O clima ensolarado ainda inexplorado do país vai ao mercado com um primeiro leilão de 1,4 GW - o maior leilão de energia solar já realizado em Portugal – e adivinham-se já que os custos a longo prazo para se atingirem metas de curto prazo. Embora o sistema de leilões em si tenha sido discutido entre Governo e  regulador e, muito provavelmente, com os grandes players da produção de energia em Portugal,  nunca foi discutido com o próprio mercado. Certas questões, como o impacto da redução do retorno sobre o investimento no contexto de um mercado europeu muito competitivo e os custos a longo prazo para os consumidores permanecem incertas.

Até recentemente, as licenças de projetos solares eram solicitadas diretamente à DGEG – Direção Geral de Energia e Geologia. Sem uma visão clara da capacidade real disponível na rede (não se compreende o secretismo das operadores de rede e a passividade do regulador a este respeito), os investidores trabalhavam na obtenção da licença de produção com o risco de, no final do processo, não haver capacidade de ligação. Com o novo enquadramento legal, antes de se solicitar uma licença, precisa-se de um título de reserva de capacidade de conexão à rede. Este pode obtido de três maneiras: primeiro, por um contrato com um operador de rede (REN ou EDP Distribuição), nos locais haja capacidade disponível; segundo, onde não existe essa capacidade, por um contrato direto com um operador de rede, mas o produtor assumindo os custos de ligação à rede; e, finalmente, através de um leilão, como o que está a decorrer este mês.

Essas mudanças, positivas, tiveram um efeito secundário nos atuais projetos em processo de obtenção de licenças. O Governo cancelou efetivamente esses processos e os seus promotores precisam agora de participar no leilão se querem aproveitar o trabalho  feito. O que significa correr o risco de perder uma licença de produção que antes dependia apenas da conclusão de tramites administrativos. Não ficaram claros para os promotores destes projetos quais os critérios que levaram o Governo a levar a leilão nuns casos, e a não levar noutros, pontos de ligação em locais para os quais corriam processos de licenciamento em estado já muito avançado, pendentes apenas da própria licença de produção; nem como se selecionaram os processos aos quais foram atribuídas licenças de produção dias antes  da abertura do leilão.

O leilão em curso, e os que se lhe seguirão nos próximos meses, têm o potencial de aumentar a curto prazo o número de projetos a serem conectados à rede. Mas corremos o risco de que os títulos de reserva de capacidade sejam adjudicados com base nas tarifas baixas hoje não que não sejam no futuro. Uma tarifa fixa agressiva (mais de 20% abaixo do atual preço de mercado) significa poupança imediata para os consumidores. Mas, caso os preços de energia caiam nos 15 anos de duração das tarifas fixas garantidas, como mutos preveem, beneficiarão os produtores e ficarão os consumidores com uma fatura pesada.

Por outro lado, este sistema de leilão leva os promotores a reduzir os seus custos, por força de uma redução no preço de venda da emergia produzida. Para cumprir as metas de 5 GW a 6 GW em energia solar estabelecidas pelo Governo, precisaríamos de pelo menos 3 ou 4 leilões. No entanto, muitos locais viáveis ​​para projetos fotovoltaicos, sobretudo no Alentejo, não têm acesso à capacidade da rede nas suas proximidades. Cobrir a distância necessária para colocar esses locais na rede exige investimentos substanciais, elevando os custos do projeto em si. Isso é algo que pode dissuadir os investidores, quando combinado com condições de leilão destinadas a reduzir a rentabilidade do projeto. Embora a partilha de custos entre os operadores da rede e desenvolvedores possa ser uma forma de colmatar esta lacuna, conforme estabelecido na legislação agora revista, não estamos a atrair proactivamente projetos para áreas de baixa densidade de rede.

Em última análise, embora o potencial esteja lá para colocar Portugal no mapa solar, o Governo passa a ideia que consegue que os participantes do mercado compartilhem as suas margens com os consumidores, o que pode vir a não ser verdade e põe em risco a implantação das metas de produção de energia solar no nosso país. A menos que essas condições mudem para leilões futuros, a história pode repetir-se: não conseguirmos investimentos para o interior de Portugal e os consumidores irão arcar com os custos desta estratégia. Para todos os interessados, os documentos do concurso podem ser acedidos ​​on-line em https://leiloes-renovaveis.gov.pt/. Preparem-se para ver regras e prazos draconianos para os promotores mais pequenos e que tenham que recorrer a financiamento para concorrer.

2019-07-02

A escolha do ajuste direto, nos termos do Código dos Contratos Públicos, só pode ser efetuada tendo em atenção o valor ou, excecionalmente, um critério material. Conforme resulta da jurisprudência nacional e europeia, a interpretação desta exceção à regra, que é o uso dos critérios materiais, na lógica de salvaguarda da concorrência e da igualdade no acesso aos mercados públicos, deve ser entendida de forma estrita, reservando a adjudicação a circunstâncias excecionais e inequivocamente fundamentadas. Vejamos as duas situações mais comuns: a urgência imperiosa e os motivos artísticos.

No primeiro caso, estão em causa três requisitos principais, que se interligam entre si: (1) A existência de “urgência imperiosa”; (2) A existência de “circunstâncias imprevisíveis”; (3) A não imputabilidade dos factos à entidade adjudicante. Para além destes três requisitos principais, há mais dois: (4) o ajuste direto apenas pode ser feito na “medida do estritamente necessário”; e (5) apenas é possível quando “não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos”.

Não obstante ser pacifico que os requisitos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do Código dos Contratos Públicos são cumulativos, o decisor tem optado pelo uso dos critérios materiais apenas quando encontra fundamento ou em lei ou em decisão do Conselho de Ministros. Se o uso da lei não é correto, uma vez que implica a multiplicação de alterações ao Código, o recurso frequente a decisões de fundamentação pelo Conselho de Ministros é menos aconselhado.

Quanto aos motivos artísticos, falamos de contratos que só podem ser executados por alguém com mérito próprio para elaboração de uma obra artística, que não pode ser feita por outrem. Torna-se necessário demonstrar que a prestação objeto do contrato só pode ser confiada a uma entidade determinada. Também neste caso a interpretação deve ser estrita, mas não deve ser proibitiva. A restrição apenas deve obrigar o decisor a fundamentar, mas não devendo prevalecer questões de “gosto”. O legislador está apenas a prever que a execução do contrato não deve ser fungível, algo que requer fundamentação do decisor.

Em suma, os receios pelo uso dos critérios materiais no ajuste direto são injustificados, uma vez que a restrição e excecionalidade apenas implicam um dever de fundamentação mais apurado e, consequentemente, mais transparente. Ora, se há mais exigência na fundamentação, o decisor não deveria ficar mais garantido por estar a cumprir o dever de transparência próprio dos contratos públicos? Por tudo isto, o uso de critérios materiais deve ser assumido pela entidade adjudicante mais vezes. Só assim se criam boas práticas e assegurando uma correta inovação.

2019-05-22
Guilherme Dray

Artigo publicado no Jornal de Negócios

O momento atual tem sido marcado por uma larga conflituosidade e diversas greves em vários setores de atividade que afetam os cidadãos e a economia em geral. Tem sido assim nos setores da saúde, educação, portos e transportes de pessoas e mercadorias.

A este propósito, importa recordar o papel da mediação laboral.

Num recente artigo publicado na revista jurídica americana Justia, a autora Tamar Frankel, Professora de Direito da Boston University School of Law, recorda a crescente importância da “Order Without Law” e do compromisso enquanto forma de relacionamento e de resolução de conflitos.

No essencial, tendo por base algumas áreas específicas da atividade empresarial – em especial o setor da agricultura – a autora recorda que a autorregulamentação de interesses e o compromisso entre as partes, mesmo sem base legal, podem garantir maior eficiência e competitividade do que o recurso a regras legais. A este propósito, lembra que naquele setor os negócios continuam a basear-se em acordos de cavalheiros e nos princípios da cooperação económica, reciprocidade, lealdade e respeito pela palavra dada. Tendo por base regras próprias criadas por associações setoriais representativas, relativas à formação e execução dos contratos, à responsabilidade civil e à arbitragem como forma de resolução de conflitos, a atividade floresce sem necessidade de recuso a regras legais.

Os agricultores americanos usam regras próprias que norteiam a forma como se relacionam, em especial quando está em causa a distribuição e utilização de bens essenciais (vg água para rega) para a sua atividade. Mais do que a lei, a confiança é o fator chave. Mais do que qualquer imperativo legal, o relacionamento presencial, o conhecimento recíproco, o bom-senso e o retorno à tradição do “aperto de mão” podem ser fatores de sucesso para garantir paz social, bons ambientes de negócios e o cumprimento dos contratos firmados. 

E o mesmo sucede, também, ao nível relações de trabalho. Neste domínio, em especial quando a conflituosidade laboral tende a crescer em determinadas conjunturas político-económicas, o diálogo entre as partes, a prevenção de conflitos e a mediação laboral podem ser determinantes para garantir serenidade social e competitividade empresarial.

A greve é um direito constitucional que tem uma função específica – garantir um meio de defesa e de pressão dos trabalhadores perante abusos ou intransigências negociais dos empregadores. A sua utilização, todavia, deve ser vista como uma ultima ratio, esgotados que sejam os meios negociais. A greve pode e deve ser usada, mas não deve ser banalizada nem utilizada como meio de prejudicar, em última instância, os consumidores e a população em geral.

É por isso que a mediação laboral é e tende a ser cada vez mais importante – ela garante o regresso ao diálogo presencial, à tradição do “aperto de mão” e ao cumprimento da palavra dada.

Foi assim no mais recente acordo obtido entre a ANTRAM, por um lado, e o Sindicato dos Motoristas de Materiais Perigosos e a FECTRANS, por outro.

Mais do que recorrer à lei e aos seus meios coercivos, as partes optaram por se sentar à mesa, negociar e autorregulamentar os seus interesses, através de mediação laboral.

O acordo alcançado, na medida em que seja cumprido, será um exemplo bem sucedido que confirma a tese da “Order Without Law”. Não há Sociedade sem Direito. Mas por vezes, mais importante do que o Direito e as leis, são o compromisso e a busca da harmonia entre as partes.

 

Artigo publicado na ECO

Para quem possa ser induzido em erro pelo título do artigo, este texto não é sobre a conhecida história da “Branca de Neve e dos Sete Anões”. Não deixa, no entanto, de ser pertinente que uma das mensagens da história, em particular a da importância da imagem – associada à eterna juventude –, se mantenha, cada vez mais, atual.

Na verdade, o retrato físico/imagem – ou, melhor, o uso que dele se faça e os direitos a esse uso associados – têm ganho um novo vigor com o fenómeno da Internet e, em particular, das redes sociais, que se têm tornado um espelho, onde a cada segundo há inúmeras pessoas, tal qual a Rainha Má, a perguntarem “Espelho meu, espelho meu…”.

Para quem não sabe ou sabe, mas, na maioria das vezes, tão-pouco lhe atribui a devida relevância, o retrato físico de uma pessoa, qualquer que seja o seu suporte material (fotografia, filme, pintura, desenho), é um dado pessoal e, enquanto tal, encontra-se tutelado pelas novas regras de proteção de dados pessoais – o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) –, mas não só…

A proteção da imagem tem acolhimento na nossa lei fundamental – a Constituição da República Portuguesa –, que prevê no seu artigo 26.º, n.º 1 que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, (…) ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada (…)”.

O direito à imagem constitui um direito de personalidade que, a par com o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, integra o elenco dos direitos de personalidade do Código Civil. Em ambos os casos, a ordem jurídica visa tutelar a intimidade e reserva das pessoas.

De uma forma simples, o Código Civil – no seu artigo 79.º, n.º 1 – proíbe que, sem o consentimento da pessoa visada, o seu retrato possa ser exposto publicamente ou que dele se façam reproduções ou lhe seja dado um uso comercial. Mas, afinal, será sempre necessário o consentimento?

Nem sempre. Há exceções. Não é necessário obter o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente (artigo 79.º, n.º 2 do Código Civil).

Com a ressalva das exceções acima, a lei civil pressupõe que o consentimento seja expresso. Ou seja, tem de ser assegurado que a pessoa em causa está, sem margem para dúvidas, de acordo com tal intromissão por parte de um terceiro.

Em situações limite, os tribunais têm, porém, admitido que poderá existir uma presunção de consentimento ou consentimento tácito. Nesses casos, será necessário que os sinais exteriores do titular do direito se revelem ou evidenciem como inequívocos ou desprovidos de qualquer dúvida. Pense-se, por exemplo, na situação de um evento (privado) em que o visado sabe que está a ser fotografado para um periódico e que, inclusivamente, colabora com o fotógrafo para obter o melhor ângulo para a fotografia.

Igualmente, o tratamento do dado pessoal «imagem fotográfica (ou filmada)» – ou seja, a sua recolha, conservação, comunicação, divulgação – é permitido pelo RGPD, desde que justificado por algum dos fundamentos de licitude nele previstos, entre os quais, o consentimento, a execução de um contrato, o cumprimento de uma obrigação jurídica, a prossecução de interesses legítimos. Pense-se, por exemplo, na fotografia necessária para a emissão do cartão do cidadão. Obviamente que, nestes casos, não é exigível o consentimento, encontrando-se os Serviços de Identificação Civil legitimados a utilizar o dado pessoal «imagem fotográfica» para tal finalidade. 

Embora o consentimento seja, em regra, exigível pelo Código Civil (com a ressalva das exceções mencionadas), poderá já não ser assim ao abrigo do RGPD. O RGPD permite que os dados pessoais, incluindo a imagem fotográfica (ou filmada), sejam objeto de tratamento sem necessidade de consentimento quando essa utilização seja justificada por um daqueles outros fundamentos de licitude.

Nos casos em que, porém, se decida recorrer ao consentimento para legitimar esse tratamento – que, ainda continua a ser o fundamento mais utilizado, muitas vezes, diga-se, de forma excessiva e desnecessária –, o consentimento não valerá ser for tácito ou presumido para efeitos do RGPD.

Coloca-se, pois, a questão de articulação dos dois regimes – o do Código Civil e o do RGPD –, e cuja resposta não se revela fácil.

Formalmente, poderíamos ensaiar que o consentimento a que se refere a lei civil é um consentimento distinto do consentimento enquanto fundamento de licitude para o tratamento do dado pessoal imagem ao abrigo do RGPD. Logo, ainda que um consentimento tácito pudesse justificar a reprodução da imagem para efeitos de acautelar o direito fundamental de personalidade, não legitimaria, por si só, o tratamento do dado pessoal imagem.

É, todavia, pouco plausível essa distinção, pois, num e noutro caso, estamos a falar do mesmo “bem” – a imagem –, merecedor de tutela pelo direito.

No exemplo já referido, se uma pessoa, sabendo que está a ser fotografada por um periódico, pousa para a fotografia, mas sem expressamente referir que autoriza que lhe tirem a fotografia, é claro que deu o seu consentimento (tácito) para aquela finalidade.

No RGPD, o consentimento tácito não é, porém, suficiente. E não é suficiente, precisamente porque o uso da imagem se tornou corriqueiro e daí, possivelmente, a necessidade de uma justificação mais que plausível para o seu uso. É que, pelos vistos (e, bem, em nossa opinião), para o RGPD, «o seguro morreu de velho», ainda que depois possam surgir dificuldades de articulação de regimes, que terão de ser resolvidas com recurso à interpretação, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que as normas foram criadas e as condições específicas do tempo em que são aplicadas.

Neste caso, pela via do interesse legítimo (do periódico que tirou a fotografia) poderia eventualmente o uso da imagem ser justificado ao abrigo do RGPD, mas não deixa de ser uma solução com risco e que tem de ser convenientemente analisada e justificada. Para isso servem os juristas.

2019-03-27
Frederico Vidigal

Depois do forte investimento em centrais hídricas e nos parques eólicos, Portugal parece ter finalmente acordado para a energia solar. Atualmente, o país apresenta uma capacidade de produção de 572 MW com ambição de até 2021 conseguir triplicar a capacidade solar até 1600 MW, tendo o governo já aprovado mais de 1000 MW de energia solar em regime de mercado, ou seja, sem direito a tarifas subsidiadas (que todos os anos custam aos bolsos dos consumidores 1,2 mil milhões de euros).

Contudo, um dos grandes entraves à expansão da energia solar em Portugal reside na (in)potência de ligação disponível, e na falta de pontos de ligação para os pedidos que existem.

O desenvolvimento e evolução da energia solar (não só em Portugal mas também noutros países) parece encaminhar-se para a produção em autoconsumo, em que pessoas e empresas produzem e consomem a sua própria eletricidade através de painéis solares instalados nos seus telhados. Refira-se que no atual contexto, uma central solar no Alentejo ganha 4 ou 5 cêntimos por kWh vendido, enquanto que no telhado de um estabelecimento comercial ou no de uma pequena indústria, cada kWh produzido corresponde em média a uma poupança de 10 a 30 cêntimos.

Em Portugal, a atividade de produção de autoconsumo é uma atividade livre, apenas dependente da obtenção de registo prévio e de um certificado de exploração a emitir junto da Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG). Os consumidores em autoconsumo podem também vender o excesso de eletricidade produzida, nomeadamente em mercados organizados ou mediante a celebração de contratos bilaterais de compra de energia.

Veja-se a este propósito o modelo que a Sonae prosseguiu nos seus hipermercados em 2013. Com efeito, a Sonae juntamente com a EDP foi pioneira em Portugal em instalar 15.867 painéis solares fotovoltaicos em 46 coberturas de hipermercados. Nesse projeto, a EDP ficou responsável pelo investimento, retendo a propriedade dos painéis solares durante 15 anos, passando após esse período a Sonae a usufruir das receitas da energia produzida na sua totalidade e, consequentemente, de poupanças na conta da luz.

Na Holanda, a Nissan anunciou no mês passado a construção do maior telhado solar holandês, onde decidiu montar 9000 painéis solares no telhado da Nissan Motors Parts Center (NMPC) em Amesterdão, capaz de produzir energia solar para alimentar 900 habitações, equivalente a uma poupança de 1,17 milhões de quilogramas de CO2, com capacidade de gerar 2,7 milhões de kWh de eletricidade por ano e de cobrir 70% das necessidades energéticas da NMPC.

Note-se que o preço dos painéis solares apresenta-se cada vez mais competitivo, tendo inclusive a Tesla já começado a vender e instalar telhas solares para produzir energia, e o IKEA já anunciado a sua intenção de a partir de 2025 iniciar no mercado português a comercialização de painéis solares de instalação no telhado.

Assim, apesar da produção de eletricidade em autoconsumo não ser ainda uma realidade bem conhecida nas empresas e nos lares portugueses, tal pode estar brevemente a mudar com as empresas a apostarem cada vez mais em modelos energéticos que promovam a sustentabilidade económica e ambiental. De modo a tornar este desiderato possível, seria igualmente desejável que o Estado incentivasse a sua produção, nomeadamente através da concessão de maiores benefícios fiscais aos produtores.

Assim, é caso para dizer que o sol ainda não nasce não para todos… mas cada vez nasce para mais (e ainda bem!).

Para muitos até pode ter passado despercebido, mas a verdade é que o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) aparece indissociavelmente ligado ao tema da “Inteligência Artificial”. E tanto assim é que não foi coincidência que na data em que se assinalou o “Dia da Proteção de Dados” – dia 28 de janeiro de 2019 –, o Conselho da Europa, através do Comité Consultivo da Convenção para a Proteção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados (Convenção 108), tenha publicado um conjunto de Orientações sobre Inteligência Artificial e Proteção de Dados.

Quando falamos de Inteligência Artificial estamos a referir-nos predominantemente a dados, ou melhor, a conjuntos de dados (de dados pessoais, mas não só), que são usados para “ensinar” os algoritmos, pelo que grande parte do sucesso dos sistemas de Inteligência Artificial ficará a dever-se aos dados objeto de tratamento.

Se é verdade que a utilização de aplicações com recurso ao uso da Inteligência Artificial poderá ser uma mais-valia pense-se, por exemplo, na sua utilização no setor da indústria, da investigação científica e tecnológica, da saúde, ao nível do controlo e prevenção de fraudes e da evasão fiscal, entre outros. Por outro lado, não é menos verdade que o uso da Inteligência Artificial poderá afectar os direitos de privacidade e de proteção de dados pessoais e que, neste âmbito, há medidas a adotar e riscos que devem ser acautelados.

Assim, e a pensar também no recurso a sistemas de Inteligência Artificial (que se diga, já são hoje em dia uma realidade como, por exemplo, na definição de perfis para efeitos de publicidade comportamental, nas práticas de recrutamento eletrónico sem qualquer intervenção humana, e, em algumas utilizações, no âmbito do diagnóstico médico) e na sua evolução tecnológica, o RGPD prevê que qualquer pessoa tem direito a aceder aos seus dados pessoais e de exercer esse direito (de acesso e informação) com facilidade e a intervalos razoáveis, a fim de conhecer e verificar a ilicitude do tratamento.

Isto significa que cada pessoa deverá ter o direito de conhecer e ser informada, nomeadamente, das finalidades para as quais os seus dados pessoais são tratados, do período durante o qual os dados são tratados (se possível), da identidade dos destinatários dos dados pessoais, da lógica subjacente ao tratamento automático dos seus dados pessoais e, pelo menos quando tiver por base a definição de perfis, das respetivas consequências.

Mais, cada pessoa deverá ter o direito de não ficar sujeita a uma decisão, que poderá incluir uma medida que, avaliando os seus aspetos pessoais, se baseie exclusivamente num tratamento automatizado. De entre as formas de tratamento automatizado encontra-se, por excelência, a definição de perfis, pelo que cada pessoa deverá ter o direito a não ficar sujeito a um tratamento que avalie os seus aspetos pessoais, como, por exemplo, a sua situação económica, estado de saúde, preferências ou interesses pessoais, comportamento, localização ou deslocações, quando essa análise vise a produção de determinados efeitos jurídicos ou a afetem significativamente.

Pense-se, por exemplo, na recusa automática de um pedido de crédito por via eletrónica a partir de uma avaliação automatizada da situação económica de uma pessoa, ou da recusa de um contrato de seguro, em função do quadro genético dessa pessoa, ou ainda, no âmbito de um processo de recrutamento, na escolha de um determinado candidato em detrimento de um outro a partir de um recrutamento automatizado sem qualquer intervenção humana. Este último exemplo não é, aliás, uma hipótese meramente teórica ou remota. Em 2014, a Amazon criou um sistema baseado em Inteligência Artificial para a contratação de colaboradores. Sucede, no entanto, que o algoritmo utilizado, o qual foi construído a partir de perfis de ex-candidatos, discriminava, de forma sistemática, os candidatos do sexo feminino, especialmente para funções com um perfil mais técnico ou de desenvolvimento de software.

O tratamento automatizados de dados, incluindo a decisão e definição de perfis automatizada, com recurso a Inteligência Artificial fica, portanto, sujeita às regras do RGPD que regem o tratamento de dados pessoais, entre outros, o fundamento jurídico do tratamento e os princípios da proteção de dados, incluindo os princípios da transparência e da responsabilidade («accountability»).

No atual contexto do RGPD, caberá às empresas – fabricantes, programadores, vendedores, prestadores de serviços – adotarem medidas técnicas e organizativas que garantam, entre outros aspetos, que fatores que introduzam imprecisões nos dados pessoais sejam corrigidos e que seja minimizado o risco de erros, bem como medidas de proteção para acautelar os potenciais riscos para os interesses e direitos dos indivíduos e de forma a prevenir efeitos discriminatórios, como aconteceu no exemplo da Amazon.

Como alerta o Comité Consultivo, nas suas recentes orientações, a consulta de grupos independentes de especialistas em várias áreas que possam dar os seus contributos na criação de sistemas de Inteligência Artificial com respeito pelos direitos humanos e orientados para questões éticas e sociais, bem como a adoção de códigos de conduta e mecanismos de certificação poderão ter um papel relevante.

É igualmente importante estabelecer, de forma clara, expressa e inequívoca, o papel e obrigações de cada um dos diferentes intervenientes em relação a todo o ciclo de vida dos sistemas de Inteligência Artificial, e que permita, em caso de falha, imputar a respetiva responsabilidade a quem de direito. Claro que antes, seria aconselhável que o legislador define-se o regime de responsabilidade para esses casos, mas isso é outra história…

2019-01-17

Muito se tem discutido sobre a temática da descentralização de competências. A ideia nuclear que preside há aceitação pelas autarquias locais de atribuições e competências do Estado central é a de que estas têm que ser acompanhadas dos recursos financeiros, humanos e patrimoniais adequados, não só para garantir a estabilidade financeira, como ainda para salvaguardar a autonomia das entidades receptoras. E sobre esta matéria o governo começou por criar a Lei-Quadro nº 50/2018 de 16 de Agosto. Ali se estabelece que a afectação dos recursos, designadamente financeiros, se concretizaria através de diplomas sectoriais tendo presente as diferentes áreas a descentralizar. E em cumprimento do estabelecido na referida Lei-Quadro o governo aprovou um conjunto de diplomas sectoriais que vão da justiça até ao domínio do estacionamento público, passando pelas estruturas de atendimento ao cidadão, pelos projectos financiados pelos fundos europeus e programas de captação de investimento, pelo apoio aos bombeiros voluntários, pela habitação, pelos transportes e vias de comunicação, pela promoção turística e, por ultimo, pela gestão do património imobiliário público sem utilização.

Numa primeira análise destes diplomas sectoriais resulta, desde logo, que existem matérias cujas competências podem ser transferidas quer para as Câmaras e Freguesias, quer para as entidades intermunicipais (CIMs). É precisamente o que sucede no domínio da justiça - (no que respeita à rede de julgados de paz, ao apoio às vitimas de crimes e à reinserção social de jovens e adultos) - e na área do apoio aos bombeiros voluntários. Neste ultimo caso, com a particularidade de o apoio às equipas de intervenção permanente das Associações de Bombeiros Voluntários passar a ser da competência dos órgãos municipais. Já a participação na definição da rede dos quarteis, bem como a participação na elaboração de programas de apoio às corporações de bombeiros passa para a alçada das entidades intermunicipais. Por outro lado, existem áreas que são transferidas apenas para os municípios, como sucede com os domínios das Lojas e os Espaços de Cidadão; da habitação; da gestão do património imobiliário publico e, ainda, das estradas em perímetro urbano e do estacionamento publico. Outras áreas existem que são transferidas só para as entidades intermunicipais, como sucede com os projectos financiados pelos fundos europeus, os programas de captação de investimento e a promoção turística interna sub-regional. O que bem se compreende, tendo em conta que se trata de projectos e investimentos com maior escala e destinados a abranger uma área territorial supra municipal.

Comum às referidas transferências de competências é o facto de todos os diplomas sectoriais estabelecerem uma norma em que cabe aos municípios e às entidades intermunicipais comunicar à Direcção Geral das Autarquias, “até sessenta dias corridos”, após a entrada em vigor do respectivo decreto-lei e depois da prévia deliberação da Assembleia Municipal ou da Assembleia Intermunicipal, que não pretendem exercer estas competências, durante o ano de 2019. E isso irá acontecer, seguramente, caso a transferência de competências não seja acompanhada do respectivo “pacote” financeiro. Pode também acontecer que os municípios e as comunidades intermunicipais não pretendam a transferência das competências, nem no presente ano, nem no ano de 2020. Nesse caso, aquilo que deverão fazer é comunicar, à Direcção Geral das Autarquias, esse facto até ao dia 15 de Setembro de 2019, após deliberação dos respectivos órgãos deliberativos.

Porém, parece resultar da Lei-quadro que até ao dia 1 de Janeiro de 2021 a transferência de competências tem que ser assumida pelos municípios e entidades intermunicipais, isto é, haja ou não vontade em recebe-las, estas tornam-se irreversíveis. Será assim? A resposta não é linear. Na verdade, a transferência de competências rege-se por uma série de princípios e de garantias. Com efeito, consideramos que a transferência de competências, se não for acompanhada dessas garantias, nomeadamente da transferência dos recursos financeiros, não produzirá quaisquer efeitos. E, em último caso, pode legitimar a sua rejeição. Para evitar este constrangimento foi apresentado e aprovado na Assembleia da Republica um projecto de resolução que, no fundo, constitui uma recomendação ao Governo para esclarecer até Fevereiro quais os montantes a transferir. Sem isso, os autarcas não aceitam mais competências.

A negociação coletiva é um processo negocial que se desenvolve entre as instituições patronais (empresários e as suas associações) e as associações representativas de trabalhadores, com o objetivo principal de fixar as principais condições de trabalho. Constitui uma das formas mais viáveis para resolver o conflito laboral. Contudo, não é fácil para empregadores e trabalhadores negociarem as condições de trabalho, consubstanciando-se num longo processo.

O produto por excelência da negociação coletiva é a Convenção Coletiva de Trabalho, que pode revestir uma de três formas: Contrato Coletivo de Trabalho, Acordo Coletivo e Acordo de Empresa.

A autonomia coletiva e o direito à contratação coletiva, estão consagrados, entre os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, no artigo 56.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, razão pela qual o Estado deve promover o seu exercício. Por outro lado, estabelece o artigo 485.º do Código do Trabalho que o Estado deve promover a contratação coletiva para permitir que as convenções coletivas de trabalho sejam aplicadas ao maior número possível de trabalhadores e empregadores.

Ao possibilitar um diálogo entre as partes envolvidas na relação laboral a negociação coletiva surge como um instrumento precioso de pacificação social. Isto significa que a negociação coletiva cumpre um importante papel de concertação social, sendo um meio para a prevenção e resolução de conflitos laborais através da harmonização entre os direitos do trabalhador e do empregador.

Os trabalhadores alcançam, através das suas organizações representativas, uma posição de maior força para negociar as condições de trabalho.

A negociação passa a ser equilibrada: entre o empregador, por um lado, que pode ser representado por uma estrutura coletiva; e as estruturas de representação coletivas do trabalhador, por outro. Ao reconhecer o trabalhador como participante do processo empresarial, a lei contribui para a sua motivação, produtividade e definição de melhores condições de trabalho. A negociação coletiva permite a adaptação permanente das normas laborais às mutações, a flexibilização das condições de trabalho, bem como a regulação de uma diversidade de questões laborais que podem não estar previstas na lei laboral.

Na maioria das convenções celebradas as principais áreas de intervenção são os horários de trabalho, o pagamento das horas extraordinárias ou a extensão dos benefícios sociais dos trabalhadores, através da atribuição do complemento do subsídio de doença e de seguros de saúde. Algumas convenções admitem, por exemplo, uma duração máxima de trabalho semanal inferior às 40 horas legalmente previstas. A maioria estabelece ainda um período de férias superior aos 22 dias úteis.

A negociação coletiva possibilita a construção de normas ajustadas à particularidade de cada profissão e setor de atividade. Além do mais, permite resolver novas questões, associadas ao desenvolvimento tecnológico e ao tratamento de dados.

Por essa razão, tem também uma função económica, uma vez que permite uma maior adaptação das normas laborais à organização empresarial, ao trabalhador e à sua situação económica, o que confere maior dinamismo económico à realidade social e garante mais competitividade às empresas.

Em suma: a negociação coletiva, quando equilibrada e bem sucedida, garante a adaptabilidade da legislação laboral às especificidades do setor ou da empresa, a pacificação do setor produtivo e o aumento da produtividade empresarial.

2019-01-10

O desporto profissional requer um especial cuidado por parte do legislador, fruto das particularidades deste tipo de atividade. O regime de trabalho desportivo é, por isso, distinto do regime geral, ainda que a este se possa reconduzir subsidiariamente.

O contexto do vínculo desportivo profissional está sujeito a um conjunto de diferenças essenciais, as mais evidentes das quais o investimento no trabalhador (mesmo antes da celebração do contrato profissional, no caso de jovens atletas) e o conjunto específico de capacidades técnicas e físicas, assim como a duração limitada da atividade.

Riscos de investimento propiciam um desequilíbrio injustificado da relação juslaboral. A recuperação da harmonia contratual pode depender da celebração (ou pelo menos, a sua admissibilidade) de um acordo entre as partes com o objetivo de manter o trabalhador na empresa que o investiu de especial preparação para o exercício da atividade. O legislador é forçado a estimular a convergência dos interesses do trabalhador e do empregador.

O Código do Trabalho admite a celebração destes pactos, mas cauciona a desvinculação do trabalhador durante a permanência acordada, desde que cobertas as despesas em que o empregador incorreu.

O princípio da liberdade de trabalho é especialmente salvaguardado, de modo a que essa liberdade seja apenas relativa, mas nunca absolutamente condicionada.

Cabe-nos questionar quanto à admissibilidade e a efetividade dos pactos de permanência no contexto desportivo: a admissibilidade no âmbito de contratos a termo, por um lado, a admissibilidade da celebração de tais pactos antes do contrato profissional, por outro, e ainda a efetividade de pacto de permanência no atual quadro financeiro desportivo.

O contrato a termo supre necessidades momentâneas da empresa, pelo que é com estranheza que a permanência do trabalhador possa querer ser acordada. Devemos notar, contudo, que não há qualquer impedimento legal, e que a função do contrato a termo no desporto profissional é adaptar a atividade profissional à duração limitada desse exercício. Para além disso, no contexto do mercado laboral desportivo o pacto de permanência poderia cumprir a mesma função estabilizadora que cumpriria no regime laboral normal.

Não se nos afigura possível, por outro lado, a admissibilidade de pactos de permanência anteriores à celebração do primeiro contrato de trabalho desportivo de jovens atletas. Com efeito, mesmo tendo em conta os avultados custos de investimento dos clubes nos jovens atletas – momento fundamental do investimento no atleta –, a promessa de permanência parece condicionar de forma excessiva e injustificada a escolha livre e esclarecida dos jovens pré-profissionais, em prejuízo das garantias fundamentais da liberdade de trabalho.

Finalmente, a efetividade da obrigação de permanência sai prejudicada pela diferença gritante entre os montantes investidos no atleta  e os (vulgo) valores de transferência praticados: as “despesas feitas” são recuperadas, mas o talento não é retido. Ademais, os regimes de contribuições de solidariedade para com os clubes de formação preservam a posição daqueles que investiram o atleta de especial preparo para o exercício da atividade desportiva.

Ainda que não lhes seja colocado especial embaraço jurídico, o atual quadro financeiro assim como os regimes próprios do Desporto profissional parecem frustrar a função dos pactos de permanência no contexto desportivo profissional, pelo que a sua utilidade pode afigurar-se irremediavelmente ferida.

A Inteligência Artificial visa criar modelos de inteligência através de programas de computador, que conseguem, eles próprios, a partir da análise de padrões de comportamento, deduzir ou inferir novos conhecimentos a partir de conhecimentos pré-existentes.

Isto leva-nos então a indagar se a inteligência não será uma capacidade exclusiva do ser humano? Afinal, as máquinas podem pensar? E aqui surgem dúvidas.

Com vista a obter resposta para algumas dessas questões, Alan Turing, no seu artigo “Computing Machinery and Intelligence" (1), desenvolveu um teste, que ficou conhecido como “The Imitation Game” (ou “Teste de Turing”), cujo principal objetivo era o de verificar a capacidade de uma máquina de revelar um comportamento inteligente equivalente a um ser humano.

O Teste de Turing envolvia três participantes: um homem e uma mulher, que ficavam na mesma sala, e um interlocutor, que, numa outra sala isolada, colocava, por escrito, questões aos outros dois participantes, por forma a descobrir qual deles era o homem e a mulher. O interlocutor não podia ter qualquer contacto com os dois outros participantes.

Mas, e se, sem o interlocutor saber, um desses participantes fosse substituído por um computador? O interlocutor conseguiria distinguir o participante humano da máquina? Houve casos, em que conseguiu, mas noutros não e o computador venceu o teste. Nesta situação, poderemos dizer que o computador pensava? E pensava de forma semelhante a um ser humano?

Salvo melhor opinião, a resposta deve ser negativa. Claro que, no Teste de Turing, para além dos seus resultados ficarem dependentes da inteligência do interlocutor, o teste não permitia, de um modo geral, distinguir entre o “ser” e o “parecer ser” inteligente. De qualquer forma, é inegável que o Teste de Turing é ainda hoje uma referência para os estudos sobre Inteligência Artificial, de que é exemplo o teste de CAPTCHA (da abreviatura de “Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans Apart”), utilizado para evitar “spam”.

A pergunta e a resposta anteriores não são, porém, descabidas.

O pensamento é uma característica inata do ser humano que, embora possa ser (ou vir a ser) parcialmente replicado por máquinas, dificilmente poderá vir a ser replicado em termos gerais – a chamada Inteligência Artificial geral.

É verdade que hoje em dia já existem máquinas de Inteligência Artificial em diversos campos, por exemplo, na medicina, ao nível da radiologia e do prognóstico médico, que são evoluídas e que permitem substituir tarefas realizadas pelo Homem e até mesmo obter resultados a partir da análise de um manancial de informação. Também já existem veículos autónomos. Aliás, há bem pouco tempo, um desses veículos autónomos não conseguiu impedir a colisão contra um peão, que atravessava fora da passadeira e num local pouco iluminado, o que reacendeu a questão de saber de quem seria afinal a responsabilidade. Do Homem ou da máquina?

Mais uma vez, a resposta parece ser: do Homem, que criou a máquina, mas a questão (e a sua resposta) não são tão simples quanto, à primeira vista, poderiam parecer.

Como jurista de profissão, não poderia, assim, deixar de assinalar que há (novas) questões éticas, que terão um reflexo relevante no Direito e, nomeadamente, nos “modelos clássicos” de imputação, que poderão não vir a servir nos casos de Inteligência Artificial.

Imaginemos, por exemplo, uma máquina de Inteligência Artificial, que é utilizada por uma instituição hospitalar, para ministrar medicamentos a um doente e que, num dia, ministra uma dose errada e, em resultado disso, o doente acaba por falecer. De quem é a responsabilidade? Da instituição hospitalar? Do fabricante da máquina? De ambos? E a que título? Há responsabilidade subjetiva, que implica a existência de culpa?

Ora, a perceção do que é moralmente certo ou errado é uma caraterística da existência humana, que apenas, de forma inverosímil, ou se se quiser, artificial, poderá ser replicada por máquinas, pelo que, até que medida poderá fazer sentido dizer que a culpa foi da máquina?

E a responsabilidade objetiva, mais facilmente enquadrável naquela situação em que o veículo autónomo atropela o peão, poderá ser aplicável aos casos de Inteligência Artificial? Até que ponto os atuais modelos de imputação permitem responder cabalmente ao uso da Inteligência Artificial?

Talvez, por isso, não seja mal pensado começar, ao estilo do autor de ficção científica Isaac Asimov, no conto “Runaround” (“Eu, robot”), por definir três “leis” (princípios), pelos quais se deverá pautar a ”relação Homem/máquina”: (1) Um robot não pode lesar um ser humano ou permitir, por omissão, que um ser humano seja lesado; (2) Um robot deve obedecer ao ser humano, salvo quando essas ordens entrem em conflito com o primeiro princípio; (3) Um robot deve proteger a sua própria existência, desde que tal não entre em conflito com o primeiro ou segundo princípios.

A estes três princípios encontra-se subjacente uma ideia fundamental: que o ser humano é o princípio, meio e fim da Inteligência Artificial e que, portanto, a responsabilidade pelos actos e omissões das máquinas não poderão deixar de ser também afinal uma responsabilidade humana. Como isso se fará já é outra questão, que terá de encontrar uma resposta na Ética antes de passar para o Direito ou, se se preferir, ser resolvida pelo Direito a partir da Ética.

 

(1) URING, Alan Mathison, “Computing machinery and intelligence”, in Mind, v. 59, n. 236, England,1950.