Guilherme Dray, Advogado e Sócio da MACEDO VITORINO, partilha o seu ponto de vista na revista digital ADVOCATUS da ECO, sobre «Liberdade e Pactos de Não Concorrência», publicado a 1 de maio de 2024.
Os noncompete agreements, conhecidos entre nós por pactos de não concorrência pós laborais, sofreram um forte revés nos Estados Unidos da América.
No passado dia 23 de abril, a Federal Trade Commission (FTC), equivalente à nossa Autoridade Para a Concorrência, baniu quase por completo os noncompete agreements, que impedem os trabalhadores de ingressar em empresas concorrentes ou de lançar empresas próprias após a cessação dos respetivos contratos de trabalho.
O principal argumento utilizado pela FTC assentou na defesa das liberdades de trabalho e económica dos trabalhadores, face à banalização dos acordos de noncompete. Até agora, estes acordos tanto criavam obstáculos à contratação de trabalhadores altamente especializados, como à contratação de trabalhadores administrativos ou com funções comuns.
Segundo a FTC, cerca de 30 milhões de pessoas, ou um em cada cinco trabalhadores americanos, de todas as profissões e categorias profissionais, estavam vinculados a não competir com os seus empregadores depois de terminarem os seus contratos de trabalho.
Estes pactos de não concorrência tinham diversos efeitos perversos: restringiam os trabalhadores a mudar livremente de emprego; reduziam os salários; sufocavam a inovação; criavam entraves ao desenvolvimento de novos negócios e prejudicavam a concorrência leal.
A proibição dos noncompete agreements, segundo a mesma agência, ao incentivar as pessoas a trocar de emprego livremente, pode levar a um aumento dos salários que totalizam quase US$ 300 bilhões por ano.
A proibição, todavia, não é absoluta, admitindo-se a validade destes pactos de não concorrência já negociados com altos executivos das empresas (trabalhadores que ganham mais de US$ 151.164 por ano).
Compreende-se esta necessidade de limitar os pactos de não concorrência.
Na verdade, se se banalizarem, estes pactos põem em causa a liberdade de trabalho e afetam a economia dos Estados. Mais do que isso; no caso dos trabalhadores não qualificados, estes pactos, na maior parte dos casos, nem sequer eram negociados, mas sim impostos pelos empregadores aquando da contratação dos trabalhadores.
Por isso, aplaude-se esta decisão.
De resto, como recorda a FTC, há outra forma de proteger os segredos comerciais das empresas, sem necessidade de limitar a liberdade de trabalho. Basta, para o efeito, a utilização de cláusulas de confidencialidade.
Recorda-se que, em Portugal, os pactos de não concorrência já estão há muito limitados e condicionados.
O artigo 136.º do Código do Trabalho estabelece que é nula a cláusula de contrato de trabalho ou de convenção coletiva que possa prejudicar o exercício da liberdade de trabalho após a cessação do contrato.
A lei admite, excecionalmente, a limitação da atividade do trabalhador durante o período máximo de dois anos subsequente à cessação do contrato de trabalho, mas apenas nas seguintes condições:
- Constar de acordo escrito, nomeadamente de contrato de trabalho ou de revogação deste;
- Tratar-se de atividade cujo exercício possa causar prejuízo ao empregador;
- Atribuir-se ao trabalhador, durante o período de limitação da atividade, uma compensação.
Em caso de trabalhador afeto ao exercício de atividade cuja natureza suponha especial relação de confiança ou que tenha acesso a informação particularmente sensível no plano da concorrência, a limitação pode durar até três anos.
A medida ora adotada pela FTC segue, portanto, uma tendência já espelhada na nossa lei: os trabalhadores devem ter o direito de escolher para quem querem trabalhar.
A celebração dos noncompete apenas deve ser permitida em casos excecionais, se estiver em causa um trabalhador que exerça atividade especializada; se o mesmo for devidamente compensado; e se se estabelecer um prazo máximo de limitação que não pode, em caso algum, ultrapassar os três anos.
Na semana em que comemoramos o Dia da Liberdade, é uma boa notícia!
Guilherme Dray, Advogado e Sócio da MACEDO VITORINO, partilha o seu ponto de vista na revista digital ADVOCATUS da ECO, sobre «Due Diligence e Sustentabilidade: Novo Paradigma a Caminho», publicado a 29 de abril de 2024.
A proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade é muito clara: as empresas devem contribuir para a defesa dos direitos humanos e para a sustentabilidade ambiental.
A ideia é a seguinte: o comportamento das empresas é fundamental para que a União seja bem-sucedida na transição para uma economia verde e no cumprimento de objetivos relacionados com os direitos humanos.
A ligação da economia da UE a cadeias de valor mundiais implica que as empresas devam identificar os riscos na sua cadeia de valor relativamente às referidas matérias.
Para o efeito, devem promover ações de due diligence que lhes permitam identificar, prevenir, atenuar e minimizar riscos em matéria de sustentabilidade.
Visa-se, no essencial, que as empresas incorporem nos seus processos de Governance preocupações em matéria de direitos humanos, como o trabalho forçado, o trabalho infantil, situações inadequadas de saúde e segurança no local de trabalho, a exploração dos trabalhadores, e em matéria ambiental, a prevenção da emissões de gases com efeito de estufa, a poluição ou a perda de biodiversidade e a degradação dos ecossistemas.
Para o efeito, a UE propõe-se criar regras claras sobre as ações de due diligence.
No essencial, a proposta de Diretiva estabelece que os Estados membros devem assegurar que as empresas com determinada dimensão, ou em setores considerados de alto risco:
- Fazem due diligences contínuas em matéria de direitos humanos e de ambiente, integrando o dever de diligência nas suas políticas e criando códigos de conduta que descrevam as regras e os princípios a seguir pelos trabalhadores e filiais da empresa (art. 4.º e 5.º);
- Tomam medidas adequadas para identificar, prevenir, cessar e minimizar os efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos e no ambiente das suas próprias operações, das operações das suas filiais e, quando relacionados com as suas cadeias de valor, das suas relações empresariais com terceiras entidades (arts. 6.º, 7.º 8.º);
- Realizam avaliações periódicas das suas próprias operações e das medidas adotadas (art. 10.º);
- Comunicam as suas diligências, publicando no seu sítio Web uma declaração anual numa língua de uso corrente na esfera empresarial internacional (art. 11.º).
Estabelece-se, ainda, que cada Estado-Membro deve designar uma autoridade de supervisão para garantir o cumprimento destas obrigações (art. 17.º) e que as empresas que as cumpram possam ser civilmente responsabilizadas dentro de um prazo prescricional de, pelo menos, dez anos (art. 22.º).
Além do mais, determina-se que, no cumprimento do seu dever de agir no interesse da empresa, os administradores das empresas devem ter em conta estas regras e preocupações, inclusive a curto, médio e longo prazo (art. 25.º).
A Diretiva em causa ainda não foi formalmente aprovada, estando a seguir a sua tramitação normal antes da sua aprovação - interação com stakeholders, acolhimento de propostas de modificação, etc. Segue-se, depois, a sua transposição para o direito interno.
Por essa razão, ainda decorrerão alguns meses até que estas regras estejam em vigor.
As empresas que o possam fazer têm, todavia, manifestas vantagens competitivas em adotar voluntaria e antecipadamente as regras que constam desta proposta.
Por um lado, ao fazê-lo, preparam-se para o futuro e para o que aí vem.
Por outro lado, posicionam-se de forma positiva junto do mercado, dos investidores e dos consumidores, evitando riscos indesejados para a sua reputação.
Por fim, e mais importante, mostram que estão empenhadas e envolvidas em promover o bem comum e em implementar políticas de responsabilidade social em benefício da comunidade.
Como deve a renovação automática de plafonds de comunicações ser feita? É a questão que a ANACOM colocou em discussão pública até abril.
Uma proposta de decisão da ANACOM, em discussão pública durante o corrente mês, questiona o mercado sobre eventual limitação da possibilidade de renovação automática dos plafonds de dados, após o esgotamento do volume inicialmente contratado pelos consumidores.
A iniciativa desta medida resultou, segundo a ANACOM, da análise de uma amostra de perto de 437 casos ocorridos entre janeiro de 2021 e junho de 2023, considerando-se que o universo total de casos poderá ter chegado aos 4000.
Portanto, combinando estes elementos com os dados do portal do consumidor, ao longo destes 30 meses, das cerca de 200 reclamações apresentadas diariamente, quatro, terão reclamado porque (i) não sabiam que se esgotassem o plafond de dados que tinham contratado poderiam ser ativados plafonds adicionais, (ii) não conseguiram impedir a ativação automática dos adicionais, porque (iii) não receberam avisos de se estarem a esgotar os limites iniciais e, por fim, (iv) porque, lhes cobraram múltiplos plafonds sucessivos.
Com estes elementos em vista, e tendo em conta os dados que a ANACOM apurou junto dos operadores, ficamos a saber que efetivamente a possibilidade de ativação de plafonds adicionais estava prevista nos contratos de adesão e que existiam mecanismos que permitiam o barramento ou, pelo menos, a limitação destas funcionalidades. Ao que parece esta funcionalidade estaria disponível de forma automática, ie, sem necessidade de intervenção adicional do consumidor, sendo neste ponto que, de acordo com a ANACOM, o problema se coloca.
É pena que na fundamentação desta proposta de deliberação nada seja dito sobre a forma como os operadores responderam aos consumidores nas diversas situações. Não sendo juridicamente o mesmo desconhecer o teor de um contrato ou não ter, em devido tempo, a possibilidade de impedir o consumo de volumes extras de dados. A resposta dos operadores seria um elemento fundamental para justificar ou não a eventual intervenção regulamentar.
Acresce ainda que, tendo em conta os dados disponibilizados nos Relatórios de Regulação de 2021 e 2022, pelo que se consegue apurar, não foi levantado qualquer processo de contraordenação sobre esta matéria. Aliás, a este propósito, é interessante notar que, mesmo recuando o período até ao ano de 2014, as contraordenações relativas à prestação de informações aos consumidores e a práticas desleais e proteção de utilizadores (que inclui contratos e fidelização) representaram apenas 14% do número total de processos de contraordenação.[1]
Segundo o projeto de deliberação, a questão resume-se a saber se, à luz da Lei das Comunicações Eletrónicas, da Lei dos Serviços Públicos Essenciais, do Regime aplicável às Práticas Comerciais Desleais, e do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, se “será legal e proporcional uma prática que passa pela ativação e cobrança automática de plafonds adicionais de dados ou outras comunicações sempre que um utilizador final esgote a totalidade dos dados ou comunicações incluídos no preço periódico do tarifário que contratou, com base numa aceitação prévia e genérica desse automatismo por via da adesão às condições do tarifário em questão, aquando da respetiva subscrição, aceitação essa que a empresa considera como dispensando qualquer posterior solicitação ou aceitação da ativação e consequente cobrança desses plafonds adicionais”.
O facto de reconhecer que não tem competência “para a supervisão do cumprimento das (...) disposições do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais ou da Lei de Defesa do Consumidor”, não impede a ANACOM de declarar contrário ao princípio da boa-fé que as empresas procedam “ à ativação automática de plafonds adicionais de comunicações, designadamente de dados móveis, imediatamente após o esgotamento do plafond incluído no preço periódico do tarifário contratado, sem que o utilizador final o tenha solicitado ou em tal tenha consentido de forma expressa e específica – isto é, relativamente a cada um dos plafonds adicionais a ativar –, exclusivamente com base na respetiva adesão às condições gerais do referido tarifário, que preveem essa ativação automática por defeito”.
Para resolver a questão a ANACOM propõe uma de duas hipóteses:
1. A imediata cessação da ativação automática de plafonds adicionais de comunicações, designadamente de dados móveis, sem que os utilizadores finais tenham solicitado ou consentido, expressa e especificamente, nessa ativação, imediatamente antes ou após o esgotamento do plafond incluído no tarifário; ou, em alternativa
2. Que se mantenha a ativação automática de plafonds adicionais através de um sistema de opt-in, em que esta opção “possa ser livremente selecionada, de forma expressa e ativa, pelos utilizadores finais desde que, por um lado, e que, por outro, o possam fazer de forma fácil e expedita, limitando o número e/ou volume dos plafonds adicionais a ativar, e lhes seja dada a opção de barrar posteriormente essa possibilidade, se assim o desejar”.
Perante estas opções, não será difícil antever qual será a mais popular.
Independentemente das conclusões finais a que se chegar, é pena que a opção de centrar a questão na vertente estritamente jurídica e abstrata da matéria e a sua respetiva fundamentação, tenha sido feito à custa da quase total omissão de elementos que permitissem um melhor juízo sobre a necessidade, a proporcionalidade ou razoabilidade desta medida regulamentar.
João Macedo Vitorino, Advogado e Sócio da MACEDO VITORINO, partilha o seu ponto de vista na revista digital Capital Verde da ECO, sobre «A Lei do Clima faz dois anos com quase tudo por fazer», publicado a 1 de fevereiro de 2024.
De fundamental e bem-feita a inconsequente e platónica. A Lei de Bases do Clima celebra dois anos com aplausos por existir mas apupos pelos atrasos na concretização, com resultados quase nulos.
ALei de Bases do Clima celebra dois anos desde a sua entrada em vigor, esta quinta-feira. Mas celebrar pode não ser a palavra certa. Enquanto alguns sublinham os méritos de esta lei estar cá fora, muitos reconhecem que o efeito prático está a tardar.
“Claramente existe um antes e um depois da lei de bases [do clima]“, considera Miguel Costa Matos, deputado do Partido Socialista que foi coautor da proposta de lei que vingou. O que separa os dois momentos, na sua opinião, é que após a publicação da lei floresceu a “noção clara” de que as alterações climáticas têm de ser prioridade”, e facilitaram-se os consensos políticos, pois ” tornou-se mais difícil ter um discurso contra [a causa climática]”. No entanto, assume, “é frustrante para quem esteve na construção da lei ver tantos dos seus instrumentos por concretizar“.
Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS), concede que a Lei do Clima está “bastante bem feita”, mas aponta um “défice de planeamento, decisão e de ação” e afirma que “não há muita ação governativa que tenha sido baseada na lei do clima”. A associação ambientalista Zero, num comunicado enviado às redações, vai mais longe: apesar de ser uma “lei decisiva” pois “estabelece diretrizes fundamentais para uma abordagem coletiva e integrada”, “os progressos são medíocres”. A velocidade de ação foi “parada, devagar ou devagarinho” e ” muito pouco foi feito nestes dois últimos anos”.
O Governo, cuja liderança está nas mãos de António Costa desde que esta lei nasceu, defende-se afirmando que “os resultados expressivos em matéria climática que o país tem vindo a alcançar, também reconhecidos internacionalmente, estão alinhados com os objetivos centrais da Lei de Bases do Clima“. Neste âmbito, fonte oficial do ministério do Ambiente recorda que Portugal encerrou as centrais a carvão nove anos antes do previsto, e que na última revisão do Plano Nacional de Energia e Clima o Governo antecipou em quatro anos as metas de produção de eletricidade e confirmou o compromisso de acabar a produção de eletricidade com base em gás natural em 2040. Além disso, ” tem havido uma evolução muito favorável da produção descentralizada, além de se ter promovido, como nunca, a eficiência energética, protegendo os mais vulneráveis”, conclui.
Aprovada e publicada em 2021, a Lei de Bases do Clima entrou em vigor em fevereiro de 2022, e é o texto legislativo no qual o país se compromete a atingir a neutralidade carbónica até 2050, e a tentar acelerar esse esforço de forma a estar idealmente concluído em 2045. Ou seja, o objetivo era que nesse ano o país compensasse todas as suas emissões de dióxido de carbono, depois de as ter reduzido ao mínimo possível. O primeiro-ministro reforçou na última cimeira global do clima, a COP28, que 2045 é o verdadeiro objetivo.
Para tal, a lei prevê a criação de vários outros diplomas estratégicos nos quais se concretize o caminho que deve ser percorrido até à meta. É um “diploma assumidamente não autossuficiente“, explica Raquel Freitas, consultora sénior da PLMJ na área de Público e focada em direito do ambiente.
E são vários os diplomas previstos nesta lei que não viram a luz do dia, ignorando o prazo que lhes era imposto. Precisamente a 1 de fevereiro de 2024, era suposto ter-se a apresentação de uma Estratégia Industrial Verde, dos Planos setoriais de mitigação e de adaptação às alterações climáticas e dos Planos regionais e municipais para a ação climática. Dos dois primeiros não há registo, dos últimos verifica-se que a execução está muito incompleta.
Confrontado com o atraso nos planos setoriais de mitigação, o ministério da tutela indica que “os recursos humanos da APA [Agência Portuguesa do Ambiente] estão a ser reforçados, dotando a instituição dos meios necessários para assumir as novas responsabilidades conferidas pelas Lei de Bases do Clima, incluindo a coordenação dos planos setoriais”. Para Filipe Duarte Santos, devia ter sido dada mais prioridade à questão de adaptação às alterações climáticas, pois estão a viver-se “problemas reais” como a escassez de água no Algarve que pediam medidas de resiliência ao invés de medidas restritivas, acredita.
No que toca à Estratégia Industrial Verde, a Zero só vê condições para que esta seja lançada daqui um ano depois do prazo, apesar de a avaliar como sendo “extrema relevância”. O gabinete chefiado por Duarte Cordeiro afirma que já havia sido criado um grupo interministerial para desenhar esta estratégia, e que haviam sido iniciados os trabalhos, mas “no atual contexto político e tratando-se de um documento estruturante, a Estratégia deverá ser elaborada pelo próximo Governo”. Miguel Costa Matos considera que, apesar de este instrumento ser “relevante”, tem sido compensado pelo investimento que tem sido captado a nível europeu nas áreas de sustentabilidade, sobretudo no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência.
Já no que respeita aos planos regionais e municipais para a ação climática, “a falta de apoio por parte do governo central às autarquias na elaboração destes planos, quer ao nível financeiro quer ao de recursos humanos técnicos adequados, traduz-se na impossibilidade de apresentação do plano por parte da maioria dos municípios”, acusa a Zero. À data, apenas 124 dos 308 municípios que existem em Portugal finalizaram este documento. Miguel Costa Matos Concorda que “é importante arranjar maneiras de apoiar e mobilizar” sobretudo pela larga abrangência destes planos, que dão resposta sobretudo do lado da procura e não tanto do fornecimento de serviços.
Neste terceiro ponto, o Governo indica que a Agência Portuguesa do Ambiente publicou orientações para a elaboração dos planos regionais e interagiu com algumas Comunidades Intermunicipais (CIM). “O plano futuro” contemplava a capacitação dos municípios e das comissões regionais através de planos formativos e de acompanhamento.
Fora estes três assuntos que adquirem o rótulo de “fora do prazo” no segundo aniversário da entrada em vigor da lei, são amplamente criticados o atraso na criação de um Conselho para a Ação Climática, um órgão consultivo e independente que supervisionará a aplicação da lei, e do qual dependem alguns dos diplomas, assim como a ausência dos chamados Orçamentos de Carbono. Estes últimos deveriam estabelecer limites quinquenais de emissões de gases de efeito de estufa para o país, mas não existem para o período atual até 2025 nem para 2025-2030.
A eleição do presidente do CAC fica para a próxima legislatura e, quanto aos Orçamentos de Carbono, Costa Matos afirma que o Governo garantiu que estão feitos, mas à espera de um CAC que os valide. Assim, deverão fixar igualmente pendurados.
Numa nota mais positiva, a cumprir a lei do clima está a divulgação de dois relatórios. Um, por parte da Assembleia da República, que apresentou o seu relatório de avaliação do impacte carbónico da sua atividade e funcionamento. Outro, é o relatório anual sobre a exposição ao risco climático do setor financeiro e segurador, apresentado pelo Banco de Portugal e a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF).
Consequente ou inconsequente, eis a questão
O atraso no cumprimento das ações previstas na LBC pode implicar um atraso no alcance das metas a que o Estado Português se encontra vinculado, alerta a consultora da PLMJ. A Zero diz mesmo que os atrasos na implementação desta lei “prejudicam fortemente o correto planeamento e execução da política e ação climática nacional”. Pelo contrário, Costa Matos considera que “não foi por não haver planeamento que deixou de haver atraso na ação climática”, mas reconhece que “esse atraso poder-se-á revelar daqui a uns tempos“, estando dependente da capacidade de recuperar o tempo perdido.
Mas, afinal, se não em sido respeitada, para que serve esta lei? A PLMJ vê-a como “um primeiro passo de uma ação sistematizada”. É neste documento que estão “as linhas mestras das políticas públicas” ligadas ao clima, realça Susana Alberto, associada no Departamento de Administrativo e Contratação Pública da SRS Legal.
Na barricada oposta, está Armando Rocha, professor na Universidade Católica portuguesa e responsável pelo Climate Litigation Lab desta instituição. Considera a Lei do Clima uma “lei para o cidadão ver”, que “cumpriu o seu objetivo simbólico” mas ” não produziu nada de substancial”. Para Carla Amado Gomes, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, esta é “uma lei platónica, ou quase”, apesar de ser fruto de compromissos assumidos junto da União Europeia.
Também cético apresenta-se João Macedo Vitorino, líder da sociedade Macedo Vitorino. “A LBC é uma lei inconsequente, sim“, já que “pouco ou nada acrescenta de concreto ao PNEC, que já é ele próprio pouco conclusivo”.
Na visão deste jurista, qualquer lei sobre clima que tenha resultados práticos passa por desincentivar já quem polui (por exemplo proibindo o uso industrial e o consumo de materiais poluentes para os quais já haja alternativa) e incentivar as boas práticas ambientais (por exemplo, com redução de impostos sobre a atividades climaticamente sustentáveis). “Não há tempo para mais grupos de trabalho, nem para relatórios, estratégias e planos a 10 anos“, remata.
E, de acordo com a avaliação da SRS Legal, não existe penalização prevista para os atrasos. “Não existe legislação que contemple sanções para o não cumprimento dos prazos fixados na Lei de Bases do Clima para a sua regulamentação”, indica. Existe um regime sancionatório previsto na própria lei de bases, mas este debruça-se sobre “ações e omissões danosas que acelerem ou contribuam para as alterações climática” e não sobre a não regulamentação da Lei de Bases.
No entanto, é possível recorrer aos tribunais para “obrigar à emissão das normas em falta e para responsabilização por danos causados”, ressalva. A professora Amado Gomes partilha da mesma interpretação. E a prática já o confirmou. Em novembro do ano passado, a associação ambientalista Último Recurso avançou um processo em tribunal contra o Estado português, por falhar na aplicação da lei de bases do clima.
Ação nas mãos de próximo Governo. Mas há riscos
Nas eleições de 10 de março vai saber-se qual o Governo que terá a responsabilidade de executar — ou voltar a falhar — a Lei de Bases do Clima.
Filipe Duarte Santos mostra-se otimista, “os dois partidos principais de Portugal têm pontos de vista muito semelhantes em relação à necessidade de descarbonizar”, e “em Portugal não temos uma situação comparável a outros países como os EUA. Na Europa há um consenso bastante grande entre várias forças políticas sobre a realidade da mudança climática e necessidade de descarbonização”. No entanto, realça que as alterações climáticas não estão tão presentes no debate político como entende que se justificaria.
Miguel Costa Matos faz uma avaliação semelhante, mas alerta que o crescimento do partido Chega, “abertamente negacionista” acerca das alterações climáticas, é “preocupante” do ponto de vista da ação nesta área.
Guilherme Dray, Advogado e Sócio da MACEDO VITORINO, partilha o seu ponto de vista na revista digital ADVOCATUS da ECO, sobre «Ética Empresarial e Proteção do Whistleblower», publicado a 11 de dezembro de 2023.
“A economia de mercado faz parte das democracias liberais, mas a ética empresarial é um ingrediente necessário para o seu normal funcionamento”.
A ética empresarial é cada vez mais um imperativo das sociedades democráticas. A economia de mercado faz parte das democracias liberais, mas a ética empresarial é um ingrediente necessário para o seu normal funcionamento.
Por essa razão, têm sido criados programas universitários sobre o tema e aprovados instrumentos legais para garantir que as empresas atuam de forma competitiva e com ética, dentro das leis do mercado.
Em 2002, na sequência de diversos escândalos financeiros, o Congresso dos Estados Unidos promulgou o Sarbanes-Oxley Act (SOX), impondo a produção de relatórios independentes associados à criação de produtos financeiros. Criou-se, também, uma regra de proteção dos denunciantes contra atos de retaliação.
Há cerca de 1 mês, porém, no caso Murray v. UBS Securities, LLC, o US Supreme Court esclareceu que cabe ao denunciante fazer prova de que o seu despedimento foi um ato de retaliação.
O caso é simples de relatar: em 2011, Murray foi recrutado para um banco de investimento, ficando com a responsabilidade de analizar o risco de determinados produtos financeiros. Murray alegou que os seus supervisores pressionaram-no a distorcer os seus relatórios em benefício das estratégias de negócio do banco. Por ter denunciado tal situação, foi demitido e processou o banco. Apesar de ter ganho a causa em 1ª Instância, os tribunais superiores decidiram que Murray não provou que o despedimento foi um ato de retaliação.
Ou seja, Murray não poderia ter sido despedido por ter denunciado uma fraude financeira. Mas, como não conseguiu provar o nexo de causalidade entre a denúncia e o despedimento, perdeu a ação.
A proteção do denunciante revelou-se ineficaz.
Também na Europa têm sido criadas leis para promover a ética empresarial e garantir a proteção dos denunciantes.
Em Portugal, temos o Regime Geral da Prevenção da Corrupção (RGPC), o Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações (RGPDI) e a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024. De acordo com estas leis, as entidades com 50 ou mais trabalhadores devem dispor de um Programa de Cumprimento Normativo que implica a elaboração de códigos de conduta, planos de prevenção de riscos, canais de denúncia e programas de formação para a integridade, assim como devem nomear um responsável pelo cumprimento normativo.
O RGPDI, inspirado na Diretiva UE 1937/2019 sobre a proteção do denunciante, estabelece que é proibido praticar atos de retaliação contra quem denuncia infrações. Mas vai mais longe.
Ao contrário do SOX americano, o RGPDI contém uma “presunção de retaliação”, estabelecendo que se presume, até prova em contrário, que há retaliação quando esta ocorre até dois anos após a denúncia ter sido feita. Perante esta regra, o denunciante que é despedido apenas tem de invocar que este foi um ato de retaliação, cabendo ao empregador provar o contrário.
Ou seja: os EUA iniciaram a defesa da ética empresarial e o movimento de proteção do Whistleblower; a Europa, seguindo este trajeto, aproveitou a experiência do tempo para dar um passo em frente em matéria de ónus da prova.
Só falta mesmo uma coisa: as empresas internalizarem que, independentemente das leis, a ética empresarial é, realmente, essencial para as democracias e para o desenvolvimento económico e social.
O legislador deu o sinal; cabe às empresas aprovarem os códigos de conduta e demais instrumentos de compliance normativo que lhes permitam dar esse salto em frente.
João Macedo Vitorino, Advogado e Sócio da MACEDO VITORINO, e, Frederico Vidigal, Advogado e Coordenador do Departamento de Energia e Ambiente da MV, partilham os seus pontos de vista na revista digital Capital Verde da ECO, sobre «O Licenciamento de Hidrogénio, ficou mais simples. Mas mantêm-se grandes dificuldades», publicado a 24 de julho de 2023.
A Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) publicou recentemente uma nota interpretativa para “promover a clareza e transparência sobre as questões envolvidas no licenciamento industrial de hidrogénio renovável em Portugal”, com o objetivo de diminuir a complexidade dos procedimentos, indicou o Ministério do Ambiente e da Ação Climática. A nota agiliza o processo, mas persistem entraves ao licenciamento de projetos de hidrogénio verde, alertam os especialistas ouvidos pelo ECO/Capital Verde.
A nota interpretativa começa por clarificar as condições que os produtores devem cumprir para provar que o hidrogénio produzido é, de facto, renovável.
Uma vez que não se encontram estabelecidos em lei ou regulamento nacional os critérios para o hidrogénio ser considerado de origem renovável, explica a sociedade Macedo Vitorino, a nota acaba por remeter para as regras estabelecidas na Diretiva de Energias Renováveis.
Além disso, “até agora, não era claro que tipo de prova os promotores deveriam fazer para demonstrar a origem verde da eletricidade utilizada para produzir hidrogénio”, indica o sócio da área de Projetos e Energia da PLMJ, João Marques Mendes.
A nota interpretativa determina que seja assinada uma “simples declaração de honra”, na qual os produtores se comprometem a produzir hidrogénio de fonte renovável, “tornando simples um processo que é complexo nos termos da lei e das regras europeias”, avalia o sócio responsável pelo Departamento de Ambiente na SRS, José Luís Moreira da Silva. A ‘prova dos nove’ é pedida mais tarde, na fase de construção, quando devem ser entregues um conjunto de documentos que comprovam o atestado na declaração inicial.
Caso não se confirme o uso de energias renováveis, os produtores ficam sujeitos a sanções, ressalta o mesmo sócio da SRS. Essas sanções passam por uma perda de direitos de exploração, não sendo emitido o título relativo à instalação e exploração do estabelecimento industrial, lê-se na nota.
A nota interpretativa “vem realmente simplificar o processo e permitir a abertura do procedimento e a sua conclusão mais célere”, conclui, portanto, José Luís Moreira da Silva.
Mas servirá para atrair mais projetos? “A minha convicção é que esta nota interpretativa aproveitará, sobretudo, aos promotores que já estão efetivamente interessados na participação no concurso, achando difícil que tal suscite um incremento exponencial de procura”, estima Filipe de Vasconcelos Fernandes, especialista em Economia da Energia.
A sociedade Macedo Vitorino também rejeita a tese de aumento do volume de interessados, pois identifica outros problemas no licenciamento.
Apesar de concordarem que a nota interpretativa vem facilitar o processo, os mesmos especialistas ressalvam que persistem entraves ao licenciamento de projetos de hidrogénio verde, os quais veem como verdadeiros desafios.
“O principal entrave ao desenvolvimento de projetos de hidrogénio parece-nos que não reside no processo de licenciamento do eletrolisador em si, mas antes no processo de licenciamento de soluções de autoconsumo solar que vão alimentar o processo de eletrólise”, indica a Macedo Vitorino, na voz do sócio fundador João Macedo Vitorino e do Associado Sénior Coordenador Frederico Vidigal.
De acordo com os mesmos, os promotores têm sentido dificuldade em instalar junto a polos industriais grandes projetos de autoconsumo que consigam alimentar em exclusivo a produção do eletrolisador. “A proximidade entre a UPAC e as instalações de consumo é condição legal para o exercício da atividade de produção”, explicam, para depois alertarem: “Alguns projetos de produção de hidrogénio têm acabado por não sentir do papel pela dificuldade em encontrar o terreno necessário à operação da UPAC [Unidade de Produção para Autoconsumo] necessária à produção do hidrogénio”. Isto porque os custos são “demasiado altos” se a produção de hidrogénio verde for feita com recurso a eletricidade fornecida pela rede, dizem.
João Marques Mendes considera como principal desafio o acesso à rede pública de eletricidade por parte das centrais solares ou eólicas que vão abastecer os eletrolisadores, e acrescenta à problemática as dificuldades no licenciamento de gasodutos de ligação entre produtores e clientes.
Então, como dar resposta a estes problemas? Para Marques Mendes, é urgente “a definição de uma estratégia rápida e eficaz para criar e libertar capacidade de acesso à rede pública para novos projetos de produção renovável” pois “é determinante para viabilizar não só projetos de hidrogénio verde, mas uma série de projetos industriais estratégicos e que dependem de eletricidade verde”.
Já a Macedo Vitorino sugere dois caminhos: que o legislador considere a figura do Cliente Eletrointensivo e permita aos promotores, ainda numa fase inicial do projeto, aderir a este estatuto, através do qual o consumidor fica isento de uma parte do preço da eletricidade, os custos de interesse económico geral (CIEG). Em paralelo, esta sociedade considera “desejável” que fosse estabelecido um canal específico de atribuição de capacidade, dedicado à alocação de capacidade para projetos de autoconsumo, especialmente para consumidores eletrointensivos direcionados à produção de hidrogénio e seus derivados.
Filipe de Vasconcelos Fernandes identifica ainda outro entrave ao desenvolvimento de projetos: “a necessidade uma maior adesão à realidade de algumas perspetivas, por parte da(s) entidades licenciadoras, quanto ao potencial hídrico de determinadas localizações”. A água também é necessária para a produção de hidrogénio mas, face à instabilidade dos ciclos hidrológicos, “poderá estar muito mais abaixo do que o expectável”, assinala o mesmo. “A minha convicção é que temos uma relativa desatualização nos mapas de potencial hídrico, por exemplo no Baixo Alentejo, com consequências para o licenciamento futuro de novos projetos”, conclui.
O ministério da tutela considera que o lançamento da nota interpretativa é “um contributo relevante para a concretização do potencial da fileira do hidrogénio renovável” mas reconhece, de certa forma, que é preciso mais, referindo que irá continuar a trabalhar em “estreita colaboração com as partes interessadas”, lê-se em comunicado.
Voltando ao processo em causa (cfr. a figura anterior), no início de junho p.p., o Relatório de Regulação da ANACOM, relativo a 2022 (pág. 158), resumia a informação publicada no website da ANACOM (que se pode consultar aqui) relativa ao referido processo. De acordo com os dados fornecidos pelo Regulador, tratou-se de uma das coimas mais elevadas de sempre, que, com o acréscimo das custas se aproximará de um milhão de euros e que foi aplicada num processo envolvendo 49 infrações relacionadas com o serviço de postos públicos. Porém, até à publicação da notícia na imprensa, nada se dizia sobre a data em que os factos ocorreram e que sabemos agora ter sido 2016. Esta foi, aliás, a segunda vez que a ANACOM sancionou a MEO por infrações relacionadas com o completamente obsoleto e quase extinto serviço de postos públicos. É curioso notar também que, no ano em iniciou este processo, a ANACOM concluiu um outro sobre a mesma matéria em que aplicou uma coima única de 200 mil euros (Cfr. Relatório de Regulação 2016, p. 137). Desta vez, tratou-se de um total de seis infrações – que não se sabe exatamente quando terão ocorrido. Sabemos, contudo, que a decisão foi impugnada e que o processo terminou em 2021, com a confirmação pelo Tribunal da Relação de Lisboa da absolvição da arguida decidida pelo TCRS. Um outro dado interessante é que estas foram apenas duas, de um total de 23 ocasiões, em que, nestes anos, o Regulador aplicou coimas pelo incumprimento de normas relativas ao Serviço Universal de comunicações. Aliás, acerca deste conceito, não deixa de ser interessante refletir sobre o seu ciclo de vida: nasce e ganha corpo num debate apaixonado sobre nobres objetivos que se propõe servir; depois de acalmada a discussão e implementado o serviço, vai desaparecendo gradualmente por manifesto desinteresse dos consumidores, mas, quando se volta a discutir a sua utilidade, acaba por se reinventar e renascer das próprias cinzas. Pelo meio, criam-se mecanismos complexos para o seu financiamento e a ANACOM vai vigiando a sua implementação. Assim, em 2015 (dois processos), 2016, 2020, 2021 (um processo por ano) e 2022 (14 processos), foram instaurados processos relativos a Postos Públicos, Tarifa Social de Internet e a outras matérias do Serviço Universal. A fase administrativa do processamento das contraordenações no setor das comunicações pela ANACOM, incluindo as comunicações postais, segue o processo definido no Regime Quadro das Contraordenações do Setor das Comunicações (Lei n.º 99/2009, de 04 de setembro). Este Regime Quadro aplica-se não só às infrações de normas da LCE, como das normas de alguns diplomas avulto relativos a aspetos particulares do quadro regulatório das comunicações eletrónicas (e.g., serviços de audiotexto), bem como, às sanções previstas pela violação de um conjunto alargado de outros diplomas relacionados que incluem comunicações postais, difusão, construção, acesso e instalação de redes e infra-estruturas (ITED) e, também, radiocomunicações. Este Regime Quadro aplica ainda subsidiariamente o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que instituiu o ilícito de mera ordenação social e o respetivo processo, para além do Código de Processo Penal. Grosso modo, o processamento das contraordenações pelo Regulador equivale à fase de inquérito em processo penal, o que não pode deixar de se ter em conta quando, como faremos de seguida, se analisam os prazos de pendência que, no julgamento atrás referido, tanto incomodaram o Ministério Público. O problema não é o facto deste processo em concreto ter levado seis anos a ser concluído, o que consideramos relevante é que, nos anos de 2017 a 2020, os prazos médios de pendência ultrapassaram os quatro anos, embora se registe uma melhoria desde então. Trata-se de uma questão relevante a considerar tendo em conta o aumento esperado de litigância para futuro. Face à lei anterior, a LCE de 2022, não só aumentou em 19% o número total de infrações puníveis, como, também passou a considerar 98% delas como graves ou muito graves para efeitos de determinação da coima. Na realidade, atualmente, 57% de todas as contraordenações previstas na LCE, são agora puníveis com coimas entre 20.000€ e 5.000.000€. O impacto da aplicação destas normas em matérias como os prazos de pendência não deixarão certamente de se fazer sentir. De acordo com as linhas orientadoras da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ), um dos indicadores que os Estados Membros devem apresentar sobre o seu sistema judicial é o Disposition Time (DT Indicator). Este mais não é do que a expressão em dias de calendário do rácio entre os processos que foram resolvidos e os que ficaram pendentes para o período seguinte (tipicamente o ano civil), ou seja, é uma estimativa da duração média de cada processo. Este indicador foi desenvolvido primordialmente para avaliar a gestão de processos em fase judicial e, como tal, entre nós, assim é usado pela Direção-Geral da Política de Justiça. Porém, nada impede que se aplique a mesma metodologia à análise da eficiência na gestão dos processos nas fases anteriores que – no caso vertente – é da responsabilidade das entidades reguladoras que, como a ANACOM, estão encarregadas de aplicar os regimes sancionatórios contraordenacionais. Sublinhamos, uma vez mais, naturalmente, que estas fases pré-judiciais têm exigências próprias que as fases de julgamento e de recurso já não têm, e.g., em matéria de recolha física de meios de prova. Nos anos de 2015 a 2022, a ANACOM indicou ter processado um número total de 4008 autos de notícia, dos quais 1924 deram origem a processos de contraordenação, tendo os remanescentes sido arquivados (38,9%).Figura 3 – Volume de autos de notícia e de processos instaurados (em nº de processos). Fonte: ANACOM, Relatórios de Regulação (Análise Macedo Vitorino). Tendo como base os dados disponibilizados pela ANACOM relativamente quer aos autos de notícia recebidos em cada ano, quer aos processos transitados e concluídos tornou-se possível fazer uma estimativa do DT Indicator. Assim, uma estimativa preliminar permitiu-nos apurar que, em termos médios, o DT Indicator dos processos contraordenacionais geridos pela ANACOM se fixou em 1133 dias, ou seja, 37,8 meses. Em 2019, portanto, no período pré-COVID, este indicador atingiu 1865 dias, ou seja 62,2 meses, ou, ainda, dito de outra forma, um pouco mais de cinco anos. Tratando-se de uma duração média, não surpreende, portanto, que, um processo que levou a uma das 10 maiores coimas que a ANACOM aplicou, tenha levado perto de 73 meses a ser concluído. De forma a permitir uma visão mais completa dos prazos de processamento das contraordenações, será ainda necessário juntar os dados relativos à impugnação judicial em primeira instância, neste caso, para o TCRS que, para o mesmo período apresentam um Disposition Time médio de 89 dias. Também aqui é necessário ter em conta dois elementos adicionais: o primeiro é que dos processos decididos pela ANACOM, 1071 (83%) resultaram em condenação em coima e sanções acessórias e que, destas, houve recurso para o TCRS em apenas 21% dos casos (cfr. figuras seguintes). O segundo aspeto, tem a ver com o facto de que os dados relativos à duração dos processos no TCRS dizem respeito a todos os processos (e não apenas aos oriundos da ANACOM). À falta de informação qualitativa mais detalhada, não é possível retirar conclusões sobre as causas que justificam estes prazos extremamente dilatados da fase administrativa do processamento das contraordenações, sobretudo por comparação com os de recurso em primeira instância. Trata-se de um debate que está por fazer, preferencialmente com mais elementos que seria interessante obter. Tendo em conta que a nova LCE, publicada em 2022, agravou consideravelmente o quadro sancionatório, a que se junta um aumento expressivo nos últimos anos do montante de coimas aplicadas (ainda à luz da anterior versão da LCE), é inequívoco que, como foi referido nas alegações do Ministério Público, prazos desta dimensão geram incerteza e têm um efeito pernicioso num mercado em que os operadores atuam num mercado em que a uma pressão concorrencial cada vez maior se junta um peso regulatório crescente. |
Joana Fuzeta da Ponte, advogada sénior da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião sobre sobre «Os Desafios da Nova Realidade do Teletrabalho», publicado hoje, a 9 de Junho de 2023.
Depois da implementação “forçada” pela pandemia Covid-19, muitas empresas optaram por manter o regime de teletrabalho, adaptando-o à realidade da sua organização.
A adoção deste regime, que já é uma realidade desde março de 2020, traz, naturalmente, novos desafios com a necessidade de implementação de diferentes regras, procedimentos e, acima de tudo, cautelas que têm de ser adotadas para, por um lado, garantir os principais interesses das empresas e, por outro lado, os direitos dos trabalhadores.
E de que desafios estamos a falar?
Desde logo, o teletrabalho suscita questões relacionadas com a adoção de meios de vigilância e controlos não admissíveis por lei, mas que são muitas vezes utilizados por parte das empresas. Embora, em regra, sejam inadmissíveis e caso sejam aplicados sujeitem as empresas a coimas cujos valores são muito elevados (podendo ultrapassar os €20 milhões), há quem continue a insistir na sua utilização. Um desafio complexo a resolver, mas que terá, certamente, de ser uma solução que, mais do que passar pela aplicação de coimas deverá permitir a utilização de meios de teletrabalho que garantam a privacidade do trabalhador.
Têm também sido suscitadas questões em torno do pagamento de despesas associadas ao teletrabalho. É expectável que, muito em breve, seja definido um valor máximo relativamente ao qual o pagamento de uma compensação de teletrabalho será isento de tributação caso sejam previstas em acordo entre as partes. Mas e se tal não acontecer? Pois, caso assim seja as empresas continuarão a ter dificuldades em saber quanto e quando devem pagar aos trabalhadores as designadas “despesas adicionais” pela prestação da atividade em teletrabalho. Para minimizar este problema, julga-se que deve ser adotado no seio da organização um Regulamento Interno que fixe procedimentos claros e objetivos a seguir pelos trabalhadores que pretendem reivindicar a despesa, bem como prazos a cumprir pela empresa para aprovação e pagamento da despesa.
Como também não poderia deixar de ser, naturalmente, que a lei expressamente prevê a obrigatoriedade de serem fornecidos instrumentos para a prestação em teletrabalho por parte da empresa. Mas de que instrumentos estamos a falar? Um trabalhador que utilize, regulamente, um computador pode exigir um equipamento com caraterísticas mais avançadas? Ou será que a empresa é obrigada a facultar-lhe um monitor e uma secretária? Consideramos que no próprio acordo de teletrabalho podem ficar definidos os instrumentos que as partes acordam que devem ser disponibilizados, tal como em sede de Regulamento Interno. No entanto, caso tal não aconteça, julgamos que deverá ser feita uma avaliação do caso concreto, procurando perceber quais os instrumentos realmente necessários para que um trabalhador médio desempenhe determinadas funções, não tendo a entidade empregadora o dever de fornecer tudo aquilo que o trabalhador solicite.
Por fim, e embora os desafios não se esgotem naturalmente nos aqui referidos, muita questão tem suscitado a necessidade de o teletrabalhador não ser “incomodado” no seu período repouso. Também para obviar a este desafio, nomeadamente quando com o envio de emails o trabalhador se possa sentir obrigado a responder a quaisquer horas, julgamos que as empresas devem adotar um “disclaimer” nos seus emails durante o período de repouso, no qual seja dada nota de que a mensagem não tem caráter urgente, pelo que o trabalhador não se deve sentir obrigado a responder fora do seu horário de trabalho.
Muitos mais desafios poderão vir a colocar-se o que será, certamente, um sinal positivo pois, tal só não aconteceria se o teletrabalho deixasse de ser uma realidade.
Em suma: o grande novo desafio está em encontrar um equilíbrio para responder às novas questões que o teletrabalho suscita à medida que é implementado, o que apenas se conseguirá tendo em consideração, por um lado, a conciliação entre a vida profissional e privada dos trabalhadores e, por outro lado, os interesses económicos das empresas.
Marco Claudino, Advogado e Consultor da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião no Jornal de Negócios, sobre «O IRS dos Municípios e dos Contribuintes não é do Fisco», publicado hoje, a 20 de abril de 2023.
No passado dia 14, o Jornal de Negócios noticiou que o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em decisão recente, considera que o Fisco se encontra a calcular de forma errada a participação variável do IRS que aos municípios cabe como receita.
Em breves palavras, desde 2007 os municípios têm direito, em cada ano, a uma participação variável de 5% do valor do IRS dos contribuintes residentes no seu território. E é exatamente variável porque podem os municípios decidir partilhar, no todo ou em parte, esse valor com os próprios munícipes. A Lei refere ainda que este valor é calculado sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no artigo 78.º do Código do IRS.
O Fisco tem entendido que embora integrem a coleta, os rendimentos não englobados devem ser excluídos do valor a considerar, uma vez que, sendo tributados autonomamente, não se lhes pode aplicar deduções. É uma tese que, com o devido respeito, não tem sustentação nem na letra da Lei (que refere claramente coleta) nem no seu espírito – trata-se de uma partilha de recursos entre o Estado e os Municípios na proporção de 95-5 e não numa dispensa de 5% por parte do Estado nos termos que a AT entende.
O impacto desta decisão é de várias centenas de milhões de euros. No Orçamento do Estado para 2023 o valor do IRS repartido para municípios e contribuintes ascende a 650 milhões de euros (ou seja, foi considerada uma coleta de 13 mil milhões de euros). Por seu turno, nos documentos de execução orçamental de 2021 – ano relativo aos valores distribuídos em 2023 – pode verificar-se que a receita do IRS é de 14.5 mil milhões de euros. Numa estimativa conservadora, se aplicada a fórmula de cálculo validada pelo CAAD teremos seguramente pelo menos uma diferença de mil milhões de euros no valor da coleta a considerar para esta repartição, o que equivalerá a 50 milhões de euros (correspondente a 5%) subtraídos aos municípios e aos contribuintes.
A Autoridade Tributária (AT) não recorreu da decisão. Embora, como dissemos, concordemos com o CAAD, entendemos que teria sido benéfico a existência de recurso. Na verdade, tratando-se, em nosso entender, de matéria com relevância jurídica e social fundamental, caberia inclusivamente recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo.
A análise pelo STA permitiria alcançar segurança jurídica e uniformidade. E, não menos importante, previsibilidade relativamente à atuação futura da AT.
Temos, reconhecemo-lo, receio que a decisão de não recurso da AT tenha tido como objetivo limitar danos ao caso concreto, mantendo para os demais processos a mesma interpretação.
Por isso, é essencial que o Sr. Ministro das Finanças, a quem cabe a tutela da AT e da Direção-Geral do Orçamento e a preservação de uma relação de confiança e lealdade com os contribuintes, não ignore este caso.
Não tendo havido recurso por parte da AT, as liquidações do IRS deste ano devem já ver refletidas a interpretação sufragada pelo CAAD. Mas mais, a AT de forma oficiosa não pode deixar de proceder à revisão das liquidações do IRS dos contribuintes residentes nos municípios que dispensaram no todo ou em parte o IRS respetivo. Deve fazê-lo relativamente aos últimos quatro anos (prazo para revisão dos atos tributários). No que concerne aos municípios, deve ser, desde já, determinada a retificação do Mapa do Orçamento do Estado que prevê as transferências para aquelas autarquias locais.
Adicionalmente, devem os municípios ser compensados relativamente ao valor indevidamente retido nos últimos anos e que lhes cabia por direito.
Caso assim não aconteça, o Estado, para além de não ser merecedor de confiança, estará a convidar
Municípios e Contribuintes à litigância e assim congestionar os já saturados tribunais administrativos e fiscais.
Esperemos que o Sr. Ministro das Finanças, que não pode dizer que não sabe nem conhece o caso, tome as decisões que se impõem!
As novas alterações ao Código do Trabalho, aprovadas pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, entram em vigor, na grande maioria, no dia 1 de maio de 2023.
É também nessa data que entra em vigor a polémica norma relativa à proibição de recurso ao outsourcing nos 12 meses posteriores a um processo de despedimento coletivo ou de extinção do posto de trabalho. De acordo com esta regra, de futuro, as empresas não poderão, no prazo de um ano, recorrer a serviços externos para assegurar o trabalho de quem foi objeto de despedimento coletivo ou de extinção do posto de trabalho.
Até ao último minuto empresas e confederações patronais tiveram a esperança de que esta norma ficasse pelo caminho e não constasse da Lei que aprova a Agenda do Trabalho Digno.
Sucede que isso não se verificou. A norma consta do novo artigo 338.-ºA da Lei n.º 13/2023, sob o título “Proibição do recurso à terceirização de serviços”. Apesar de aprovada, esta norma levanta muitas dúvidas legais, podendo, no limite, ser de constitucionalidade duvidosa.
Para a Assembleia da República esta é uma norma que visa proteger e combater a precariedade laboral; já para as empresas e confederações patronais esta é uma norma altamente limitadora da liberdade empresarial, chegando mesmo a ferir o direito constitucional da liberdade de iniciativa económica.
Ora, nos tempos que correm e que irão correr - em que as empresas necessitam de cada vez mais fazer restruturações empresariais -, proibir as empresas de recorrerem ao outsourcing pode ser contraproducente para o reforço da respetiva competitividade e eficiência. O recurso ao outsourcing permite que as empresas diminuam custos, pois quando uma empresa tem necessidade de fazer um despedimento (coletivo ou uma extinção de um posto de trabalho) e externalizar serviços é, claramente, salvo em situações de fraude, porque necessita de reduzir custos operacionais, sejam estes humanos ou em matéria de gestão de infraestruturas ou de equipamentos.
Proibir que uma empresa recorra à externalização de serviços numa altura em que atravessa dificuldades financeira pode ser, em muitos casos, uma medida penalizadora e prejudicial para as empresas e que, indiscutivelmente, limita a sua liberdade de atuação e de reorganização, podendo suscitar-se dúvidas quanto à sua constitucionalidade.
Além disso, a norma levanta ainda muitas dúvidas interpretativas.
Desde logo, ficamos na dúvida se a proibição afeta apenas as atividades principais da empresa ou se afeta qualquer tipo de serviços (como limpeza, refeitório ou segurança interna)? Em nossa opinião, a ser proibido, só o deveria ser para as atividades principais da empresa.
Surge ainda a dúvida do que acontece aos processos de outsourcing que ocorram em momento anterior a um despedimento coletivo (por exemplo uma semana antes)? Ou até mesmo do que acontece a este despedimento coletivo “colado” a um processo de outsourcing? É lícito ou ilícito? Se interpretamos literalmente a lei, a resposta é de que em momento anterior ao despedimento não há qualquer limitação de recurso ao outsourcing.
Questiona-se ainda se esta proibição de recurso ao outsourcing abrange os acordos de revogação que tenham tido por base o despedimento coletivo ou a extinção do posto de trabalho? Em nossa opinião, estes acordos não entram na equação e, portanto, a existência destes acordos de revogação não impede o posterior recurso ao outsourcing.
Em face do cenário exposto, acreditamos que, das duas uma: ou a norma relativa à proibição de outsourcing é objeto de fiscalização sucessiva junto do Tribunal Constitucional ou, não sendo e mantendo-se a atual norma nos exatos termos, teremos um incremento de litígios laborais.
Aguardamos, com expetativa, os próximos desenvolvimentos.