2020-09-16
Guilherme Dray

Publicado no ECO.

O jardim da democracia é frágil. Um eventual falhanço da Europa no combate à crise económica e social decorrente da atual pandemia, teria efeitos catastróficos. Promoveria a desconfiança no regime, daria azo ao reforço dos movimentos nacionalistas e faria perigar as democracias liberais.

O período de férias é sempre uma janela de oportunidade para se fugir da banalidade e procurar perspetivas literárias que ficcionam o futuro e que raramente se encontram na nossa esfera quotidiana.

The Jungle Grows Back (“A selva volta a crescer”), de Robert Kagan, tem esse potencial. É um livro que encerra uma análise geopolítica global e que – infelizmente – recorda que o período de paz que se vive na Europa, desde o final da II Guerra Mundial, é uma simples poeira histórica e não um dado adquirido.

Nesta obra, o autor analisa a mudança que se está a operar na ordem mundial e sublinha o risco (real) de falência das democracias liberais e da paz mundial.

A análise é simples e esclarecedora.

As democracias liberais assentam nas liberdades individuais. Liberdade de pensamento, de expressão e de associação e liberdade económica. Regem-se pelo Estado de Direito e seguem os valores da tolerância, igualdade e inclusão, assim como na separação entre o Estado e a Religião. As democracias liberais estão nos antípodas de regimes totalitários e autocráticos, que subjugam a liberdade individual em nome de um alegado interesse coletivo. E distanciam-se, também, dos Estados religiosos, nos quais Estado e Religião se confundem.

O que varia, nas democracias ocidentais, não é o primado da pessoa e a defesa da sua autodeterminação. O que varia, é apenas o modelo de Estado Social. No modelo anglo-saxónico, o Estado Social é mínimo; no modelo escandinavo, é máximo; nos países da Europa do Sul, situa-se a meio termo.

A preservação das democracias liberais repousa, acima de tudo, na força irradiante dos seus valores e na promoção do bem comum.

Mas não apenas.

As democracias liberais têm igualmente dependido da comunhão de valores entre a Europa e os Estados Unidos da América (EUA), país que desde a II Grande Guerra esteve sempre presente na defesa deste way of life. Numa primeira fase, deveu-se aos EUA a derrota da Alemanha nazi; durante a “guerra fria”, estiveram na linha da frente contra o modelo soviético; mais recentemente, após a queda do muro de Berlim, ajudaram a conter movimentos religiosos com pretensões militares, como o do Daesh.

Este caminho está a esgotar-se.

A filosofia do “America First” e a exaltação do isolacionismo deixam a Europa sozinha. A antes apregoada “Atlantic Community”, que apostava numa ordem democrática entre os EUA e a Europa Ocidental, foi praticamente posta de parte pela atual Presidência americana, que questiona a anterior ordem democrática. A Europa deixou de ser vista como um parceiro, e passou a ser compreendida como um competidor.

Este facto, aliado ao Brexit e ao crescimento de movimentos nacionalistas, deixa a União Europeia isolada e à mercê de dois gigantes que não seguem o nosso modelo e que têm (ambos) ambições expansionistas: a China e a Rússia.

É neste contexto que a crise pandémica, pelas repercussões económicas e sociais que encerra, tem de ser combatida pela União Europeia sem hesitações, através da preservação dos empregos e do modelo de vida europeu.

Um eventual falhanço neste domínio teria efeitos catastróficos. Promoveria a desconfiança no regime, fortaleceria os movimentos nacionalistas e faria perigar as democracias liberais.

Em Portugal, a defesa simultânea das empresas, do emprego e dos rendimentos é decisiva. E o aumento (com significado) do salário mínimo, é um sinal de esperança e de sustentabilidade do regime, em especial se resultar de um acordo em sede de concertação social. Mas devemos ir mais além. As elites e as grandes empresas deveriam colaborar voluntariamente no combate à crise, em sede de responsabilidade social, promovendo uma maior distribuição da riqueza e apostando no emprego dos jovens.

O jardim da democracia é frágil e deve ser preservado.

E a selva está ao virar da esquina.

Publicado na Advogar.

A pandemia COVID-19 foi responsável por diversas “revoluções” no mundo laboral, entre as quais a criação de uma nova tendência: o alargamento exponencial do recurso ao teletrabalho.

Da noite para o dia, o teletrabalho teve de ser implementado na grande maioria das empresas portuguesas, passando o trabalho a partir de casa a ser a regra, e não a exceção, conforme sempre havia acontecido. 

A recente mudança originou um conjunto de questões sobre o tema, entre as quais se encontram aspetos verdadeiramente importantes do teletrabalho, tais como, de quem será a responsabilidade pelo pagamento de despesas e custos, nos quais o trabalhador incorre para o exercício da sua atividade em teletrabalho? Mantém o trabalhador o direito ao pagamento das prestações retributivas que já auferia, relacionadas com determinadas  despesas?

Importa distinguir diferentes situações.

A legislação laboral estabelece a presunção, ainda que ilidível, de que os instrumentos de trabalho relacionados com o manuseamento de teconologias de informação constitui propriedade do empregador, motivo pelo qual este é o responsável pelas respetivas despesas de instalação, manunteção e utilização (artigo 168.º do Código do Trabalho).

Por outras palavras: se o contrato de trabalho nada indicar quanto aos instrumentos de trabalho, parte-se do princípio de que estes pertencem ao empregador, que assegura a sua instalação, manutenção e despesas de utilização.

E o que acontece a outras despesas/prestações retributivas que o trabalhador auferia? Mantêm-se em regime de teletrabalho?

O Código do Trabalho reafirma o princípio da igualdde de tratamento do trabalhador em regime de teletrabalho (artigo 169.º do Código do Trabalho), de forma a garantir que o teletrabalhador não é prejudicado relativamente aos trabalhadores subordinados contratados segundo o regime comum.

Tal não significa que um trabalhador que deixe de prestar a sua atividade em regime normal, passando a laboral em teletrabalho, mantenha todas as prestações retributivas que lhe eram devidas. Existem prestações que apenas se justificam em função de contingências específicas relacionadas diretamente com o exercício da atividade fora do domicílio habitual do trabalhador.

Quando assim aconteça (v.g subsídio de refeição), passando o trabalhador a trabalhar em regime de teletrabalho, não deverá auferir o seu pagamento, não existindo qualquer violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, nem do princípio da igualdade. Só assim não sucederá, se as partes tiverem estipulado o pagamento de tal subsídio mesmo em regime de teletrabalho.

Com a implementação do regime de teletrabalho de forma massificada, e tendo sido suscitadas questões diversas relacionadas com este tema, os tribunais foram já chamados a pronunciar-se.

Nesse sentido, o Tribunal Federal da Suiça condenou uma empresa de contabilidade ao pagamento parcial da renda de casa de um trabalhador que se encontrava em regime de teletrabalho, dado que este apenas arrendou um apartamento para poder ter condições de trabalhar em regime de teletrabalho, a pedido do empregador.

Tendo a empresa alegado não ter chegado a acordo com o trabalhador com a devida antecedência quanto ao tipo de apartamento a arrendar, e por isso não ter de fazer o pagamento, o tribunal, não concordando com o empregador, acrescentou ainda que o trabalhador deveria solicitar uma indemnização com efeitos retroativos, após deixar a empresa.

De acordo com a decisão do tribunal, é irrelevante o facto de o trabalhador arrendar ou não um apartamento maior, por exemplo, para trabalhar a partir de casa, de forma adequada. Os decisores estimaram uma retribuição mensal no valor de 150 francos suiços (€141,5) pelo pagamento da renda do trabalhador.

Decidiu o tribunal no sentido de condenação da empresa, uma vez provado que, sem o arrendamento do espaço, o trabalhador não tinha um local adequado para prestar a sua atividade em regime de teletrabalho, motivo pelo qual o mesmo era necessário para o adequado exerício da sua profissão.

Para o tribunal, e tendo em consideração que de acordo com a legislação aplicável, o empregador deve reembolsar o trabalhador por todas as despesas em que necessariamente incorra na execução do contrato de trabalho e que indiretamente beneficiem o empregador, ainda que estejam em causa despesas do trabalhador que também o favoreçam na sua vida privada, a empresa deveria ser condenada a comparticipar no pagamento da renda.

A legislação laboral portuguesa nada estabelece nesse sentido.

Certamente questões como estas surgirão também no nosso país, podendo, eventualmente, vir a ser objeto de legislação.

Em suma: o Código do Trabalho apenas prevê o pagamento de despesas relacionadas com a instalação e utilização de tecnologias de informação pelo teletrabalhador, sendo omisso em relação às restantes. Nada sendo estabelecido no contrato de trabalho quando a essas, certamente que diversas questões práticas irão surgir, e que terão de ser objeto de decisões jurisprudenciais e, quem sabe de novas disposições legais.

2020-07-22
Susana Vieira

O n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil (“CC”) foi introduzido em 2018 com o objetivo de proteger a estabilidade da habitação do arrendatário e impedir a especulação imobiliária. Estabelece que o arrendatário para habitação de parte de um prédio que não esteja em propriedade horizontal tem direito de preferência em caso de venda do arrendado em termos idênticos aos de um arrendatário de uma fração autónoma, com as seguintes condições:

  • o direito é relativo à quota-parte do prédio que corresponde à permilagem do arrendado e pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; e
  • a aquisição pelo arrendatário (e preferente) é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.

O direito de preferência do arrendatário não é uma novidade, pois existe desde 1924 e tem sofrido diversas alterações ao longo dos tempos.

Do mesmo modo, não foi a primeira vez que o Tribunal Constitucional (“TC”) foi chamado a pronunciar-se sobre a eventual inconstitucionalidade das normas que o estabelecem, pois fê-lo em 2000 e em 2016 quanto a uma outra norma (a alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do CC) e à questão de saber se o direito de preferência tem necessariamente (e apenas) de incidir sobre o arrendado. Em ambos os casos, o TC concluiu pela “neutralidade da Constituição” na matéria e, consequentemente, pela não inconstitucionalidade.

A norma acima referida, constante do n.º 8 do artigo 1091.º do CC, tem, porém, um alcance bastante distinto do anteriormente analisado pelo TC. Foi considerada inconstitucional pelo Acórdão n.º 299/2020, com base nos argumentos que procuraremos explicar de forma resumida.

Um direito de preferência sui generis

O TC começa por referir que a parte arrendada de um prédio que não está em propriedade horizontal não tem autonomia jurídica, pelo que não pode, desde logo, ser transmitida como uma fração autónoma.

Desta circunstância resulta um direito de preferência sui generis pelas seguintes razões:

  • embora o direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC possa ser exercido em caso de transmissão de todo o prédio não constituído em propriedade horizontal, apenas incide sobre a parte arrendada. O exercício do direito de preferência dará, assim, lugar à compropriedade do prédio, sendo atribuído ao arrendatário preferente o uso exclusivo da quota-parte do prédio que adquire e extinguindo-se o contrato de arrendamento;
  • ao contrário do que se verifica habitualmente nos direitos de preferência, o direito previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC não assegura igualdade de condições (“tanto por tanto”) em relação à transmissão do prédio pretendida pelo proprietário. Por um lado, porque o arrendatário apenas tem o direito de adquirir, e o proprietário tem apenas a obrigação de lhe transmitir, a parte arrendada do prédio e não o prédio na sua totalidade conforme pretendia o proprietário. Por outro lado, porque o preço da transmissão ao arrendatário é fixado em função da permilagem que a parte arrendada representa no prédio e não o preço do negócio pretendido pelo proprietário.

O direito à propriedade privada e o direito de preferência

No seu artigo 62.º, n.º 1, a Constituição consagra a garantia da propriedade privada, ao estabelecer que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”.

O TC tem entendido que o estabelecimento de direitos de preferência não afeta, por si só, o conteúdo constitucionalmente reconhecido ao direito de propriedade porquanto não afeta a posição subjetiva do proprietário.

Com efeito, o proprietário tem inteira liberdade para dispor do imóvel objeto de preferência, nos termos que bem entender – nomeadamente, quanto ao preço e às condições de pagamento - e dessa perspetiva ser-lhe-á indiferente, em termos económicos, vendê-lo ao preferente ou a um terceiro.

É certo que a preferência constitui uma limitação da propriedade e, do ponto de vista de quem vende, pode ser relevante, por exemplo, a maior ou menor solvabilidade financeira do adquirente. No entanto, salvo esta restrição à liberdade de escolha da contraparte e os custos económicos que lhe estão associados, o direito de preferência não limita de outro modo a posição jurídica do proprietário, pois o negócio não deixa de ser celebrado ainda que com um adquirente diferente.

Nestes termos, o TC tem entendido que, estando em causa a liberdade de escolha da outra parte do negócio mas não a liberdade de transmissão, a lei pode limitar tal liberdade, designadamente através da atribuição de um direito de preferência, atendendo à necessidade de proteger outro tipo de interesses sem que tal viole o disposto no artigo 62.º da Constituição.

O direito de preferência sui generis como limitação significativa do direito à propriedade privada

O TC considerou que as limitações decorrentes do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC não se reduzem à faculdade de escolher livremente a pessoa com quem poderá ser realizado o negócio e têm outras implicações. Com efeito, esta norma:

  • constitui uma dupla limitação da liberdade de transmissão do proprietário porque este fica impedido de transmitir a terceiros a totalidade do prédio (o negócio pretendido) e, uma vez manifestada pelo arrendatário a intenção de preferir, fica obrigado a transmitir-lhe a quota-parte ideal do prédio correspondente à permilagem do locado (um negócio que não pretendia, numa espécie de “compropriedade forçada”;
  • limita a liberdade de estipular as condições de venda, pois não permite ao proprietário estipular livremente a quota a vender ou o respetivo preço; e
  • limita a faculdade de gozo do imóvel porquanto atribui ao preferente o “uso exclusivo” da parte do prédio adquirida, dispensando o acordo unânime dos restantes comproprietários.

Conclui o TC que existem “limitações significativas ao direito fundamental de propriedade privada” e que “a afetação do direito à liberdade jurídica do proprietário, singular ou comum, pode causar prejuízos apreciáveis” dado que “o exercício do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º [do CC] é suscetível de interferir negativamente no ativo patrimonial do proprietário” e “pode contribuir para desvalorização muito significativa do prédio”.

O direito de preferência como dimensão do direito à habitação

Nos termos do disposto no artigo 65.º da Constituição “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

O direito à habitação é, assim, um direito fundamental constitucionalmente protegido.  No entanto, este direito não tem necessariamente de ser concretizado através da propriedade. Pode sê-lo também através do arrendamento e, nessa medida, o direito à habitação do arrendatário, que inclui a faculdade de aceder à propriedade do local arrendado por via do direito de preferência, constitui uma restrição do direito de propriedade do senhorio.

Esta restrição não é, porém, ilimitada e deve respeitar o princípio da proporcionalidade, uma vez que o direito de propriedade é um direito fundamental. Assim, as restrições ao direito de propriedade que decorrem do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC “têm que revelar-se meio idóneo, exigível e proporcional” para alcançar as finalidades pretendidas de promoção da estabilidade na habitação e impedimento da especulação imobiliária.

A limitação desproporcional do direito de propriedade

Neste âmbito, o TC considerou que:

  • o direito de preferência em questão não permite ao arrendatário o acesso imediato à propriedade plena do local arrendado mas apenas à compropriedade. O arrendatário necessitará sempre do acordo de todos os restantes comproprietários para transmitir ou hipotecar a “sua” quota-parte especificada do prédio e ficará na dependência destes para concretizar a quota que lhe corresponde.

Por outro lado, embora o arrendatário possa recorrer à ação judicial de divisão de coisa comum, existe o risco de o prédio não reunir as condições legais e administrativas para poder ser dividido ou de, na referida ação, e em virtude dos seus próprios mecanismos, não ser adjudicada ao preferente a quota-parte de que tem o uso exclusivo, perdendo-se “a especial ligação do arrendatário ao locado, que constituía, em parte, a justificação para que lhe fosse atribuído o direito de preferência em análise”.

  • para garantir a habitação própria do arrendatário, não era indispensável que o direito de preferência tivesse por objeto uma parte do prédio correspondente à permilagem do locado.

Em alternativa, a lei poderia impor ao proprietário a obrigação de, previamente à sua transmissão, constituir o prédio em propriedade horizontal. Embora houvesse a considerar os custos de constituição da propriedade horizontal, esta alternativa seria menos limitativa para o proprietário, pois permitiria que o objeto do direito de preferência coincidisse com o local arrendado e que a preferência fosse exercida em paridade de condições, ou seja, “tanto por tanto”.

  • a opção pela aquisição da quota-parte do prédio, correspondente ao arrendado, não salvaguarda o equilíbrio de interesses entre proprietário e arrendatário. Não só a preferência não é concedida em condições de igualdade em relação a quem iria adquirir a totalidade do prédio como sujeita o proprietário a alienar uma parte do prédio contra a sua vontade e priva os restantes comproprietários da utilização direta ou aproveitamento imediato de parte do imóvel (atribuído em exclusividade ao preferente).

Deste modo, as características sui generis deste direito de preferência desvalorizam a propriedade muito para além da liberdade do proprietário de escolher o seu contraente, e limitam o uso ou aproveitamento que os demais comproprietários poderiam ter e retirar da propriedade comum.

Estas limitações colocadas ao proprietário e aos comproprietários no interesse do arrendatário são excessivas, desrazoáveis e gravosas, na medida em que não permitem alcançar os objetivos que estão na sua base – proteger o interesse do arrendatário na estabilidade da sua habitação e impedir a especulação imobiliária.

O TC concluiu assim que “[a] ponderação entre a intensidade da intervenção e o peso da sua justificação, o interesse da estabilidade na habitação, tem como resultado que a preferência numa quota-parte do prédio, correspondente ao locado, ultrapassa os limites impostos pela proporcionalidade à determinação do conteúdo e limites do direito de propriedade” e que se trata de uma “intervenção na propriedade [que] excede a medida constitucionalmente adequada da vinculação social”, pelo que o direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do CC viola o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.

2020-07-22
Guilherme Dray

Publicado no Eco Online.

Podendo o futuro do trabalho romper com o modelo social que conhecemos e pôr em causa os pilares que estão na base das democracias liberais, importa prevenir e atuar, de forma a evitar surpresas desagradáveis.

A revolução digital, a automação e a inteligência artificial têm potencial para alterar profundamente o mercado de trabalho. Não só o modelo taylorista do trabalho foi irremediavelmente posto em causa, como o tipo contratual em que assenta a relação laboral tende a ser desvirtuada.

O incremento das tecnologias de informação e comunicação, a par do uso de algoritmos na seleção de trabalhadores, do tratamento de dados numa escala nunca antes vista e da massificação do trabalho remoto, trará novas formas de prestar trabalho, novos (des)equilíbrios, desafios ao nível da conciliação da vida profissional com a vida familiar, bem como novas questões ao nível do direito à privacidade, da limitação do tempo de trabalho e do direito à desconexão. Por outro lado, a proliferação de trabalhadores informais, do trabalho realizado em plataformas colaborativas e o desvirtuamento do contrato de trabalho tradicional, pode pôr em risco a proteção social e a sustentabilidade da segurança social.

Perante isto, há dois caminhos possíveis: o primeiro, é nada fazer, acreditar no mercado e na sua “mão invisível” e seguir uma linha hayekiana, segundo a qual a liberdade empresarial e os agentes económicos encontrarão, sozinhos, o melhor caminho para estes novos desafios, sem que o Estado nisso deva interferir. O segundo, de lógica mais keynesiana, assenta na regulação. Tratando-se de um tema que pode romper com o modelo social que conhecemos, potenciar o desemprego, trazer conflituosidade social e pôr em causa os pilares que estão na base das democracias liberais, importa prevenir e atuar, de forma a evitar surpresas desagradáveis.

O famoso conflito de duas grandes escolas económicas, que opôs Hayeck e Keynes no rescaldo da II Guerra Mundial, sublimemente descrito na obra de Nicholas Wapshott, volta agora a colocar-se, a propósito do futuro do trabalho.

É verdade que o tema é recorrente. A ideia segundo a qual as máquinas vão roubar o nosso emprego, não é nova. Desde a industrialização e do final do século XVIII que inúmeros economistas alertam para o tema, chamando a atenção para a ameaça da utilização massiva da máquina, que pode tornar o trabalho humano supérfluo. A verdade, porém, é que desde então as sociedades evoluíram, atingindo um nível de satisfação e de sofisticação que alteraram o nosso nível de vida. De forma geral, pelo menos nos países ocidentais, a inovação e a tecnologia aumentaram o nosso estilo de vida; a esperança de vida aumentou; os sistemas de saúde pública tornaram-se universais; e a segurança social criou um sistema igualmente universal de proteção na velhice, doença e desemprego. As máquinas destruíram alguns empregos, é verdade, mas o balanço foi positivo: a tecnologia aumentou a produtividade laboral, trouxe competitividade, alargou a liberdade de opção dos consumidores e abriu portas a novas oportunidades, que antes só existiam no domínio da ficção científica.

Desta vez, porém, a disrupção pode ser mais intensa.

É que não se trata, apenas, de introduzir tecnologia e automação em modelos já existentes. O que está em jogo, agora, é mais do que isso. É alterar o modelo de contrato social que conhecemos e que nos trouxe um longo período de paz e prosperidade, desde o final da II Grande Guerra. O que está em causa, desta vez, é o agravamento das desigualdades, a tendencial implosão dos contratos de trabalho permanentes e a sua substituição por um novo modelo de trabalho, assente na flexibilidade, na intermitência, nos pequenos projetos (“gig economy”) e na ausência de relações de trabalho entre quem trabalha e quem contrata.

Por essa razão, diversas instâncias internacionais, nomeadamente a União Europeia, a Organização Internacional do Trabalho e a OCDE, têm alertado para a necessidade de a sociedade preparar, em conjunto, o futuro do trabalho, promovendo para o efeito um diálogo social entre governos, empregadores e trabalhadores.

É nesse contexto, portanto, que diversos países têm estudado o tema e promovido a publicação de um Livro Verde Sobre o Futuro do Trabalho, como é o caso do Green Paper Work 4.0, elaborado pelo Ministério do Trabalho Alemão.

Em vésperas de assumir a Presidência da União Europeia, e de forma a estar na vanguarda deste movimento, o Governo português abriu, também, os trabalhos para a elaboração do seu próprio Livro Verde, tendo eu o privilégio de ser um dos coordenadores científicos do mesmo, a par da minha Colega, Profª Teresa Coelho Moreira.

O processo de elaboração será participado e conta com o empenho de todos: académicos, pensadores, sociedade civil, ONG´s, associações patronais e sindicais. O objetivo é claro: até ao final do corrente ano de 2020, importa criar linhas de orientação para preparar o país para os desafios do futuro ao nível do mercado de trabalho.

Importa, acima de tudo, promover um justo equilíbrio entre modernidade, tecnologia e flexibilidade, por um lado, e a existência de trabalhos dignos e decentes, por outro.

2020-07-09
Guilherme Dray

Publicado no ECO Online.

O Estado da Califórnia é conhecido pelas suas paisagens esplendorosas, pelos Golden State Warriors e pelo seu espírito empreendedor, inovador e progressista. É em Silicon Valley que se concentram as maiores empresas tecnológicas e diversas startups. E é neste Estado que se encontram algumas das melhores universidades americanas, como Stanford ou Berkeley.

O Golden State é um incubador de sonhos e de boas ideias, que tendem a marcar a diferença.

A recente aprovação, neste Estado, da Bill AB5, é também um marco na configuração do emprego e tem potencial para marcar o futuro à escala global.

A qualificação de alguém como trabalhador ou mero prestador de serviços é um dos temas mais marcantes da atualidade.

As legislações laborais garantem ao trabalhador, salários mínimos, limitação da jornada de trabalho, direito a férias, licenças de parentalidade, proibição de despedimentos arbitrários e proteção social em caso de doença ou desemprego.

A proteção é significativa, acarretando custos operacionais para as empresas.

Por essa razão, o século XXI tem sido marcado por uma tentativa de fuga ao contrato de trabalho e pela contratação de prestadores independentes. Esta opção, para além de acarretar menor proteção para quem trabalha, afeta também a sustentabilidade da Segurança Social e é questionável em termos concorrenciais, pois coloca lado a lado empresas que oferecem boas condições de trabalho e outras que fogem da lei laboral em busca de menores custos e vantagens competitivas.

A questão tem-se agravado com as plataformas colaborativas, em que as empresas se posicionam como meros intermediários tecnológicos entre o cliente final e o prestador de serviço, que não é qualificado como trabalhador.

A Bill AB5 visa combater este fenómeno.

Tendo por base o caso Dynamex Inc., vs Charles Lee, estabeleceu-se que é o empregador que tem o ónus de provar que alguém que lhe presta uma atividade não é trabalhador, mas sim um prestador independente. Mais do que isso, fica claro que o título atribuído ao contrato pelas partes é absolutamente irrelevante. O que importa, é atender à substância das coisas e à forma como o trabalho é realmente prestado.

Para o fazer, a empresa terá que cumprir o teste “ABC”, ou seja, provar que:

  1. O prestador trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo e direção de quem o contrata;
  2. A atividade que presta não se insere no core business da empresa que o contratou;
  3. O prestador desenvolve a mesma atividade de forma habitual e lucrativa para outras entidades, sendo tipicamente um empresário sem exclusividade.

Se a empresa não conseguir provar estes três pontos, não passa no teste e o prestador é qualificado como trabalhador, mesmo que contratualmente esteja definido o contrário.

Foi essa a solução a que se chegou naquele caso, no qual a empresa de transportes Dynamex havia optado por deixar de ter trabalhadores e contratar apenas motoristas “independentes”.

A Bill AB5 vem questionar de forma direta os modelos de negócios de empresas como a Dynamex, Uber, ou Cabify, que centram a sua atividade nos independent contractors. E vem afirmar que para além do recurso aos indícios de laboralidade que já eram usados pelo Department of Labor e pelo do National Labor Relations Board, este teste passa a assumir-se como a nova bitola de decisão dos tribunais.

O teste “ABC” promete revolucionar a forma como os tribunais, à escala global, passam a reconhecer a existência de contratos de trabalho. Em Portugal, pode ser um importante instrumento para complementar a presunção de laboralidade prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho.

A ideia é clara: o empreendedorismo é bom e faz mover o Mundo. Mas a defesa do emprego é também um investimento na qualidade, no futuro da comunidade e nas pessoas que trabalham.

O sonho californiano é um sonho possível: alia modernidade e inovação, por um lado, com a proteção do emprego, das pessoas e do bem comum.

2020-06-24
Guilherme Dray

Publicado no ECO Online.

Desde a liderança de Earl Warren (1953 -1969) que o Supreme Court vem afirmando os chamados direitos civis. A semana passada, o Supremo voltou a mostrar a sua força, ao afirmar que a discriminação em função do sexo também se aplica a homossexuais e a transgéneros.

O Supremo Tribunal Federal (Supreme Court) dos EUA voltou a impressionar, pela positiva. Na semana passada, no rescaldo da crise George Floyd, o Supreme Court, no caso Bostock vs. Clayton County, decidiu (6 votos contra 3) que a proibição de discriminação em função do sexo prevista no Título VII do Civil Rights Act de 1964 inclui também a orientação sexual e o estatuto de transgénero.

Ou seja, fica claro, a partir de agora, que ninguém pode ser discriminado no acesso ao emprego ou na execução do contrato de trabalho em função da sua orientação sexual ou por ser transgénero. O empregador que despede ou não contrata uma pessoa apenas por ser homossexual ou transgénero viola o Título VII do Civil Rights Act e incorre em discriminação.

A decisão em causa vinha sendo anunciada, dado que dois dos três tribunais inferiores já haviam avançado nesse sentido. Neste caso, todavia, a surpresa resulta do facto de os juízes tendencialmente mais conservadores – nomeadamente, o recentemente nomeado, Brett Kavanaugh – terem votado a favor deste alargamento de direitos e da afirmação dos direitos de cidadania daqueles trabalhadores ou candidatos a emprego.

Apesar da crise racial que eclodiu há cerca de 2 semanas com o homicídio de George Floyd, e que expôs as tensões raciais existentes naquele país, a verdade é que, quer a sociedade académica, quer a jurisprudência norte-americana, têm sido particularmente vibrantes e progressistas na afirmação dos direitos civis, criando conceitos e precedentes judiciais que vêm influenciando outros espaços jurídicos, nomeadamente na Europa.

Devemos aos americanos, após o Civil Rights Act de 1964, os conceitos de discriminação indireta (disparate impact) e de medidas de ação positiva (affirmative actions), bem como a aplicação de regras anti discriminatórias, não apenas na execução do contrato de trabalho, mas também no acesso ao emprego, à luz da doutrina da pré-eficácia das regras laborais.

A mais recente decisão vem sedimentar o percurso progressista deste tribunal superior, que se iniciou com a liderança do Chief Justice, Earl Warren, que o liderou entre 1953 e 1969.

Earl Warren foi responsável pelo habitualmente conhecido “New Deal Court”, marcado pela afirmação de diversos direitos civis, pela revogação da doutrina, “separados, mas iguais”, pelo célebre acórdão Brown vs Board of Education e pela negação da natureza estática do texto Constitucional. Foi neste mandato que terminaram as leis segregacionistas e se sedimentou a ideia de que a Constituição americana é viva, devendo adaptar-se ao devir social e às mutações que se vão verificando na sociedade, em prol da dignidade das pessoas.

A recente decisão do Supreme Court vem, portanto, reforçar algo que nem sempre é recordado: o papel desempenhado pelos Estados Unidos da América, pelas democracias liberais e pelas suas principais instituições jurídicas na afirmação do princípio da igualdade.

Pode parecer paradoxal, mas não é: é precisamente nas sociedades com maiores problemas raciais, em termos históricos, mas com instituições fortes e evoluídas, formadas por profissionais tecnicamente bem preparados, que se podem encontrar avanços científicos e ventos de mudança na afirmação da igualdade e não discriminação.

Desde a Declaração de Independência de 1776, passando pelo Civil Rights Act de 1964, agora reforçado, o caminho para a afirmação da igualdade e da dignidade das pessoas tem sido difícil, mas paulatino, progressivo e evolutivo.

Por isso, importa não esquecer: a afirmação da igualdade e não discriminação, por um lado, e a defesa da mobilidade social, por outro, fazem parte do American Dream.

Foi esse o legado deixado, entre outros, por Abraham Lincoln, Franklin D. Roosevelt, Martin Luther King e John F. Kennedy, para quem a liberdade, a igualdade, o pioneirismo, o livre desenvolvimento da personalidade, a diversidade e o multiculturalismo foram – e são – a chave do progresso e da afirmação das democracias.

No exato momento em que a sociedade americana foi fortemente abalada pela violência associada ao homicídio de George Floyd, o Supreme Court voltou a afirmar a superior qualidade da sua doutrina e dos seus juízes e a estar à altura dos acontecimentos, reiterando que todas as pessoas devem ser tratadas com dignidade, respeito e sem violência.

É tempo de o afirmar.

Publicado na Human Resources Portugal.

A prestação de trabalho em regime de teletrabalho existe no ordenamento português desde 2003 e assume atualmente, no âmbito da doença Covid-19, uma importância muito significativa na forma de prestação das relações laborais.

No que diz ao regime de teletrabalho, a legislação laboral é clara: o trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmo direitos e deveres dos demais trabalhadores, incluindo, expressamente, a reparação de dados emergentes de acidente de trabalho (artigo 169.º do Código do Trabalho).

Tal significa, portanto, que a intenção do legislador foi a de evitar que a prestação de uma atividade em regime de teletrabalho se apresentasse como sendo desfavorável para o trabalhador em causa, nomeadamente em sede de reparação de danos emergentes de acidente de trabalho, tratando-se, no limite, de uma consagração do princípio da igualdade.

Nestes termos, em caso de acidente, o trabalhador mantém a proteção que tinha anteriormente, atribuída pelo seguro de acidentes de trabalho, desde que verificadas determinadas condições.

Importa recordar que o acidente deverá ter acontecido na realização de tarefas profissionais, bem como no local que tiver sido acordado pelas partes, consagrado no acordo escrito celebrado entre as partes, e obrigatório nos termos do número 5 do artigo 166.º do Código do Trabalho.

Assim sendo, os acidentes de trabalho que aconteçam fora do local acordado pelas partes para realização da prestação de trabalho, não deverão ser cobertos pelo seguro de acidentes de trabalho.

No entanto, e como exceção à regra, importa recordar que nada impede as partes de determinarem a possibilidade de certas tarefas serem realizadas num outro local, sendo, por exemplo, necessária a deslocação do trabalhador às deslocações de instalações da entidade empregadora ou mesmo de clientes. A ser assim, essas situações serão também cobertas, em caso de acidente, pelo seguro de acidentes de trabalho, estando devidamente cumpridos os demais pressupostos.

Não menos importante é a comunicação que deve ser feita pela entidade empregadora à entidade seguradora com a qual contratou a proteção dos seus trabalhadores, nomeadamente especificando o local de trabalho dos trabalhadores em regime de teletrabalho.

Assim, sofrendo o trabalhador um acidente, esse evento será analisado para determinar se estão reunidos os pressupostos da verificação de um acidente de trabalho. Verificados os mesmos, e sendo formalizado, nos termos da lei o acordo para prestação da atividade em teletrabalho, o trabalhador terá direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho, tal como se não prestasse a sua atividade em regime de teletrabalho.

Em suma: encontra-se garantido o princípio da igualdade de tratamento do trabalhador em regime de teletrabalho, desde que as partes formalizem a relação contratual nos termos consagrados na legislação laboral, e que a entidade empregadora cumpra o seu dever de informar a entidade seguradora das alterações efetuadas.

2020-06-17

Publicado na Advogar.

Há um vírus que se transmite nos Ministérios em relação ao qual o uso de equipamentos de proteção individual como as luvas e as máscaras se tem revelado ineficaz, apesar de o risco de contágio ter aumentado com a COVID-19.

O vírus não é, na verdade, chinês. Será talvez mais correto identificá-lo como o “vírus que faz escrever em chinês.” Ou, se preferirmos, o “vírus de legislar em chinês.”

Ao contrário do novocoronavírus -  que é “novo” por ter sido descoberto em 2019, apesar do mesmo agente infecioso já ter sido identificado em humanos e isolado em 1937 – este vírus não é novo.  Desde os bancos da faculdade que qualquer advogado sabe que, em muitos temas, "a lei não é clara", "a doutrina diverge" e "a questão não é líquida" -  frases que qualquer cliente aprecia, como bem se compreende. Contudo, apesar de antigo, este vírus tem revelado ultimamente um “R” bastante acentuado, para mal dos pecados do “intérprete” - que somos nós.

Sobre a interpretação da lei, o Código Civil dita que “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” Assim, pese embora a letra da lei não seja o único elemento a considerar (já que temos o elemento histórico, o sistemático e o teleológico a atender, sendo ainda possível interpretarmos a lei de modo mais ou menos extensivo), a palavra escrita não pode deixar de constituir a base para qualquer interpretação, devendo quem a interpreta e aplica presumir que se quis escrever exatamente aquilo que se escreveu.

A mais recente manifestação do vírus do Chinês foi a Resolução do Conselho de Ministros n.º 40-A/2020, publicada no Diário da República do passado dia 29 de maio. O diploma estabelece que o teletrabalho (apesar de deixar de ser regra) é obrigatório, designadamente na seguinte situação: “trabalhador com filho ou outro dependente a cargo menor de 12 anos, ou, independentemente da idade, com deficiência ou doença crónica, decorrentes de suspensão das atividades letivas e não letivas presenciais em estabelecimento escolar ou equipamento social de apoio à primeira infância ou deficiência, fora dos períodos de interrupções letivas fixados nos anexos II e IV ao Despacho n.º 5754-A/2019, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 115, de 18 de junho” (artigo 4.º, n.º2, alínea c) da RCM).  Não é ininteligível. Até pela semelhança com normas vertidas em Diplomas anteriores (como o artigo 22.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março). Mas também não é clara, nem simples, nem concisa - regras a ter em consideração, na redação de qualquer texto normativo.

Talvez à data de publicação deste texto já tenha até sido publicada uma Declaração de Retificação a esta norma. Na verdade, a COVID-19 também trouxe consigo, para além do vírus do Chinês, a proliferação das retificações. Que muitas das vezes não “retificam”: alteram, na substância.

O Decreto-Lei n.º10-G/2020 de 26 de março, por exemplo, previa que, durante o período de redução ou suspensão dos contratos de trabalho, bem como nos 60 dias seguintes à aplicação das medidas de apoio extraordinário à manutenção dos mesmos (o designado lay off simplificado), o empregador não podia recorrer ao despedimento coletivo nem à extinção dos postos de trabalho “relativamente aos trabalhadores abrangidos pelas medidas de apoio”. Apesar de publicada em 26 de março, esta lei foi retificada dois dias depois (sábado, 28 de março), passando a ser proibida aquela forma de cessação dos contratos relativamente a todos os trabalhadores.

No dia 5 de maio, a Declaração de Retificação n.º 18-C/2020 veio corrigir o Decreto-Lei n.º 20/2020, publicado no dia 1 de maio, para excluir os hipertensos e os diabéticos do elenco dos trabalhadores que podem justificar as suas faltas ao trabalho. À data deste texto está na mesa, de novo, a alteração a esta regra.

E são demais os exemplos de normas alteradas/ emendadas dias depois da publicação, ou interpretadas pela DGERT e pela Segurança Social em respostas a “FAQ” que vão, no mínimo, para além do que diz a Lei.

Legislar não será fácil, sobretudo em contexto de pandemia. Mas que a incerteza termine e que o rigor se almeje. Porque ler em chinês não é fácil.

2020-06-09
Guilherme Dray

Publicado no ECO Online

O novo regime de apoio às empresas e ao emprego é globalmente positivo, mas aparenta ser excessivamente complexo, comportando riscos ao nível da sua execução.

Passado o estado de emergência, é tempo de reconstruir. A reconstrução passa pelo esforço de todos: empresas, trabalhadores e independentes. Todos, sem exceção, devem concentrar os seus esforços num único objetivo: promover a atividade produtiva, trabalhar, reconstruir o que a pandemia levou e evitar uma crise económica e social. As projeções das instituições internacionais são claras: a economia mundial deverá regredir em 2020 cerca de 3,5%. Entre nós, prevê-se uma contração da economia e uma queda na taxa de variação real do PIB de 6,9 %.

Para quem tinha dúvidas sobre as virtudes do Estado Social de Direito, elas ficaram dissipadas. É nestes momentos que se percebe a importância do Welfare State: promover o bem comum, apostar na igualdade de oportunidades e apoiar os cidadãos na doença, velhice, desemprego e em situações de crise.

No que diz respeito ao emprego, o esforço deve manter-se na sua preservação e em evitar o aumento do desemprego.

Foi assim com o Lay Off Simplificado, que abrangeu cerca de 100 000 empresas e 800 000 trabalhadores. E será assim, até 30 de dezembro de 2020, na sequência da aprovação do Programa de Estabilização Económico e Social (PEES).

O PEES, recentemente aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 6 de junho, estabelece os quadros gerais da atual fase de recuperação pós-pandemia.

O novo figurino, do que diz respeito ao emprego, aponta para o aumento do número de horas trabalhadas e do rendimento auferido, preconizando-se o seguinte:

Prorrogação do atual regime do Lay Off Simplificado até 30 de julho de 2020, com suspensão do contrato de trabalho e redução do período normal do trabalho (PNT), tendo o trabalhador direito a 66% da retribuição;

Criação de um novo regime de Lay Off Simplificado, a aplicar a partir de 1 de agosto de 2020, que apenas inclui a redução do PNT, excluindo-se a suspensão do contrato de trabalho (aplicável apenas às empresas que permanecem encerradas por determinação do Governo);

Nos meses de agosto e setembro, as empresas que tenham uma quebra de faturação igual ou superior a 40 % podem reduzir o PNT até 50%; as que tenham uma quebra superior a 60%, podem reduzir o PNT até 70%, e a retribuição do trabalhador ascende, respetivamente, a 83% ou 77%;

Nos meses de outubro a dezembro, as empresas que tenham uma quebra de faturação igual ou superior a 40 % podem reduzir o PNT até 40%; as que tenham uma quebra superior a 60%, podem reduzir o PNT até 60%, e a retribuição do trabalhador ascende, respetivamente, a 92% ou 88%;

Criação de um novo incentivo extraordinário à normalização da atividade empresarial com duas modalidades: o pagamento de uma remuneração mínima mensal garantida (RMMG) “one-off”, ou de duas RMMG, pago em duas ou três tranches ao longo de 6 meses, por posto de trabalho que tenha estado em lay-off ao abrigo do regime simplificado;

Imposição de condicionalidades ao novo incentivo extraordinário: as empresas comprometem-se a não proceder a despedimentos coletivos, por extinção do posto de trabalho e por inadaptação, bem como a manter o nível de emprego, quer durante a aplicação da medida, quer nos 60 dias subsequentes;

Para compensar a quebra de rendimentos entretanto ocorrida, é criado um complemento de estabilização para quem tenha estado em lay-off, a pagar em julho, no montante da perda de rendimento de um mês de lay-off, num valor que pode variar entre 100€ e 351€;

O Programa ora aprovado visa, em suma, proteger as empresas e os trabalhadores, sendo por isso de aplaudir. Mas, há que dizê-lo: o sistema em causa é complexo, envolve diferentes variáveis, difere ao longo do tempo, torna complexa a programação das empresas e leva ao limite a eficiência e profissionalismo dos serviços estatais.

O Lay Off Simplificado foi uma boa medida, razão pela qual todos pediram a sua prorrogação. Todavia, teve problemas, que importa recordar: as medidas foram reiteradamente alteradas; as famosas FAQs (perguntas e respostas) emitidas pelos serviços nem sempre foram acertadas; e os prazos de pagamento foram ultrapassados, para desespero de empresas e trabalhadores.

Os serviços fizeram o que que podiam, mas a máquina do Estado não estava preparada para responder com prontidão a um volume anormal de pedidos.

Ora, este é o grande risco do PEES. Sendo ambicioso na conceção, arrisca-se a falhar na execução.

Sabendo-se da dificuldade que houve na aplicação do Lay Off Simplificado, talvez tivesse sido prudente (e sensato) criar-se um sistema mais simples e escorreito do que o anterior. Escolheu-se o caminho oposto, tornando ainda mais complexo o que já não era simples.

Os serviços públicos vão ser, mais uma vez, confrontados com a ambição do legislador. Espera-se que estejam à altura.

2020-06-03

Publicado na Advocatus.

No passado dia 30 de Maio, à janela do Vaticano, o Papa Francisco falou das grandes provações da humanidade, de como as mesmas são determinantes para alterar comportamentos, e, falando da pandemia que afeta o mundo, deixou no ar a pergunta, para quem a quis escutar: ”Como querem sair disto? Melhor ou pior?”

No meu primeiro dia de estágio, a primeira tarefa de que a minha querida Patrona me incumbiu foi de ler o capítulo de Deontologia do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Não advogar contra o Direito, recusar causas e patrocínios injustos são regras que, para além de enraizadas desde casa, ecoam desde sempre em cada questão levantada pelos clientes, em cada processo que chega à secretária, em cada consulta pedida.

Já somam algumas, as vezes em que a incredulidade com algumas solicitações ficaram a pairar umas horas depois do adiantar de algumas pretensões. No entanto, na grande maioria das vezes, a linguagem não verbal é o bastante para perceber quem alinha e quem não, nesta coisa da justiça.

Neste contexto de “novos normais”, “etiquetas respiratórias”, “confinamentos” e “desconfinamentos” surge, por entre o novo léxico emergente, um antigo e persistente léxico, talvez inevitável: o “chico-espertismo” e a “batota”. Felizmente, persiste igualmente o reverso da medalha.

Desde que “isto” começou, já assistimos (nós, agora mais especificamente os laboralistas), a um quase tudo: bancos de horas “negativos”, lay off’s na modalidade de suspensão dos contratos com trabalhadores a laborar em pleno, lay off’s na modalidade de redução de horário com trabalhadores a trabalhar até às 03.00 da manhã, teletrabalho obrigatório por lei mas proibido na empresa, entre outros malabarismos, uns pretendidos, outros implementados.

Do outro lado, vejo também (e tenho a honra de aconselhar) instituições que querem fazer o melhor. Que complementam os apoios estatais, de forma a ajudar quem precisa. Que suspendem contratos de outsourcing, mas pretendem ajudar na fatura. Que entendem a organização como um todo, em que todos são indispensáveis e o bem-estar deve ser transversal.

Não são tempos fáceis. Mas se dermos o nosso melhor, vamos todos ficar (bem) melhor.