Introdução
Um dos aspetos mais importantes para os investidores que pretendem estabelecer-se em Portugal é compreender o funcionamento do sistema jurídico e os mecanismos de resolução de litígios em Portugal. As empresas e os cidadãos estrangeiros necessitam de apoio para entender as leis que se aplicam aos litígios em que possam estar envolvidos, bem como as correspondentes regras processuais. É comum que nacionais de outros países se surpreendam com a natureza, por vezes excessivamente formalista, do ordenamento jurídico português e do modo de funcionamento dos tribunais, entidades reguladoras e organismos administrativos.
Este estudo pretende dar uma visão geral sobre as diversas questões relacionadas com o sistema judicial e os processos contenciosos, nomeadamente:
- Os principais diplomas aplicáveis, nomeadamente o Código de Processo Civil e as convenções internacionais em matéria de processos judiciais de que Portugal é parte;
- A estrutura do sistema judicial, abrangendo os tribunais civis, administrativos e fiscais e de jurisdição especializada, bem como as respetivas competências;
- As fases dos processos judiciais, nomeadamente a ação e a contestação, as audiências e o julgamento, a decisão e os recursos; e
- Os princípios que regem a repartição dos custos nos processos.
Este estudo tem carácter geral e não pretende dar uma resposta exaustiva às numerosas e complexas questões jurídicas e processuais que podem surgir no âmbito de um processo judicial. O seu objetivo é apresentar algumas notas introdutórias que permitem ao leitor comum compreender, de forma mais clara, o funcionamento de um processo judicial, seja ele de natureza civil, comercial ou administrativa.
Pode encontrar mais informação sobre outros aspetos relevantes para o desenvolvimento de negócios em Portugal no nosso sítio de internet em www.macedovitorino.com/en/Why-Portugal. Na página «Why Portugal» apresentamos uma visão geral dos principais fatores de interesse para empresas e particulares que pretendem investir em Portugal, a saber:
- Como constituir uma empresa;
- Formas de incentivos ao investimento e subsídios estatais disponíveis e como candidatar-se;
- Obtenção de uma autorização de residência portuguesa ou de um visto gold;
- Contratação de trabalhadores, obrigações dos empregadores e regras relativas ao despedimento de trabalhadores;
- Principais impostos em Portugal, incluindo, entre outros, o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, o IVA e os impostos sobre o património;
- Proteção da propriedade intelectual, software, patentes, marcas e tecnologia;
- Imobiliário, aquisição e arrendamento de imóveis, bem como questões de financiamento e fiscais;
- Resolução de litígios, o sistema judicial e as principais etapas e custos dos processos judiciais.
2. ENQUADRAMENTO
O sistema jurídico português tem as suas raízes no direito romano. Os primeiros esforços no sentido de codificar o direito português remontam ao século XV com as Ordenações Afonsinas, a que se seguiram as Ordenações Manuelinas no século XVI e as Ordenações Filipinas no século XVII que vigoraram até ao século XIX.
Após a Revolução Francesa e a aprovação do Código Napoleónico, em 1804, que revogou o direito consuetudinário francês, Portugal aprovou o seu primeiro Código Civil em 1867. Outros códigos foram aprovados no século XIX, incluindo, entre outros: o Código Comercial de 1888, o Código de Processo Civil de 1876 e o Código Penal de 1852.
O Direito civil e o Direito comercial são regidos por códigos e outra legislação avulsa. Não obstante, a jurisprudência tem um papel importante, sendo comum os tribunais recorrerem a decisões anteriores para fundamentar as suas próprias decisões e resolver dúvidas de interpretação das normas, ainda que o papel das decisões dos tribunais em Portugal seja muito menor do que nos países anglo-saxónicos.
As principais regras processuais relativas ao processo civil, recursos, sentenças e execução de decisões judiciais e arbitrais constam do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de junho, entretanto já objeto de diversas alterações.
São diretamente aplicáveis em Portugal os seguintes regulamentos europeus:
- O Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial; e
- O Regulamento (CE) 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, relativo à citação e à notificação nos estados-membros de documentos judiciais e extrajudiciais em matéria civil ou comercial.
Portugal é parte em várias convenções internacionais, como as Conferências da Haia de Direito Internacional Privado, no que respeita a matérias civis e comerciais, tanto em aspetos processuais como substantivos.
Das várias convenções internacionais de que Portugal é parte destacam-se:
- A Convenção de 1 de março de 1954 relativa ao processo civil;
- A Convenção de 5 de outubro de 1961 relativa à supressão da exigência da legalização dos atos públicos estrangeiros;
- A Convenção de 15 de novembro de 1965 relativa à citação e à notificação no estrangeiro de atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil ou comercial;
- A Convenção de 1 de fevereiro de 1971 relativa ao reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras em matéria civil e comercial;
- A Convenção de 18 de março de 1970 relativa à obtenção de provas no estrangeiro em matéria civil ou comercial; e
- A Convenção de 14 de março de 1978 sobre alei aplicável aos contratos de mediação e à representação.
3. TRIBUNAIS CÍVEIS
O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) é o tribunal superior com jurisdição em matérias civis, penais, comerciais e laborais, tendo competência de âmbito nacional. O Supremo Tribunal de Justiça decide os recursos dos tribunais de segunda instância, conhecendo apenas questões de direito.
Os Tribunais da Relação são tribunais de segunda instância da jurisdição civil, cuja competência abrange uma circunscrição territorial correspondente a vários distritos. A estes tribunais cabe, essencialmente, conhecer os recursos das decisões dos tribunais inferiores.
Os tribunais de primeira instância decidem as ações civis, criminais, comerciais e laborais.
Existem 23 tribunais de primeira instância no território nacional, os quais se desdobram em juízos de competência genérica e de competência especializada (central cível, local cível, central criminal, local criminal, local de pequena criminalidade, instrução criminal, família e menores, trabalho, comércio e execução), consoante a matéria e o valor da ação.
Refira-se ainda a existência de tribunais de competência territorial alargada que têm competência especializada e conhecem de matérias determinadas:
- Tribunais de Execução de Penas;
- Tribunal Marítimo, com sede em Lisboa;
- Tribunal da Propriedade Intelectual, com sede em Lisboa;
- Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, com sede em Santarém; e
- Tribunal Central de Instrução Criminal, com sede em Lisboa.
No sistema judicial português existem ainda Julgados de Paz, tribunais extrajudiciais que adotam um procedimento simplificado que visa a resolução célere de litígios.
A competência dos Julgados de Paz estende-se, especialmente, a questões patrimoniais civis cujo valor não exceda 15.000 euros.
4. TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Cabe à jurisdição administrativa a resolução de questões emergentes das relações administrativas e fiscais.
Os Tribunais Administrativos e Fiscais são os tribunais de primeira instância responsáveis pelos processos relativos a litígios administrativos entre particulares ou empresas e o Estado e outras entidades com poderes administrativos e públicos.
Os Tribunais Centrais Administrativos são os tribunais de segunda instância da jurisdição administrativa. Em Portugal existem as seguintes jurisdições regionais:
- Tribunal Central Administrativo Sul, com sede em Lisboa;
- Tribunal Central Administrativo Norte, com sede no Porto; e
- Tribunal Central Administrativo Centro, com sede em Castelo Branco.
Excetuam-se os casos em que, cumulativamente:
- As partes aleguem apenas questões de direito;
- O valor da causa seja superior à alçada dos tribunais centrais administrativos; e
- O valor da sucumbência seja superior a metade da alçada do tribunal de que se recorre, caso em que os recursos interpostos das decisões de mérito proferidas por tribunais tributários são da competência do Supremo Tribunal Administrativo.
O Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior da hierarquia dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, compreendendo duas secções: uma secção de contencioso administrativo e uma secção de contencioso tributário.
5. COMPETÊNCIAS DOS TRIBUNAIS
5.1. ASPETOS GERAIS
Em regra, os tribunais têm competência para decidir sobre qualquer questão suscitada no decorrer do processo, bem como para condenar ao pagamento de uma quantia em dinheiro (em qualquer moeda), decretar providências cautelares, proferir sentença que produza os efeitos da declaração negocial da parte faltosa, decretar divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, entre outras matérias.
No exercício do seu poder jurisdicional, os tribunais podem, oficiosamente ou mediante requerimento do interessado:
- Conhecer exceções que obstem a que o tribunal conheça do mérito da causa ou que consistam na invocação de factos que impeçam, modifiquem ou extingam o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor;
- Inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária; ou
- Ordenar a prestação de caução por uma das partes.
5.2. A AÇÃO E A DEFESA
Os processos têm início com a apresentação, pelo autor, da petição inicial, na qual são expostos os factos que fundamentam o direito que pretende fazer valer em juízo, bem como as razões de direito que sustentam a sua pretensão.
O réu dispõe, em regra, de um prazo de 30 dias para contestar a ação, contado a partir da data em que é citado pelo tribunal. Na contestação, o réu pode defender-se refutando as alegações constantes da petição inicial ou apresentando novos factos que conduzam à improcedência do pedido formulado pelo autor.
5.3. A AUDIÊNCIA PRÉVIA
Após a apresentação da petição inicial e da contestação, o juiz designará uma data para a realização da audiência prévia. Nessa audiência, procurará promover a conciliação entre as partes e apreciará as exceções dilatórias que tenham sido suscitadas, podendo também, se for o caso, apreciar desde logo o mérito da causa.
Caso não seja alcançado acordo, o juiz convidará as partes a discutir a matéria de facto que deverá ser objeto de prova – denominados temas de prova – e a identificar os factos que poderão ser considerados provados. Concluída a audiência prévia, o juiz proferirá despacho saneador, no qual indicará os factos provados e os temas de prova, bem como designará a data ou datas da audiência final.
5.4. O JULGAMENTO
O julgamento inicia-se com uma nova tentativa de conciliação entre as partes. Caso não seja possível alcançar um acordo, procede-se à produção da prova, a qual pode incluir depoimentos e declarações das partes, esclarecimentos orais de peritos e depoimentos de testemunhas.
No prazo de 30 dias contados da audiência final, o tribunal proferirá sentença sobre os factos e o mérito da causa.
5.5. RECURSOS
As decisões dos tribunais podem ser objeto de recurso, dependendo do valor da causa e das matérias em discussão. De facto, decisões proferidas em ações relativas ao estado das pessoas ou em processos de atribuição da casa de morada de família são sempre suscetíveis de recurso.
Os fundamentos mais comuns para interpor recurso são erros na interpretação ou na aplicação do direito, bem como incorreções na apreciação da matéria de facto e na valoração da prova pelo tribunal.
Quando a decisão sobre a matéria de facto é impugnada, o tribunal de recurso confirmará a decisão da instância inferior se não verificar qualquer erro na apreciação dos factos. Caso contrário, deverá determinar a renovação da prova ou a produção de nova prova.
Conforme as circunstâncias, o Tribunal da Relação pode confirmar a decisão, revogá-la ou determinar que o tribunal de primeira instância realize um novo julgamento.
O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação pode, dependendo do valor da causa, ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Contudo, não é admissível recurso do acórdão da Relação que confirme da decisão da primeira instância, desde que o faça sem voto de vencido e sem apresentar fundamentação essencialmente diferente.
6. CUSTAS JUDICIAIS
As custas judiciais ou processuais equivalem, em termos gerais, ao montante despendido com a prestação do serviço público de administração de justiça pelos tribunais.
A Constituição da República Portuguesa assegura a todos os cidadãos o acesso aos tribunais; contudo tal garantia não implica a gratuitidade dos serviços de justiça, mas apenas que seu o custo não seja tão elevado que constitua um obstáculo significativo ao exercício desse direito. Imposta salientar, porém, que o valor das custas processuais não tem de refletir, nem cobre necessariamente, o custo real do processo.
Em cada ação judicial instaurada em tribunal, é devido o pagamento de custas judiciais cujo montante varia em função do valor da causa.
As custas de parte correspondem às despesas legais suportadas pela parte vencedora e que podem ser imputadas à parte vencida, caso aquela assim o requeira. Essas quantias devem constar de uma nota discriminativa e justificativa, na qual se identificam todos os elementos essenciais relativos ao processo e às partes.
Nas ações com valor superior a 250.000 euros, o custo total do processo - incluindo as taxas de justiça e as custas de parte – corresponde, em regra, a aproximadamente 1,8% do valor da causa. Caso haja recurso para o Tribunal da Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça, o valor do recurso será de montante equivalente, o que perfaz um custo global de cerca de 3,6% do valor da ação. Se a decisão recorrida vier a ser alterada, a parte vencida será condenada no pagamento das custas do processo.