica começou em meados do ano de 2020, com a discussão em torno do início da aplicação da medida de defesa dos lojistas, prevista no artigo 168.º-A, n.º 5 da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, e da inconstitucionalidade da respetiva norma, que isentava os lojistas de centros comerciais do pagamento das rendas fixas devidas entre março e dezembro desse ano.

Já em 2021, quando essa medida deixou de se aplicar, mas, mais do que nunca, os efeitos da pandemia, as medidas restritivas e as perdas económicas dos lojistas se fizeram sentir, a batalha jurídica prosseguiu em torno do direito a obter uma diminuição das rendas a pagar aos centros comerciais.

Aqui, mais uma vez, quando acordos não foram alcançados, os argumentos e as teses jurídicas multiplicaram-se, envolvendo o preenchimento de conceitos indeterminados, a aplicação de regimes legais pouco utilizados nas últimas décadas – como os da impossibilidade em caso de eventos de força maior e da alteração das circunstâncias – e prova quase diabólica.

Enquanto em Portugal os Tribunais ainda não têm uma posição clara quanto a este aspeto, em Espanha começam a surgir sinais de que o “rei vai nu”, apesar de no ordenamento jurídico espanhol não existir sequer um regime legal semelhante ao da alteração das circunstâncias.

O caso espanhol mais relevante opôs um arrendatário comercial ao seu senhorio, num processo que decorreu no Tribunal de Primeira Instância n.º 81 de Madrid.

Numa decisão de 25 de setembro, o Tribunal considerou ser evidente que a crise sanitária e pandémica consubstancia uma alteração das circunstâncias, que as rendas definidas pelas partes tinham sido acordadas num contexto muito diferente daquele que se viveu durante essa crise, que o seu surgimento foi absolutamente imprevisível e que, em consequência, houve um grave desequilíbrio entre o esforço económico que se exigia a cada uma das partes, com prejuízo muito superior para o arrendatário.

Em conclusão, o Tribunal de Madrid decidiu pela suspensão da obrigação de pagamento da renda até à reabertura do estabelecimento comercial e pela redução da renda em 50% a partir desse momento.

O Tribunal de Madrid colocou a tónica no facto de os efeitos da pandemia se terem feito sentir de modo muito diferente entre as partes, tendo uma delas – o arrendatário – sido lesado numa escala desproporcionalmente maior e, por isso, as condições inicialmente contratualizadas terem deixado de fazer sentido.

O mesmo acontece com os lojistas em Portugal e, muito em particular, com aqueles que estão estabelecidos em centros comerciais. É por demais evidente que, proporcionalmente, os lojistas foram a parte mais sacrificada pela pandemia do Covid-
19 na relação contratual com os centros comerciais: não beneficiaram de medidas de apoio na época em que as medidas sanitárias foram mais restritivas e nunca deixaram de ter de pagar uma componente remuneratória, apesar de, durante vários meses, terem sido impossibilitados de operar.

Por agora, estamos ainda absortos na teoria – em discutir a letra da lei, a jurisprudência anterior mais ou menos certeira e as várias teses doutrinárias na matéria –, em vez de colocarmos o foco nos factos e na assimetria dos efeitos provocados pela pandemia nas esferas jurídicas das partes.

É desejável que os Tribunais Portugueses venham rapidamente a dizer que “o rei vai nu”, apontando ser óbvio que a pandemia prejudicou a maioria dos agentes do mercado do comércio e retalho, mas, acima de tudo e desproporcionalmente, prejudicou os lojistas em centros comerciais, decidindo pela justa divisão desse sacrifício, reequilibrando os contratos com os gestores dos centros comerciais e quebrando este estado de “transe jurídico” generalizado que se tem vivido no último ano e meio.

O artigo publicado no Jornal de Negócios no dia 06.10.2021 foi escrito no dia 16.09.2021. Pode consultá-lo aqui. A versão abaixo é uma versão atualizada. 

 

O fim do serviço de interruptibilidade, fixado para 31 de outubro, fez a felicidade da esquerda, que o usou como uma das suas bandeiras populistas, mas deixa em dificuldades as empresas grandes consumidoras de eletricidade nas indústrias vidreira, da celulose, da siderurgia, etc.. O que está em causa: quando um consumidor compra eletricidade, contrata-a e espera recebê-la sem interrupções. Em momentos de pico de consumo ou de baixa de produção, pode tornar-se necessário interromper o fornecimento de eletricidade a alguns consumidores para assegurar que outros como os serviços essenciais recebem eletricidade continuamente. Na maioria dos países criaram-se sistemas, de adesão voluntaria, pelos quais os consumidores elegíveis (por norma os grandes consumidores em alta e media tensão) aceitam sofrer cortes no fornecimento sempre que necessário mediante uma contrapartida. A isto se chama um serviço de interruptibilidade. Nalguns países mais liberais, o preço deste serviço acerta-se através de contratos de serviços de interruptibilidade em que os consumidores aceitam comprar parte da sua eletricidade sujeita a interrupções em condições de preços e quantidades livremente estabelecidas. Noutros países, o acerto faz-se por concurso público (semestral em França, anual em Espanha) em que cada concorrente propõe o valor que está disposto a receber pela disponibilidade para interromper o consumo. Este método não evita que a capacidade de interruptibilidade posta a concurso possa exceder a capacidade efetivamente necessária. Em Portugal, estabeleceu-se, no fatídico ano de 2010, um serviço de interruptibilidade baseado em contratos de adesão anuais, nos quais o volume contratado é definido administrativamente e preço é estabelecido através de fórmula fixada por portaria. Ou seja, nos antípodas do ajuste de preços pelo encontro da oferta e da procura.

A REN, a quem cabe a gestão deste serviço, no relatório relativo ao ano de 2020, refere estas duas coisas espantosas: “(d) A remuneração pela prestação do serviço de interruptibilidade representou 101,9 M€; (e) O operador da rede de transporte não emitiu nenhuma ordem de redução de potência.” Esta e situações similares que ocorreram nos anos anteriores, levaram a esquerda da esquerda portuguesa aos arames, gritando daqui del rei, temos de cortar mais esta renda excessiva. E os grandes consumidores, ficaram pelos cabelos, que se lhes foi uma receita para reduzir a sua fatura de eletricidade, já sobrecarregada de impostos… e logo agora que os preços no OMIE já passam largamente os 200 euros por MWh, coisa nunca vista! A esquerda da esquerda está certa ao considerar injustificado o gasto de mais de 100 milhões de euros ao ano por um serviço que as mais das vezes não é sequer utilizado. E é justo o lamento das empresas grandes consumidoras porque lhes vão tirar um fator que contrabalançava a falta de competitividade arrastada pelos custos energéticos em Portugal. Mas, se por um lado, não se pode extinguir o serviço de interruptibilidade sem criar uma alternativa para as situações de necessidade de interrupção do fornecimento de eletricidade; por outro, desde 2010 usou-se o serviço de interruptibilidade, em Portugal com mais descaramento que noutros Estados das União Europeia, como uma ajuda de Estado às empresas grandes consumidoras.

O interesse de todos recomenda, primeiro, a substituição do atual por um outro serviço de interruptibilidade, por ser necessário ao funcionamento do sistema elétrico nacional; segundo, a contratação e remuneração da interruptibilidade com base nas necessidades efetivas do sistema, ao preço mais baixo que as empresas grandes consumidoras ofereçam; terceiro, outras formas de aliviar o peso que o próprio Estado tem nos custos de produção das indústrias grandes consumidoras, na sua maioria também grandes exportadoras. Se para as duas primeiras recomendações basta seguir o exemplo de outros países, já a terceira choca com a visão ideológica dos nossos governantes que os leva sempre a preferir afogar primeiro as empresas (e os cidadãos) em impostos e depois tentar a reanimação quase sempre sem êxito ou com sacrifícios maiores para todos: Governo anunciou o pagamento este ano de uma compensação de 25 milhões de euros pelos custos indiretos do CELE às indústrias grandes consumidoras de eletricidade e prometeu (o que tem o valor facial das promessas políticas) uma redução de 30% nas tarifas de acesso às redes para 2022. Tudo medidas avulsas de fabrico instantâneo, complicações que eternizam a burocracia do sistema, compensações que parecem favores, com capacidade diminuta de resolver o problema de fundo que está na carga fiscal e nos muitíssimos custos de sistema descarregados nas tarifas que todos, indústria e cidadãos, pagamos.

2021-10-07
Guilherme Dray

Este artigo foi publicado na edição bimensal de Julho/Agosto de 2021 da revista Vida Judiciária

 

O Direito do Trabalho é – e sempre foi – um ramo de direito privado progressista e de vanguarda.

Na sua origem, esteve a necessidade de proteção da parte mais fraca e a procura do reequilíbrio das prestações. Centrado na criação de condições mínimas de trabalho, na dignificação do trabalho e na justiça contratual, o Direito do Trabalho socializou o direito privado, esteve na criação de normas imperativas mínimas e legitimou a negociação coletiva e as estruturas de representação dos trabalhadores.

O Direito do Trabalho dos séculos XIX e XX teve essa grande virtude: adaptou e moldou o Direito Civil de forma a evitar relações privadas desiguais e injustas, fazendo-o em nome da justiça contratual e social. Numa primeira fase, tratou-se de criar um conjunto de regras próprias para reger o contrato individual de trabalho. É nesta fase que emergem as regras relativas à limitação do tempo de trabalho, ao direito ao repouso diário, semanal e anual, à segurança e saúde no trabalho, à reparação de acidentes de trabalho e à criação do salário mínimo nacional. Mais tarde, tais regras estenderam-se ao domínio do Direito do Trabalho Coletivo. As estruturas representativas de trabalhadores são legitimadas, a negociação coletiva institucionaliza-se e é incentivada e o direito à greve assume a natureza de direito fundamental.

Esta primeira fase do Direito do Trabalho, consistente na criação de um corpo de regras jurídicas próprias e autónomas face às do Direito Civil, marca a autonomia sistemática deste ramo do Direito. E se inicialmente tais regras foram positivadas, apenas, em diplomas legislativos de índole nacional, rapidamente passaram a florescer nas constituições dos Estados modernos. Em primeiro lugar, na Constituição mexicana de 1917; depois, na Constituição de Weimar de 1919; e, de então em diante, na generalidade das constituições aprovadas ao longo de todo o século XX.

Para além deste movimento, relativo à elevação dos direitos laborais a direitos fundamentais, o Direito do Trabalho também se internacionalizou. Com a criação da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, a aprovação e difusão de minimum labor standards tornou-se um imperativo mundial. De então para cá, a OIT criou centenas de convenções e recomendações relativos a múltiplos temas laborais, que fazem parte, hoje em dia, da cultura jurídica mundial: temas relativos à limitação do tempo de trabalho, à proteção contra o despedimento, à igualdade e não discriminação, à conciliação entre a vida profissional e familiar, à salvaguarda dos salários e mesmo à proscrição do assédio laboral, passaram a proliferar à escala global.

Mas cedo se percebeu que não bastava um corpo de regras próprias.

Por isso, paulatinamente, o Direito do Trabalho parte para a construção de um conjunto de princípios (normativos) específicos, que fazem parte do seu processo de interpretação e aplicação. Ou seja, mais do que ter regras jurídicas próprias, o amadurecimento do Direito do Trabalho foi acompanhado da criação de princípios jurídicos que lhe são específicos, que ditam a forma como as suas regras devem ser interpretadas e aplicadas e que só existem neste ramo do Direito. De entre todos, desponta o princípio da proteção do trabalhador – a partícula divina do Direito do Trabalho e o seu norte magnético. Por esta via, mais do que autonomia sistemática, o Direito do Trabalho ganhou, também, autonomia dogmática. Passou a ser um ramo de direito quase completo: com regras próprias, nacionais e internacionais; com princípios jurídicos próprios; e com enorme desenvolvimento jurisprudencial, doutrinário e académico.

O Direito do Trabalho faz parte da nossa vida e gere o quotidiano de milhões de contratos de trabalho celebrados um pouco por todo o mudo.

Mas a sua capacidade de adaptação e de transformação não se ficam por aqui.

Se quisermos encontrar um ramo do Direito que foi capaz de se adaptar à pandemia da doença Covid 19 e de dar resposta rápida e eficaz aos desafios que a mesma nos trouxe, esse ramo do Direito chama-se Direito do Trabalho.

Se bem atentarmos, os grandes mecanismos criados pelos governos, à escala global, para combater a pandemia, passaram, quase sem exceção, pelo Direito do Trabalho – a implementação de mecanismos de lay off simplificado para garantir a manutenção dos empregos; a criação de apoios à retoma progressiva da atividade, para promover a retoma económica das empresas; a imposição de limitações aos despedimentos coletivos para evitar o aumento exponencial do desemprego; bem como o recurso ao teletrabalho e ao trabalho remoto, tiveram por base, invariavelmente, o Direito do Trabalho que conhecemos. Em nome dos valores que promove – a justiça social – e dos princípios que prossegue – maxime o princípio da proteção do trabalhador – o Direito do Trabalho soube encontrar no seu corpo de regras e princípios a forma adequada para dar resposta a uma situação de crise de saúde pública que, se nada fosse feito, facilmente redundaria numa crise social.

O Direito do Trabalho soube, portanto, estar à altura dos acontecimentos, realçando a importância do Direito enquanto ciência humana imprescindível para a regulação da vida em sociedade.

Mas isto não significa o fim da História.

Muito menos o fim da História do Direito do Trabalho.

As próximas décadas vão trazer novos desafios e novas oportunidades que vão voltar a colocar à prova este ramo do Direito.

Com a massificação da robotização, do uso da inteligência artificial, do tratamento de dados em larga escala e da utilização de algoritmos enquanto instrumentos de gestão da relação laboral, teremos, naturalmente, novos desafios que importa acautelar. Seja ao nível da manutenção do emprego e da substituição do homem pela máquina, seja no em matéria de igualdade e não discriminação, seja a propósito da preservação da privacidade e das liberdade individuais, teremos, nas próximas décadas, novos problemas que irão colocar à prova – mais uma vez – o Direito do Trabalho.

Por outro lado, o modelo tradicional do contrato de trabalho, centrado numa única relação laboral (estável) ao longo da vida, que se começou a erodir no final do século XX, parece hoje uma miragem. As relações laborais passaram a ser instáveis, precárias, alicerçadas em plataformas digitais e, não raras vezes, no nomadismo digital. Passámos a ter uma variedade enorme de contratos de trabalho atípicos, que não estão regulados nos códigos do trabalho e nas legislações laborais que conhecemos. Nalguns casos, este movimento é promovido pelos empresários, que procuram fugir à rigidez do Direito do Trabalho. Noutros casos, porém, são os próprios trabalhadores que, em nome da ideia de liberdade e da opção por abraçar “projetos” em detrimento de “empregos”, optam por este novo modo de vida. É o caso dos libertarians, que privilegiam a liberdade individual em detrimento do coletivo e da ordem social ou corporativa, bem como dos millennials, que trocam de emprego com frequência em busca de novos desafios e aventuras ou tão simplesmente para evitar dificuldades típicas de muitas carreiras de evolução lenta progressiva.

Por fim, face a novos universos de trabalhadores – os economicamente dependentes – e perante novos desafios em matéria de transição climática e energética, temos, também, novos reptos em matéria de negociação coletiva. O Direito do Trabalho terá pela frente, também, uma segunda vaga de negociações coletivas – a negociação coletiva para o bem comum (“Bargaining For the Common Good”), que ultrapassam os temas tradicionais dos salários, das carreiras e dos conteúdos funcionais, para dar lugar a novas questões que interessam à comunidade – a proteção de minorias, do clima e da natureza, por exemplo.

As próximas décadas são, portanto, desafiantes para o Direito do Trabalho, o qual, mais uma vez, terá de se (re)adaptar.

A luta pela diminuição do tempo de trabalho e pela melhor conciliação entre a vida familiar e a vida profissional; a proteção da privacidade e dos dados pessoais; a regulação dos algoritmos e da inteligência artificial para evitar despedimentos cegos e o exercício do poder de direção de forma discriminatória; a proteção de novo universos de trabalhadores que não são juridicamente dependentes; a regulação de novas formas de trabalho, como o que se executa nas plataformas digitais; e a modernização da negociação coletiva, são os novos desafios a que o Direito do Trabalho terá de dar resposta.

Ninguém consegue, com honestidade intelectual, prever o futuro.

Todavia, perante o passado que conhecemos e depois de termos assistido, no presente, à resposta dada pelo Direito do Trabalho à crise pandémica das nossas vidas, é capaz de não ser muito difícil, neste caso, antecipar o futuro – o Direito do Trabalho saberá, mais uma vez, estar na vanguarda e regular com propriedade os novos desafios que o progresso nos está a trazer.

É certamente o que todos desejamos.

2021-09-22
Guilherme Dray

Este artigo foi publicado na Advocatus no dia 21.09.2021. Pode consultá-lo aqui. 

 

Com a massificação da vacinação “Covid-19”, o último trimestre de 2021 promete ser o do regresso dos trabalhadores às instalações das empresas. Mas, desta vez, tudo aponta para que se trate de um regresso ao trabalho marcado por aquilo a que ontem chamávamos de “Futuro do Trabalho”.

O Futuro já está entre nós e tem um nome: Trabalho Híbrido. Uma combinação feliz entre trabalho remoto e trabalho presencial.
É esta a grande nova tendência das economias ocidentais: Estados Unidos da América, Canadá, Austrália, Brasil e Europa estão a apostar fortemente em modelos de trabalho híbridos que conjugam o trabalho presencial (vertical ou horizontal), com o trabalho remoto que marcou a pandemia.

O trabalho remoto e o teletrabalho, já o sabemos, tem tremendas vantagens para todos os agentes e para a comunidade:

  • Para as empresas, potencia a redução de custos com instalações e gera maior capacidade de angariação de colaboradores geograficamente distantes, para além de permitir a continuidade da operação em fases de confinamento;
  • Para os trabalhadores, garante-lhes maior liberdade de atuação, melhor conciliação entre a vida profissional e a vida privada, a capacidade de trabalharem para empresas de diversas geografias e a redução de custos e tempo associados a deslocações diárias entre casa e trabalho;
  • Para a comunidade, é um enorme fator de redução do commuting, um instrumento de redução das emissões de CO2; uma tremenda oportunidade de desenvolvimento de zonas rurais antes esquecidas e abandonadas; e um importante fator de contenção de novos surtos pandémicos que podem continuar a suceder, por força da variante Delta ou de outras que lhe possam suceder.

Mas o trabalho remoto em regime de exclusividade tem também desvantagens manifestas: acentua o isolamento social; gera maiores dificuldades de progressão na carreira; afasta os trabalhadores das estruturas associativas e sindicais; e reduz o trabalho de grupo, o intercâmbio de ideias e a criatividade dele resultante. O trabalho remoto em exclusividade afasta as pessoas e o contacto humano.

Por isso, o modelo híbrido, em profissões que não exigem uma presença física constante, pode potenciar as vantagens do trabalho remoto e minimizar as suas desvantagens. Garante a rotatividade de trabalhadores e menor aglomeração de pessoas, permitindo aos colaboradores beneficiar de duas realidades que se complementam: o trabalho presencial e o trabalho remoto.

Todavia, para que o mesmo funcione bem, há algumas prevenções a tomar:

  • Planeamento: as empresas e os seus departamentos de RH devem planear de forma inteligente e clara a distribuição do trabalho híbrido entre os seus trabalhadores; nalguns casos, por exemplo, os colaboradores trabalham 2 dias por semana em regime presencial e 3 dias em trabalho remoto; noutros, pode ser o inverso; ou podemos ter semanas integrais de trabalho presencial e outras de trabalho remoto;
  • Comunicação: o planeamento deve ser devidamente e antecipadamente comunicado aos colaboradores, para que estes possam programar as suas vidas e saber com o que contam; o pior que pode suceder numa organização é falta de comunicação e a utilização de “cortinas de fumo” sobre o modelo a adotar; a incerteza e a falta de comunicação sobre como vai ser o futuro geram ansiedade, “ruído” desnecessário e menor produtividade;
  • Envolvimento: os colaboradores devem ser envolvidos na solução; não necessariamente em jeito de consulta ou através emissão de pareceres prévios, mas, pelo menos, através da boa explicitação das regras adotadas e de mecanismos de comunicação constantes e efetivos;
  • Adaptação: os planos de trabalho híbrido não devem ser definitivos; devem ser flexíveis, de modo a acompanhar a evolução da pandemia e a adaptação a esta nova forma de trabalho; eles podem (e devem) ser alterados e recalibrados, na medida em que tal se justifique; e os trabalhadores devem ter consciência da natureza temporária dos planos a adotar.

Sabemos que o Futuro do Trabalho não anda para trás e que envolverá trabalho híbrido, nomadismo digital, trabalho em plataformas digitais, muita digitalização e o uso de algoritmos. Com ele, surgem novas oportunidades, mas também novos riscos e desafios que devem ser acautelados.

A solução não está em tentar proibir ou decretar o regresso ao passado, a solução passa pela regulamentação destas novas tendências, em nome da Agenda do Trabalho Digno. O Futuro do Trabalho deve ser acarinhado e regulamentado, para que possa trazer novas oportunidades, trabalhos dignos e mais bem remunerados, com mais liberdade e com menos precariedade.

Este artigo foi publicado pela Advocatus no dia 21.09.2021. Pode consultá-lo aqui

 

No atual contexto em que nos encontramos, no qual o teletrabalho se tornou uma realidade sem comparação possível no passado, discute-se a necessidade de reforçar um conjunto de matérias que já se encontram contempladas no Código do Trabalho, mas, relativamente às quais, se pondera algum reforço de um ponto ou de outro em termos de privacidade e limitação do tempo de trabalho/direto à desconexão.
Relativamente ao direito à desconexão, há quem entenda que se encontra positivado na legislação laboral vigente (Código do Trabalho), não considerando qualquer necessidade de alteração. Por outro lado, há quem considere que tal não acontece. Por fim, uma terceira linha de orientação, admite a necessidade de serem feitas algumas clarificações, não obstante admitirem a consagração na legislação laboral.
A implementação “massiva” do teletrabalho fez com que muitos trabalhadores prestassem atividade muito para além do seu período normal de trabalho, mantendo um contacto permanente com a Entidade Empregadora, colegas de trabalho e clientes. Perante esta realidade é de admitir uma intervenção no sentido da clarificação.
Pergunta-se: a clarificação do direito à desconexão deve ser feita por via legislativa? Ou existe alguma outra alternativa?
Pensemos no que sucedeu há uns anos (2017) em França: fruto de vários estudos efetuados por empresas multinacionais que apontavam para o crescente aumento dos níveis de stress e de falta de descanso dos seus trabalhadores, uma das mais emblemáticas e inovadoras alterações legislativas surge a propósito do denominado “direito à desconexão digital”, que até então nunca tinha sido regulado. A alteração legislativa passou a consagrar o dever de as empresas francesas negociarem com os trabalhadores novas regras internas para as comunicações efetuadas fora do horário de trabalho, de forma a limitar o número de horas em que o trabalhador está conectado com a empresa.
A razão é simples: visou-se garantir o período de descanso do trabalhador, promover a conjugação da sua vida privada com a vida familiar e garantir que o mesmo não está indefinida e ilimitadamente conectado com a empresa, através de dispositivos digitais. Quis-se, em suma, evitar que o horário de trabalho se prolongue para além da jornada de trabalho, através da utilização excessiva do correio eletrónico ou de outros meios de comunicação digital que ligam o trabalhador à empresa.
Será que em Portugal a solução pode ser semelhante?
Julgamos que fará mais sentido a regulamentação em sede de contratação coletiva. Mais do que um problema legal, de eventual falta de clarificação na lei do “direito à desconexão”, estamos perante um problema de ordem cultural. Não será fácil inverter uma mentalidade (não só das empresas, mas também dos trabalhadores) que julga desfavoravelmente um trabalhador que se “desconecta” durante o seu período de descanso. Naturalmente que, alterar “mentalidades” não será totalmente pacífico por via da contratação coletiva. Ainda assim, consideramos que será o melhor a fazer.
Por via da contratação coletiva, consideramos que será mais fácil: (i) concretizar as condições em que o direito à desconexão pode, excecionalmente, sofrer limitações; (ii) servir para defender os interesses do trabalhador, contribuindo de forma “educativa” para a moderação da atual prática de conexão permanente; (iii) criar mecanismos de conciliação entre a vida pessoal e familiar; (iv) adaptar o direito à desconexão às realidade do teletrabalho e de regimes híbridos de prestação de trabalho.
Ainda assim, admitimos que, durante alguns anos, muitas questões se podem manter, tais como as solicitações constantes provenientes de clientes. A mudança de mentalidades não será “automática” mas, de forma concertada, mediante acordo entre as partes envolvidas, pode ser melhor prosseguida., mais do que por via de uma clarificação da legislação laboral.