2020-06-03

Publicado na Advocatus.

No passado dia 30 de Maio, à janela do Vaticano, o Papa Francisco falou das grandes provações da humanidade, de como as mesmas são determinantes para alterar comportamentos, e, falando da pandemia que afeta o mundo, deixou no ar a pergunta, para quem a quis escutar: ”Como querem sair disto? Melhor ou pior?”

No meu primeiro dia de estágio, a primeira tarefa de que a minha querida Patrona me incumbiu foi de ler o capítulo de Deontologia do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Não advogar contra o Direito, recusar causas e patrocínios injustos são regras que, para além de enraizadas desde casa, ecoam desde sempre em cada questão levantada pelos clientes, em cada processo que chega à secretária, em cada consulta pedida.

Já somam algumas, as vezes em que a incredulidade com algumas solicitações ficaram a pairar umas horas depois do adiantar de algumas pretensões. No entanto, na grande maioria das vezes, a linguagem não verbal é o bastante para perceber quem alinha e quem não, nesta coisa da justiça.

Neste contexto de “novos normais”, “etiquetas respiratórias”, “confinamentos” e “desconfinamentos” surge, por entre o novo léxico emergente, um antigo e persistente léxico, talvez inevitável: o “chico-espertismo” e a “batota”. Felizmente, persiste igualmente o reverso da medalha.

Desde que “isto” começou, já assistimos (nós, agora mais especificamente os laboralistas), a um quase tudo: bancos de horas “negativos”, lay off’s na modalidade de suspensão dos contratos com trabalhadores a laborar em pleno, lay off’s na modalidade de redução de horário com trabalhadores a trabalhar até às 03.00 da manhã, teletrabalho obrigatório por lei mas proibido na empresa, entre outros malabarismos, uns pretendidos, outros implementados.

Do outro lado, vejo também (e tenho a honra de aconselhar) instituições que querem fazer o melhor. Que complementam os apoios estatais, de forma a ajudar quem precisa. Que suspendem contratos de outsourcing, mas pretendem ajudar na fatura. Que entendem a organização como um todo, em que todos são indispensáveis e o bem-estar deve ser transversal.

Não são tempos fáceis. Mas se dermos o nosso melhor, vamos todos ficar (bem) melhor.

Publicado na Advocatus.

Com grande parte da população em regime de lay-off, muitas são as dúvidas que ainda se colocam quanto ao novo regime.

Criado pelo Governo como medida extraordinária para fazer face à pandemia COVID-19, o lay-off “simplificado” abrange cerca de 1,132 milhões de trabalhadores.[1]

Com grande parte da população em regime de lay-off, muitas são as dúvidas que ainda se colocam quanto ao novo regime. As vidas familiares dos trabalhadores sofreram muitas mudanças repentinas, colocando-se questões relacionadas com a marcação e a remuneração das suas férias, que afetam diretamente toda a sua vida familiar.

Todavia, se é verdade que que este foi um novo regime excecionalmente criado e com normas específicas associadas a essa mesma caraterística, é normal que a par dessas normais excecionais, mais simples e expeditas, o legislador as articule com a aplicação de outras normas codificadas.

Referimo-nos à aplicação, neste caso em particular, do Código do Trabalho.

Encontrando-se o trabalhador em lay-off o que acontece à possibilidade de gozar as suas férias?

A lei geral dispõe que tanto a redução do período normal de trabalho como a suspensão do contrato de trabalho, as duas modalidades de lay-off simplificado previstas, não prejudicam a marcação e o gozo de férias, nos termos gerias, tendo o trabalhado direito ao pagamento, pelo empregador, do subsídio de férias e do subsídio de natal, sendo este último comparticipado em 50% pela Segurança Social (ao abrigo do artigo 306.º do Código do Trabalho).

Neste sentido, havendo acordo entre as partes da relação laboral, poderão ser mantidas e gozadas as férias oportunamente marcadas. Durante esse período, o trabalhador terá direito a receber, cumulativamente, os valores referentes à sua remuneração em lay-off e o subsídio de férias, total ou proporcional, devido em condições normais de trabalho. Assim, se o trabalhador era trabalhador a tempo completo, deverá receber um subsídio de férias correspondente a 100% da sua retribuição, nos termos da lei.

Não existindo (sempre) a possibilidade de acordo entre as partes, lei laboral admite a possibilidade de o empregador marcar unilateralmente as férias do trabalhador. Contudo, esta possibilidade encontra-se limitada, uma vez que apenas o pode fazer para o período entre 1 de maio e 31 de outubro. Consequentemente, mesmo numa situação excecional como a que nos encontramos, o empregador apenas pode impor o gozo de férias fora desse período, se conseguir o acordo dos trabalhadores.

Excluídas das situações em que apenas o empregador pode determinar o gozo de férias no período referido, encontram-se as microempresas, ou qualquer empresa, independentemente da sua dimensão, na qual os trabalhadores sejam abrangidos por instrumento de regulamentação coletiva que disponham noutro sentido.

Assim sendo, salvo acordo com o trabalhador ou IRCT em sentido contrário, apenas nas microempresas o empregador pode determinar o gozo de férias fora do período entre e de 1 maio e 31 de outubro.

Para além do exposto, no que diz respeito ao gozo de férias, importa esclarecer o seguinte: caso o trabalhador a abranger no lay-off se encontre de férias, só após o seu gozo continuará incluído no mesmo.

Ainda, se a modalidade de lay-off for a de redução do período normal de trabalho, o trabalhador pode gozar férias durante o lay-off. Por outro lado, sendo a modalidade a de suspensão do contrato, o gozo de férias que ainda não se tenha iniciado ficará também suspenso.

Em suma: o Governo aprovou um conjunto de disposições legais que consagram o regime do lay-off simplificado. Contudo, no que diz respeito a férias do trabalhador, não nos restam dúvidas de que se aplicam as normas consagradas na legislação laboral.



[1] Dados disponibilizados pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento (GET) do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social a 22 de abril de 2020.

2020-05-28
Guilherme Dray

Publicado no Eco Online.

Desde o Civil Rights Act de 1964 que os americanos têm sido inovadores em matéria de igualdade e não discriminação. Agora, são proibidas perguntas sobre o passado salarial.

Desde a célebre aprovação do Civil Rights Act de 1964, iniciada pelo Presidente J.F Kennedy e assinada pelo Presidente Lyndon Johnson, que os americanos têm sido inovadores em matéria de igualdade e não discriminação. A Europa deve-lhes a criação do conceito de discriminação indireta (disparate impact), bem como de critérios que permitem verificar se uma prática distintiva pode ser execionalmente aceite, sem ser discriminatória. Neste campo, assume destaque o recurso à boa fé, através do critério BFOQ – Bona fide occupational qualification. Quer dizer: se a diferença de tratamento for feita de boa fé e se tiver em conta, apenas, o tipo de atividade a exercer e as características do posto de trabalho a preencher, pode ser aceite. Não passando por este crivo, é intolerável.

Os americanos voltaram a inovar, agora em plena crise pandémica. O U.S. Third Circuit Court of Appeals decidiu que os empregadores não podem colocar questões sobre o passado salarial dos candidatos a emprego e fixar a sua retribuição com base nesse histórico.

No caso Greater Philadelphia Chamber of Commerce v. City of Philadelphia, de fevereiro de 2020, aquele tribunal considerou que a lei do Estado da Philadelphia que proíbe questões sobre o passado salarial é legítima e não viola a liberdade de expressão prevista na Primeira Emenda Constitucional.

O problema, que vinha do passado, era o seguinte: Nos termos do Equal Pay Act (EPA) de 1963, a discriminação salarial era proibida. O EPA, contudo, admitia diferenças retributivas sempre que o empregador invocasse uma “razão objetiva”. Ora, o passado salarial vinha sendo invocado como razão suficiente para justificar diferenças salariais. Ou seja, era um fator de agravamento das desigualdades salariais, que nos EUA continua em valores elevados – em regra, por cada 1 dólar recebido pelos homens, as mulheres que fazem o mesmo trabalho recebem apenas 80 cêntimos. E a diferença tendia a agravar-se com o passar dos anos, à medida que eram feitos aumentos percentuais sobre salários já em si desiguais.

Foi essa a razão pela qual foi aprovada esta nova lei (Wage Equity Ordinance), agora considerada constitucional. Nos termos da lei, a possibilidade de o empregador colocar questões sobre o passado salarial dos candidatos a emprego é uma forma de perpetuar diferenças salariais que vêm do passado e que afetam sobretudo as mulheres, em especial as afro-americanas e latinas. Ao perguntar-lhes qual o seu histórico salarial e ao fixar salários com base nesse passado, os empregadores sentiam-se legitimados a perpetuar esta injustiça.

Por isso, para o tribunal, ao proibir tais questões, a lei está a combater esta má tradição e a dar mais um contributo para combater o gender pay gap.

Em Portugal, o princípio a trabalho igual, salário igual, consta também do artigo 59.º da Constituição e dos artigos 31.º e 270.º do Código do Trabalho. Mas, também aqui, o problema persiste, havendo uma diferença de cerca de 14,4% entre o que os homens e as mulheres recebem pelo mesmo tipo de trabalho.

É por essa razão que também aqui têm sido ensaiadas outras soluções legislativas para combater este problema.

Em 2018, foi aprovada a Lei n.º 60/2018, segundo a qual as empresas devem assegurar a existência de uma política remuneratória transparente.

Mas esta questão do passado salarial nunca foi colocada.

A lei de Philadelphia e a recente decisão judicial do U.S. Court of Appeals podem, por isso, trazer novos ventos de mudança neste domínio.

Em qualquer caso, importa não esquecer o essencial: Mais do que uma obrigação legal, a igualdade retributiva é um imperativo ético e de justiça social.

O impulso deve, por isso, partir acima de tudo das empresas, em nome da sua responsabilidade social.

2020-05-13
Guilherme Dray

Publicado no ECO Online

A saúde pública justifica a medição da temperatura. O direito à privacidade fica genericamente acautelado com a proibição de registo das medições, mas o diabo está nos pormenores.

A crise pandémica e o regresso ao trabalho colocam em confronto o direito à privacidade e a proteção da saúde pública.

O direito à privacidade significa que existe uma esfera própria inviolável, que deve ficar protegida da curiosidade alheia. Tudo quanto diz respeito à nossa vida familiar, sexual, afetiva e estado de saúde, deve ser preservado. Ninguém pode aceder a tais informações e ninguém as deve divulgar. É o que resulta dos artigos 26.º da Constituição, 80.º do Código Civil e 16.º, 17.º e 19.º do Código do Trabalho.

A proteção da saúde pública, todavia, exige cuidados acrescidos no regresso ao trabalho que podem limitar o direito à privacidade.

Um pouco por todo o mundo, têm sido criadas regras especiais que visam esta compatibilização.

Nos Estados Unidos da América, por exemplo, para além do Occupational Safety and Health Act, segundo o qual os empregadores devem assegurar o trabalho em condições de segurança e saúde, foram publicadas novas guidelines por diversas agências estatais sobre a Covid-19, publicadas pelos Department of Labor (DOL), Center for Disease Control and Prevention (CDC) e Equal Opportunity Employment Commission (EEOC). No essencial, recomenda-se o teletrabalho, o uso de equipamento de proteção, o distanciamento entre trabalhadores e o afastamento (não discriminatório) dos que apresentam sinais de contágio.

O mesmo se passa em Portugal.

Para além do Regime Jurídico da Segurança e Saúde no Trabalho, que nos diz que o trabalhador tem o direito a trabalhar em condições de segurança e saúde, foram criadas regras específicas sobre a Covid-19.

O Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1-5, por exemplo, impôs a elaboração de planos de contingência e admitiu o controlo de temperatura corporal. A ACT, por sua vez, aprovou novas recomendações, assentes no uso de equipamentos de proteção, no distanciamento de trabalhadores e em horários de trabalho desfasados.

O artigo 13.º-C determina que, no atual contexto e exclusivamente por motivos de proteção da saúde do próprio e de terceiros, podem ser realizadas medições de temperatura corporal a trabalhadores para efeitos de acesso e permanência no local de trabalho. Diz-se, também, que esta medição não prejudica o direito à proteção de dados, sendo proibido o respetivo registo, salvo consentimento do trabalhador. E, caso haja medições de temperatura superiores ao “normal”, pode-se impedir o acesso dessa pessoa ao local de trabalho.

No essencial, o preceito em causa consegue um justo equilíbrio entre o direito a privacidade e a salvaguarda da saúde pública. A saúde pública justifica a medição da temperatura. O direito à privacidade e o facto de os dados de saúde serem sensíveis, ficam genericamente acautelados com a proibição de registo das medições.

Mas há matérias que ficaram mal definidas.

Em primeiro lugar, o diploma não garante (como devia) a intermediação de profissional de saúde. Não quer isto dizer que devêssemos ter um médico à porta de cada empresa para medir a temperatura, mas a responsabilidade pelo sistema deveria ter sido atribuída a médico do trabalho e a medição realizada apenas por profissional sujeito à obrigação de sigilo profissional. Deixar este processo nas mãos, por exemplo, de seguranças contratados em outsourcing, não é famoso.

Em segundo lugar, não se define a temperatura (37,5C?) a partir da qual o trabalhador está impedido de trabalhar.

Em terceiro lugar, não se esclarece se o trabalhador impedido de trabalhar continua (ou não) a receber e quem lhe paga.

Por fim, podemos ter (infelizmente) problemas de ordem constitucional.

Por um lado, porque não se podem comprimir direitos fundamentais sem autorização legislativa parlamentar. Tratando-se de competência da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), CRP), podemos estar perante uma inconstitucionalidade orgânica. Por outro lado, porque a ausência de intermediação de médico pode gerar inconstitucionalidade material. Com efeito, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/2003, foi declarada a inconstitucionalidade de uma norma do Código do Trabalho, precisamente por não incluir a intermediação de médico. Na altura, concluiu-se que o acesso direto do empregador a informações relativas à saúde do trabalhador viola o princípio da proibição do excesso nas restrições ao direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada.

Ou seja, sendo compreensível e justificável a medição corporal, o novo artigo 13.º-C falha nos detalhes. Consegue o mais difícil, que é a justificação da medição corporal. Mas falha nos pormenores. E o problema, como se costuma dizer, é que “o diabo está nos pormenores”.

João de Macedo Vitorino falou com a Advocatus sobre a relação da advocacia com os media e o que mudou na última década. 

Leia o artigo completo no pdf. 

2020-04-28
Guilherme Dray

Publicado no ECO.

O teletrabalho veio, enfim, para ficar. O último quartel do século XX anunciou-o. A atual crise pandémica consolidou-o, mas é preciso garantir a privacidade dos trabalhadores.

Finalmente, o teletrabalho. Concebido nos anos 70 do século passado por Jack Nilles como forma de minimizar o tráfego diário urbano nos Estados Unidos da América, o teletrabalho tardou a afirmar-se.

Em Portugal, surgiu com o Código do Trabalho de 2003. Na altura, tive o privilégio de fazer parte da comissão de elaboração do Código e de ter ficado encarregue da redação do articulado relativo ao teletrabalho. A par dos direitos de personalidade, o teletrabalho foi na altura absolutamente inovador e nem sempre bem compreendido. Chegou a ser objeto de chacota. A força das suas vantagens e a crise pandémica que vivemos, impuseram-no, por fim.

O teletrabalho apresenta várias vantagens.

Para o trabalhador, garante a redução de despesas de transporte e alimentação; potencia melhor conciliação da vida profissional e familiar; propicia maior facilidade na procura de emprego; e reforça a liberdade de trabalho.

Quanto ao empregador, garante a diminuição de custos operacionais em instalações e energia; a otimização dos espaços disponíveis; o aumento do universo de recrutamento de pessoal; e maior resistência perante fatores externos, como greves, atos de terrorismo ou calamidades naturais.

Relativamente à sociedade, as vantagens são ainda mais evidentes: diminuição das deslocações diárias dos subúrbios para os centros urbanos; redução dos níveis de poluição atmosférica; descongestionamento do centro das cidades; fixação de pessoas em zonas rurais e pouco habitadas; e criação de novos empregos, designadamente para portadores de deficiências físicas.

O teletrabalho assume, também, grande importância como forma de contenção de surtos pandémicos, razão pela qual o Governo, através do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, decretou a obrigatoriedade da adoção do teletrabalho durante a pandemia da doença Covid-19, sempre que as funções em causa o permitam.

O teletrabalho pode, todavia, pôr em causa a privacidade do teletrabalhador. Por essa razão, o Código do Trabalho contém regras que visam prevenir este risco.

À luz do Código, o empregador deve respeitar a privacidade do trabalhador e os tempos de descanso e de repouso da respetiva família (art. 170.º). Sempre que o teletrabalho seja realizado no domicílio do trabalhador, eventuais visitas ao local de trabalho só devem ter por objeto o controlo da atividade laboral e apenas podem ser efetuadas entre as 9 e as 19 horas, com a assistência do trabalhador ou de pessoa por ele indicada.

Fruto da massificação do teletrabalho durante a atual pandemia, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) esclareceu também que a regra de proibição de utilização de meios de vigilância à distância, com a finalidade de controlar o desempenho do trabalhador, é plenamente aplicável ao teletrabalho. Por esta razão, soluções tecnológicas para controlo à distância do desempenho do trabalhador não são admitidas. Não são permitidos, por exemplo, softwares que registam as páginas de Internet visitadas, a localização do terminal em tempo real, fazem captura de imagem do ambiente de trabalho, observam e registam quando se inicia o acesso a uma aplicação, controlam o documento em que se está a trabalhar e registam o respetivo tempo gasto em cada tarefa.

Segundo a CNPD, estas ferramentas recolhem em excesso dados pessoais dos trabalhadores. O trabalho prestado a partir do domicílio não justifica uma maior compressão dos direitos de personalidade.

Inversamente, a CNPD entende ser legítimo o registo de tempos de trabalho com recurso a soluções tecnológicas para registar o início e fim da atividade laboral e a pausa para almoço. Não dispondo de tais ferramentas, é legitimo ao empregador fixar a obrigação de envio de email, SMS ou qualquer outro modo que lhe permita controlar os tempos de trabalho.

O teletrabalho veio, enfim, para ficar. O último quartel do século XX anunciou-o. A atual crise pandémica consolidou-o. A sociedade e o Direito devem, agora, dar-lhe mais atenção, para evitar que este brave new world se converta numa violação da nossa privacidade.

PS: É mesmo verdade, porque vi — a ACT pediu a uma empresa a apresentação de diversa documentação sobre o Lay Off no prazo de 2 (dois!) dias, com a advertência de que, não o fazendo, incorre em contraordenação e “no crime de desobediência qualificada”. O estado de emergência justifica muita coisa, mas não pode ser uma porta aberta à prepotência e arbitrariedade. Há que evitar o “caminho para a servidão”, de Hayek.

2020-04-22

Publicado na Advocatus.

 

No âmbito da última alteração legislativa ao Código do Trabalho, o regime da contratação termo foi, uma vez mais, objeto de profunda modificação.

Com significativo impacto na diminuição da precariedade laboral, destaca-se a redução dos prazos de duração máxima dos contratos a termo. Assim, todos os contratos de trabalho a termo certo celebrados de 1 de outubro de 2019 em diante passam a ter uma duração máxima de dois anos, diferindo do regime anterior que permitia uma duração máxima até três anos. Já no que concerne os contratos de trabalho a termo incerto, fixa-se em quatro anos a sua duração máxima por contraposição ao prazo máximo anterior que atingia seis anos.

A par desta alteração, o computo total das renovações do contrato de trabalho a termo certo está agora balizado pela duração inicial do contrato, ou seja, o período total das renovações não pode ser superior à duração inicial do contrato. Na pratica, isto significa que um contrato de trabalho a termo certo que tenha uma duração inicial de seis meses nunca atingirá os dois anos de duração uma vez que a duração total das renovações tem como teto máximo seis meses. Já se estivermos perante um contrato inicial com duração de um ano, o total das renovações pode ser igual a um ano. Nesta situação, a duração total do contrato de trabalho atingirá os 2 anos.

Também a listagem de fundamentos que permitem o recurso a este tipo de contratação foi alterada, tendo sido revogada a norma que permitia a contratação a termo de trabalhadores à procura do primeiro emprego (ou seja, trabalhadores que se encontrem inscritos como desempregados no IEFP, I. P., com idade até aos 30 anos e que nunca tenham celebrado um contrato de trabalho sem termo) e desempregados de longa duração (aqueles que tenham 45 ou mais anos de idade e que se encontrem inscritos como desempregados no IEFP, I. P., há 12 meses ou mais). A eliminação destes fundamentos representa mais um esforço no combate à segmentação laboral e um contributo para a contratação permanente destes trabalhadores que permanecem numa situação de desvantagem quando à sua empregabilidade. Continua, no entanto, a poder ser celebrado um contrato de trabalho a termo com trabalhador em situação de desemprego de muito longa duração.

Ainda quanto à fundamentação, o recurso ao lançamento de nova atividade de duração incerta ou ao início do funcionamento de empresa ou de estabelecimento fica restrito apenas a empresas com menos de 250 trabalhadores, ou seja, a micro, pequenas e médias empresas, ao invés do que sucedia até esta alteração legislativa, em que estes fundamentos podiam ser utilizados por empresas com até 750 trabalhadores. Mantém-se, no entanto, a duração máxima de dois anos para os contratos de trabalho que tenham este tipo de fundamentação.

Por último, procedeu-se ainda a uma alteração que veio terminar com antigas dúvidas interpretativas e que se prendia com o saber se havia lugar ao pagamento da compensação por caducidade nos contratos de trabalho a termo certo em que se previa expressamente a não renovação do mesmo.

Atualmente alarga-se o direito a receber a compensação de caducidade a todas as situações de caducidade, exceto a que decorra de declaração do trabalhador. Quanto ao montante, mantém-se que tal compensação corresponde a 18 dias de retribuição base  diuturnidades por cada ano completo de antiguidade. De lembrar que o regime anterior apenas previa o pagamento desta compensação quando a caducidade decorresse de declaração do empregador.

Em suma, as novas regras da contratação termo representam um contributo para o reforço dos direitos dos trabalhadores e mais um passo no combate à precariedade laboral.

Publicado no Dinheiro Vivo

 

Não é um exagero dizer que o COVID-19 mudou a perspetiva de ver o Mundo e que esta, provavelmente, não mais será a mesma, tendo em conta os acontecimentos e medidas extraordinárias dos últimos meses.

Quanto aos “dados pessoais e privacidade” poderá não ser diferente. A recolha e utilização de dados pessoais de saúde, dados de geolocalização ou outros meta dados já se revelam e vão, sem dúvida, revelar-se, cada vez mais, essenciais no atual contexto, em particular, para a mitigação da propagação e contenção do COVID-19.

Têm surgido várias iniciativas com vista à implementação de aplicações de rastreio de contactos e de alerta na luta contra o COVID-19, tendo-se falado, inclusivamente, na criação de uma aplicação pan-europeia.

Em alguns países, essas medidas já estão, inclusivamente, a ser aplicadas. Por exemplo, na China, foi implementada uma aplicação para classificação de pessoas consoante o seu risco de contágio, informação, essa, que é partilhada com as autoridades públicas competentes, para além do recurso ao uso de “drones”, tecnologia de reconhecimento facial, “scanners” infravermelhos. Na Coreia do Sul, rastreiam-se os telemóveis dos utilizadores, criando-se um mapa que fica disponível publicamente para consulta por todos os cidadãos e que permite saber por onde passaram as pessoas infetadas. Outras medidas também já foram adotadas em alguns países da União Europeia como na Áustria, Polónia, Bélgica, Alemanha e Itália.

Face ao atual contexto, é defensável que tais medidas de rastreamento e alertas se possam justificar, desde que sejam concebidas e implementadas em conformidade com as regras de proteção de dados pessoais em vigor na União Europeia, nomeadamente, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) e a Diretiva da Privacidade Eletrónica e respetiva legislação nacional.

Encontramo-nos numa situação de exceção, que justifica a adoção de medidas de exceção. Mas, mesmo numa situação excecional, tem de imperar a proporcionalidade, nomeadamente quanto à necessidade das medidas, os seus limites, duração, entre outros aspetos, que não podem ser ignorados agora e, inclusivamente, depois.

E uma das questões que se deve levantar com maior acuidade é precisamente esta: serão depois reversíveis as medidas adotadas e que vierem a ser adotadas no atual contexto?

Os nossos dados pessoais representam um potencial de utilização que, diria, inimaginável e que, quando indevidamente utilizados, constituem um risco para a privacidade e, não querendo ser alarmista, para a própria Humanidade, atendendo ao que com eles se poderá fazer em termos de restrições aos direitos, liberdades e garantias dos indivíduos.

É, por isso, importante que as medidas de rastreamento que venham a ser adotadas dependam de um prévio consentimento do seu titular, que deve ser cabalmente informado da utilização que será feita aos seus dados. Neste âmbito, o dever de informar e o dever de ser informado devem andar lado a lado. Se, por um lado, é necessário informar quanto à utilização dos dados pessoais, por outro lado, cada um de nós não se pode bastar com um simples “aceito os termos de privacidade”, muitas vezes, nem sequer lidos.

Mais ainda, os dados pessoais recolhidos devem limitar-se ao estritamente indispensável às finalidades que visam prosseguir, bem como devem ser, na medida do possível, anonimizados (o que pressupõe a irreversibilidade da identificação dos seus titulares) e deve ser assegurado o exercício cabal dos direitos de acesso, exatidão, oposição e apagamento dos dados pelos seus titulares.

Quando estejam em causa dados de saúde, os quais são considerados dados sensíveis (integrados nas chamadas categorias especiais de dados), é necessário que as autoridades de saúde pública sejam responsáveis pelo respetivo tratamento e que se verifique a necessária interação entre essas autoridades e as autoridades nacionais de proteção de dados pessoais. É fundamental que exista uma cooperação estreita entre essas autoridades e que os cidadãos fiquem cientes que podem confiar que os seus dados apenas serão recolhidos e utilizados para finalidades específicas face ao atual contexto e que, uma vez findo o período de exceção, os dados serão, de imediato, apagados.

Como se consegue isso? Não há uma resposta unívoca. Podem ser várias as soluções, desde que as regras de proteção de dados pessoais sejam respeitadas, nomeadamente, como defendeu recentemente o European Data Protection Supervisor (EDPS), através da utilização de identificadores de transmissão e de tecnologia “Bluetooth” para o rastreamento de utilizadores, de modo o menos intrusivo possível.

Por forma a assegurar um maior e mais eficaz controlo no cumprimento das regras de proteção de dados pessoais, parece-nos ser, todavia, preferível uma solução à escala europeia (como é o caso do “Pan-European Privacy Preserving Proximity Tracing – PEPP-PT”, que junta mais de um centena de investigadores de oito países e que segue o exemplo da aplicação de rastreio “TraceTogether” de Singapura) do que várias soluções com recurso a diferentes tecnologias pelos Estados-membros, procurando-se, assim, uma resposta também ela mais eficaz no controlo da epidemia.

Um coisa é certa: a solução que vier a ser adotada deverá, sem dúvida, assentar num quadro de proteção de dados sólido e coerente, que tem de ser apoiado por uma aplicação rigorosa das regras de proteção de dados pessoais, pois é importante gerar a confiança necessária à utilização dessas aplicações pelos cidadãos, sendo, por isso, fundamental que cada indivíduo consiga controlar a utilização que é feita dos seus dados pessoais, não só agora, em que se justificam medidas excecionais, mas, sobretudo, depois do COVID-19.

2020-04-16
Guilherme Dray

Publicado no Jornal de Negócios

Os trabalhadores em lay-off vão afinal poder trabalhar em todos os setores, ao contrário do que sugeria o comunicado do Conselho de Ministros. No entanto, em apenas cinco poderão ultrapassar dois terços do seu salário habitual.

A nova regra consta de um diploma publicado na segunda-feira, que vem alterar, mais uma vez, o regime jurídico que se aplica ao chamado "lay-off simplificado".

Em circunstâncias normais de lay-off o trabalhador recebe dois terços do seu salário original com o limite mínimo de 635 euros e máximo de 1905 euros (uma prestação que é financiada em 70% pela Segurança Social).

No entanto, como está em situação de suspensão de contrato ou redução de horário na empresa com a qual mantém o vínculo, pode trabalhar noutras empresas. No entanto, se ultrapassar os limites a Segurança Social reduz ou anula a compensação.

Mesmo assim, segundo explica o advogado Guilherme Dray, o trabalhador pode ter interesse em aceitar outro trabalho. Por exemplo, se estiver com o contrato suspenso, sem fazer nada, e receber 650 euros por mês pode preferir um emprego que lhe garanta 850 euros, perdendo a primeira compensação, mas não perdendo o vínculo à primeira empresa.

O que o novo diploma vem agora dizer é que "caso a referida a atividade se exerça nas áreas do apoio social, saúde, produção alimentar, logística e distribuição" não se aplica a redução da compensação retributiva, o que na prática reforça, e não restringe, os direitos dos trabalhadores face ao lay-off habitual.

A alteração legislativa vem estabelecer "que se os trabalhadores prestarem uma nova atividade remunerada fora da empresa, nos citados setores do apoio social, saúde, produção alimentar, logística e distribuição, a remuneração que auferem não é tida em conta para efeitos de redução da compensação retributiva a que têm direito por força do lay off", segundo explica.

"Trata-se, pois, de um incentivo a que quem está em lay off se predisponha a prestar uma colaboração nestas áreas, sem que por isso seja penalizado na compensação retributiva a que tem direito durante o lay-off", indica.

Assim, os trabalhadores em lay-off "podem continuar a exercer uma atividade remunerada fora da empresa em qualquer setor de atividade". "Simplesmente, se o fizerem num daqueles setores essenciais, podem cumular a compensação retributiva a que têm direito no âmbito do lay-off com essa nova remuneração", conclui.

Não foi isto que foi noticiado na semana passada, incluindo pelo Negócios, quando se concluiu que os trabalhadores em lay-off só iriam poder trabalhar em cinco setores. Era o que indicava o comunicado do conselho de ministros, que referia simplesmente que "as pessoas em regime de redução do período normal de trabalho ou suspensão do contrato de trabalho podem exercer atividade remunerada desde que nas áreas da produção alimentar, apoio social, saúde, logística e distribuição".

2020-04-14
Guilherme Dray

Publicado no ECO

 

No fim desta crise devemos recuperar o essencial das liberdades: liberdade de circulação, de associação e sindical, bem como o direito à greve e à livre gestão empresarial.

Tive o prazer de ter sido Visiting Professor na Universidade de Georgetown, em Washington DC. Fundada em 1789, Georgetown é hoje uma das mais vibrantes Universidades estado-unidenses e à escala global, que cultiva a tolerância e as liberdades de espírito e criatividade.

Georgetown é um bairro magnífico, com moradias do final do século XVIII, muito comércio local e pequenos restaurantes. Um bairro localizado no topo de uma colina que se debruça sobre o majestoso rio Potomac e de onde se avista, numa vasta planície, o Estado da Virgínia.

A semana passada, Georgetown e a Kalmanovitz Initiative for Labor and the Working Poor organizaram um Webinar, intitulado, “COVID 19 e Emprego: Uma Perspetiva Internacional”.

Com representantes dos Estados Unidos da América, Europa e Ásia, foram apresentadas as principais preocupações que esta pandemia nos traz em matéria de emprego e elencadas as medidas que os diferentes países estão a adotar.

No essencial, foram estas as conclusões apresentadas:

  • Estamos a viver um momento único, à escala global, que tanto afeta países ricos como pobres
  • A pandemia vai trazer, inevitavelmente, uma grave crise social e o aumento exponencial do desemprego, numa escala comparável à da grande depressão de 1919
  • Tal como o New Deal, que na altura respondeu à grande depressão de forma inovadora, necessitamos de um novo contrato social, que permita proteger os pequenos empresários, os trabalhadores, os emigrantes e os precários independentes
  • Os Estados devem criar, se possível à escala internacional, um Fundo de Contingência que permita acudir aos que não têm acesso à segurança social, em especial os emigrantes e os independentes
  • A proteção dos trabalhadores deve ser estendida aos precários da Gig economy
  • O teletrabalho deve ser incentivado e deve ser promovido um novo “direito de adaptação”: o trabalho deve ser adaptado de forma a evitar riscos de contágio
  • Os Estados devem privilegiar mecanismos de proteção do emprego, seja através do trabalho a tempo parcial, seja do Lay Off, ajudando as empresas a manter os empregos
  • Devem ser facultados aos trabalhadores direitos de acompanhamento de idosos e crianças e os profissionais de saúde devem ser particularmente protegidos, através de equipamentos de proteção individual
  • A título temporário, devem ser criadas regras que dificultem o despedimento até um período de 3 meses após o final da primeira vaga da epidemia
  • Os sindicatos e as empresas devem promover a “negociação coletiva para o bem comum”, procurando estender os benefícios negociados a toda a comunidade, nomeadamente para ajudar os que não têm emprego
  • Devem ser evitadas políticas de austeridade centradas no aumento de impostos e na redução de salários.

Foi igualmente recordada a necessidade de as liberdades que têm vindo a ser restringidas serem recuperadas no futuro. E esse é um bom pretexto para recordar o nosso caso.

Por um lado, importa recuperar rapidamente o direito à greve, que em Portugal foi limitado pelos decretos de estado de emergência do Presidente da República. O direito à greve é um direito constitucional e inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Faz parte do nosso sistema de valores, garantindo harmonia e equilíbrio ao sistema. Deve regressar o quanto antes.

Por outro lado, importa reativar a iniciativa económica privada, parcialmente suspensa nos referidos decretos presidenciais. Recordo, em particular, o poder de suspensão de despedimentos excecionalmente atribuído pelo Governo à ACT. Compreende-se a atual preocupação, neste contexto de crise. Findo o período de exceção, devemos voltar à normalidade: a suspensão dos despedimentos é desejável, sim, mas apenas quando decretada por uma autoridade judicial. A suspensão administrativa por agências estatais gera discricionariedade, afeta a separação de poderes e é um potencial de prepotência que deve ser evitado.

As conclusões são, portanto, claras: tudo deve ser feito para combater os efeitos sociais decorrentes desta crise, envolvendo neste esforço governos, empresas e sindicatos. Findo este período, devemos recuperar o essencial das liberdades: liberdade de circulação, de associação e sindical, bem como o direito à greve e à livre gestão empresarial.

São estas as lições de Georgetown.