O tema da reindustrialização portuguesa não pode realmente ser visto separadamente do quadro bem mais vasto da reindustrialização da Europa ocidental. Dito isto, deve dizer-se que Portugal tem condições para poder afirmar-se como um espaço de inovação e de desenvolvimento de excelência nestes tempos desafiantes da 4.ª revolução industrial: tem infraestruturas; tem instituições de investigação e estabelecimentos de ensino de referência; é um espaço aberto ao mundo, de emigração e imigração cada vez mais qualificadas; é uma zona de segurança e acolhimento, de lazer e bem-estar; oferece força de trabalho e competências diversificadas e de qualidade, com notável capacidade de adaptação, resiliência e criatividade; tem acesso a uma plataforma continental vastíssima; oferece condições naturais belíssimas, tornando-o um destino de exceção para turismo e residência.

Portugal apresenta-se, pois, a priori, como um destino privilegiado quer de investimento direto, quer de estabelecimento de quadros qualificados quer, por fim, de quadros em fim de vida profissional ativa. Os dirigentes e centros de reflexão portugueses estão naturalmente cientes destas realidades e desafios.

Mais especificamente no referente a 2017, é justo dizer que o documento das Grandes Opções do Plano para 2017 não deixa de os abordar. Então, que razões impedem Portugal de crescer substancialmente mais, afirmando-se como o centro de reindustrialização que poderia e deveria ser? A meu ver, e para além quer da situação geográfica do país, quer dos fatores externos, devem destacar-se os seguintes fatores internos, alguns deles com raízes já muito profundas no tempo e que carecem de ser revertidos: (a) carga tributária incomportável; (b) incerteza jurídica; (c) sobrepeso do Estado, dos poderes públicos e do funcionalismo público na economia; (d) nível excessivo da dívida externa e situação delicada da banca nacional, ademais avessa a apoiar projetos verdadeiramente inovadores e disruptivos; (e) tradição do Estado e dos poderes públicos de intervir e pretender escolher sectores e atores privilegiados da atividade económica, em detrimento do mercado. E se é verdade que em anos recentes os portugueses conseguiram a proeza de uma saída limpa da situação de resgate financeiro e de absoluta dependência das instituições internacionais, em grande medida por via de um esforço de contração do Estado e dos poderes públicos e por efeito de um acelerado e eficaz redireccionamento do sector privado para a produção de bens transacionáveis, a verdade é que hoje, em 2017, por via da ação de um Governo refém de partidos políticos de assumida orientação estatista e socializante, os sinais positivos começam infelizmente a perder-se, com a dívida externa a aumentar por contrapartida do aumento da despesa corrente do Estado e do consumo privado e com os juros da dívida pública a regressarem a níveis preocupantes.

 

Mais de dois anos volvidos sobre a resolução do BES, continuamos sem saber qual será o futuro do Novo Banco. Anunciada por três vezes a venda, primeiro para agosto de 2015, depois para agosto de 2016 e por fim para dezembro de 2016, nada aconteceu.

Pior, os potenciais candidatos à compra foram descendo o valor oferecido. Primeiro os chineses da Fosun, diz-se, terão oferecido 2.000 milhões de euros, oferta rejeitada pelo governo anterior por implicar uma perda de parte do montante investido em 2014, 4.900 milhões, o que não convinha com as eleições à porta.

Depois disso o Banco de Portugal imporia uma segunda medida de resolução, libertando o banco de pagar cerca de 2.000 milhões à custa de um pequeno grupo de obrigacionistas “sénior”.

Em novembro de 2016 noticiava-se o interesse de uma firma chinesa que não lograria avançar com as garantias exigidas pelo Banco de Portugal. Em fevereiro de 2017, está na mesa uma oferta da Lone Star no valor que consta ser de 750 milhões de euros ou mesmo inferior. Entretanto, as partes teriam negociado a redução do preço para um valor meramente simbólico, abdicando o comprador da exigência de garantia do Estado contra o risco associado ao chamado “side bank” do Novo Banco, ou seja os ativos não rentáveis que estão registados no seu balanço. Este risco resultaria de estes ativos – nomeadamente imóveis – poderem valer menos do que o valor que lhes é atribuído no balanço, não obstante entretanto terem sido registadas imparidades significativas.

“Nacionalize-se o Novo Banco” clamam os partidos da extrema esquerda. 30 anos depois do 11 de março de 75, ainda há quem queira nacionalizar a banca. O partido no governo sugeriu uma nacionalização “temporária”. O uso da palavra “temporária” não é despiciendo porque permite dizer aos democratas que a economia de mercado não acabou e que o Estado apenas intervém porque tem de o fazer e não porque concorde com a ideologia dos seus parceiros da coligação. A outra razão está na lei. O Governo sabe que a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu não permitirão a nacionalização de um banco, em particular de um país pequeno como Portugal, triste cobaia na implementação da mais avançada legislação bancária europeia. Afinal, Portugal não é a Itália. Apenas a nacionalização “temporária” é permitida pelas leis de resolução bancária europeias. Daí o uso dessa palavra.

A verdade, porém, é que a lei apenas permite a “nacionalização temporária” como medida de “resolução” bancária, ou seja, se o Novo Banco estiver insolvente ou perto disso e o sistema bancário estiver em risco. Ora não é isso que sucede ou, pelo menos, não é isso que nos dizem.

Quais são, então, as opções possíveis?

Primeiro, o Fundo de Resolução poderia vender o banco a um dos fundos privados que se ofereceram para o comprar, dando as garantias sobre aquilo que for razoável dar, ou seja, faz sentido dar garantias sobre a legalidade e validade do processo de resolução e que o comprador e o banco não correrão riscos relativos aos lesados e aos obrigacionistas sénior, mas não faz sentido dar garantias relativas ao negócio do banco, a sua carteira de crédito, imparidades passadas ou futuras, reconhecidas ou não nas contas do banco. O verdadeiro problema desta solução está no preço que é oferecido, manifestamente abaixo do valor real e potencial do banco. O valor de mercado é baixo porque, em geral, os bancos são, nos dias que correm, um mau negócio, tal o nível de regulação imposto e os requisitos de capital. Os bancos terão valor no futuro quando se adaptarem às novas regras e à nova realidade de um mercado com menos crédito bancário. Para já não é assim, pelo que poucos são os que se aventuram a ter de esperar o tempo necessário para que a banca volte à mó de cima. Tudo isto faz com que Lone Star procure fazer descer o preço tanto quanto o vendedor deixar. O comprador do Novo Banco fará um grande negócio e o Estado um péssimo negócio.

Segundo, o Fundo de Resolução poderia liquidar o Novo Banco. O valor dos ativos do banco é suficiente para pagar a todos os credores e ainda sobra um valor significativo para reembolsar parte do capital investido em 2014. Contudo, esta solução não é politicamente aceitável e, em Portugal, o Estado faz maus negócios quando se trata de gerir ativos bancários como o caso BPN demonstra sobejamente.

Terceiro, o Estado poderia optar por enfrentar as autoridades europeias e nacionalizar o Novo Banco, temporária ou definitivamente, como pretendem as esquerdas e, claro, os outros banqueiros, pois não há melhor maneira de assim libertar os outros bancos dos prejuízos da venda ou liquidação. Como quase sempre, a nossa extrema esquerda e os interesses dominantes (mesmo os dos banqueiros) estão de mão dada. Esta é, sem dúvida a pior solução para o contribuinte que se arriscaria a ficar com um novo BPN. O bom da resolução do BES foi fazer impender a responsabilidade sobre os bancos e não sobre os contribuintes. É verdade que os bancos nos farão pagar a fatura em comissões e outras coisas, mas eu cá prefiro isso a que o Estado vá ao bolso do contribuinte.

Posto isto, parece que estamos entre a espada e a parede, vender ao desbarato ou liquidar serão sempre más soluções.

Existem alternativas? Sim. O Estado poderia negociar com a União Europeia e adiar a venda total, fazendo uma venda parcial a um parceiro estratégico, que poderia ser a Lone Star, e dispersar o capital em bolsa depois de reestruturar o Novo Banco quando o negócio bancário for mais atrativo, o que mais tarde ou mais cedo há de acontecer.

O Estado poderia ainda negociar a conversão em capital da divida sénior de grandes investidores, cedendo-lhes assim uma parte significativa do banco. Dessa forma, garantir-se-ia a capitalização do banco, a redução da dívida e a entrada de parceiros privados. Certamente, os grandes credores não aceitariam de bom grado essa solução, mas face às perdas já incorridas e à perspetiva de uma nova resolução ou mesmo da liquidação, essa solução ser-lhes-ia certamente menos penosa.

Em suma, o processo de resolução do BES, ainda que muito imperfeito, foi a solução menos custosa para o erário público e sê-lo-á sempre se não se cair nas derivas da esquerda, mas não se pode gerir a venda de um banco da forma amadora e voluntarista. O interesse público será sempre melhor defendido se os governos compreenderem bem como funcionam os mercados, seja o mercado da Ribeira, o mercado do Bulhão ou Wall Street.

2017-02-20

A abrir o ano, parece ter-se gerado consenso político no Parlamento para baixar as custas judiciais, ou seja, as taxas que é necessário pagar para ir a Tribunal.

As comparações internacionais sugerem que Portugal tem custas judiciais bastante baixas. O estudo ‘Doing Business 2017’ do Banco Mundial, que mede a facilidade das empresas em fazer negócios, classifica Portugal como o terceiro país da União Europeia, atrás do Luxemburgo e da Eslovénia, com os custos de litigância (incluindo custas judiciais) mais baixos. Ao mesmo tempo, as estatísticas demonstram que o atual sistema de custas judiciais, vigente desde 2008, não implicou uma diminuição acentuada do recurso aos Tribunais por parte de cidadãos e empresas.

Por essas razões, uma descida generalizada das custas judiciais pode, em muitos casos, não ser necessária e até ter efeitos perversos, resultando num congestionamento maior dos Tribunais e num tempo decisão acrescido. O que poderá ser desastroso: em 2015 o tempo médio de decisão em processos cíveis foi de uns assustadores 32 meses.

Qualquer alteração no valor das custas judiciais afeta a procura do serviço dos Tribunais. Como indicou o Professor Nuno Garoupa em artigo recente (DN, 31/1/2017), o que é necessário é determinar que modelo de Tribunais e que tempos de resposta queremos ter. Só é possível fazê-lo através de análise séria e cuidada e debate informado. Por agora, contribuindo para esse debate, é mais útil destacar alguns pontos que devem ser revistos.

Em primeiro lugar, deveria existir um limite às custas judiciais. Atualmente, não há. Quanto mais elevado o valor do litígio, mais elevado o montante de custas. Para um litígio de € 10 M, os custos totais para quem perde serão de cerca de € 300.000,00, (incluindo pagamento das custas pagas pela parte vencedora e compensação da parte vencedora por despesas com advogado). E este montante não inclui honorários de advogado da parte perdedora. O Juiz do processo pode determinar um desconto nestas situações. Mas essa possibilidade não atenua este problema: o desconto nem sempre é concedido e depende do entendimento de cada Juiz. Custas judiciais sem limite acabam por ser naturalmente desproporcionadas face ao serviço de justiça prestado pelo Tribunal e completamente desajustadas da realidade portuguesa.

Em segundo lugar, nos litígios que envolvam a vida das pessoas, como, por exemplo, divórcios ou regulação de responsabilidades parentais, as custas judiciais poderão ser, no mínimo, de cerca de € 600,00 para cada parte, não contando com honorários de advogados. Trata-se de valores incomportáveis para uma camada significativa da população. E que impressionam quando comparados com a inexistência de custas judiciais para cidadãos que vigora em Espanha. Não significa que estas custas judiciais devam ser eliminadas. Mas sim que deverão ser analisadas cuidadosamente, questionando a existência de custas iguais para cidadãos e empresas, e tentando isolar litígios pessoais deste tipo que mereçam um tratamento diferenciado.

No fundo, o consenso político em torno da descida generalizada das custas judiciais não se pode concretizar apenas numa descida generalizada das custas judiciais, sem ponderar os impactos na procura do sistema judicial e o modelo de Tribunais que queremos ter. Se assim for, acabaremos por daqui a uns anos estar a discutir a subida generalizada das custas judiciais. E é fácil perceber que isso é não sair do mesmo sítio.

 

2017-02-17

25 de maio de 2018. Falta, portanto, pouco mais de um ano para o início da vigência do Novo Regulamento Geral de Proteção de Dados em Portugal (“Regulamento”), pelo que começa a ser necessário traçar caminho no sentido da sua implementação - no caso de tal ainda não ter acontecido - até porque (ou principalmente porque) não será de um dia para o outro que a maior parte das regras aí previstas poderão ser postas em prática, pelas empresas.

A contratação de um “DPO”, por exemplo (“Data Protection Officer”, ou ”Encarregado de proteção de dados”), pode não ser tarefa fácil, já que os requisitos atinentes ao cargo são de tal forma específicos que poderão encontrar dificuldade de resposta, no nosso mercado de trabalho.

De acordo com o Regulamento, o DPO deve ser designado com base nas suas qualidades profissionais e, em especial, “nos conhecimentos especializados no domínio do direito e das práticas de proteção de dados”. Não se exige que seja um advogado, mas terá que ser alguém que, por um lado, tenha conhecimentos jurídicos relativamente vastos na área da proteção de dados e que, por outro lado, detenha comprovada experiência em lidar, na prática, com esta mesma matéria.

O DPO a designar terá também que ser alguém com capacidade para informar/ aconselhar a Administração da empresa e os seus trabalhadores a respeito das obrigações constantes do Regulamento, assim como das outras disposições de proteção de dados em vigor na UE e noutros Estados-Membros.

A pessoa deverá, pois, não só saber como ter capacidade para ensinar. A lei não exige um certificado ou diploma em formação de formadores, mas sem dúvida que se pretende que a pessoa designada tenha habilidade para comunicar, expor as suas ideias quer aos trabalhadores como à Direção e, efetivamente, fazer-se entender por todos os membros da empresa, que deverão ver no DPO alguém a quem podem recorrer, caso tenham alguma dúvida relacionada com o tratamento de dados.

Associada a esta exigência, surge igualmente a necessidade de conhecer a organização. E quando falamos em conhecer, não nos referimos a um conhecimento supérfluo, de quem entrou nas instalações e assistiu a um briefing sobre a atividade da empresa: a pessoa deverá conhecer os procedimentos de cada departamento, ser posta a par acerca dos mecanismos existentes (ou inexistentes) destinados à proteção dos dados pessoais de trabalhadores e de clientes e inteirar-se da vida da empresa, de forma a poder “organizá-la”, transmitindo as necessárias diretivas aos trabalhadores que integram a estrutura. É também nesse sentido que o Regulamento prevê que a empresa deve assegurar que o DPO é “envolvido, de forma adequada e em tempo útil”, em todas as questões relacionadas com a proteção de dados pessoais e que lhe devem fornecer os “recursos necessários” para o desempenho das suas funções.

Ao DPO exige-se também que controle a conformidade dos procedimentos adotados pela empresa com o Regulamento e com a restante legislação de proteção de dados e que coopere com a autoridade de controlo (CNPD) para assegurar o cumprimento da mesma.

Um DPO tem, portanto, que ser firme, já que deve poder discutir todas as questões relacionadas com privacidade a um nível superior - um papel que pode exigir dizer aos membros do Conselho de Administração coisas que eles não querem ouvir.

Deve também ser alguém que possa agir de forma independente e que seja capaz de manter uma ligação segura com a Comissão Nacional de Proteção de Dados, se necessário. Muito embora o Regulamento preveja que a empresa deve assegurar que o DPO não recebe instruções relativamente ao exercício das suas funções e que não pode ser destituído nem penalizado pelo exercício das mesmas, e sendo certo que existem países, como a Alemanha, em que o papel do DPO já se tem revelado como bastante independente, interventivo e denunciador, sem medo de informar o regulador acerca da não-conformidade da sua organização, surgem-nos algumas dúvidas acerca do sucesso da transposição deste cenário para o mercado português, com todas as diferenças culturais (e económicas) que o nosso país tem, em relação a outros países europeus. E se o Regulamento deixa à consideração da empresa contratar um DPO através de contrato de trabalho ou de prestação de serviços, claro nos parece que os deveres de lealdade e obediência característicos de uma relação laboral não se coadunam com o necessário papel de “denunciador” que um DPO pode ter que desempenhar, em relação à própria organização.

Do mesmo modo, apesar de o Regulamento estabelecer que o DPO pode ter outras funções na organização (cabendo à empresa assegurar a inexistência de conflito de interesses), parece-nos mais eficaz a designação de uma pessoa exclusivamente dedicada a esta função, que se consiga articular com os diferentes departamentos (IT, marketing, RH, jurídico, entre os demais) do que alguém que, a par da função de DPO tenha uma outra atividade.

O DPO deve também prestar aconselhamento sobre as avaliações de impacto sobre a proteção de dados e controlar a realização das mesmas. Assim, caso certo tipo de tratamento de dados pessoais seja suscetível de implicar um elevado risco para os direitos e liberdades das pessoas singulares, deve ser sujeito à emissão de um Parecer, por parte do DPO, acerca da avaliação do respetivo impacto sobre a proteção dos dados.

O DPO deve também promover a realização de auditorias para avaliação de todos os dados pessoais detidos pela empresa e verificação de que a sua detenção é apta para o fim a que se destina; deve rever os contratos existentes, avaliar o impacto de medidas previstas no Regulamento como sejam a Portabilidade dos Dados e o Direito ao Esquecimento e, enfim, ser capaz de tomar uma série de medidas que lhe permitam atuar como o defensor da privacidade dos dados da empresa, dos trabalhadores, dos clientes e/ou consumidores. Com todos os requisitos que se exigem de um DPO, um dos maiores desafios para as empresas, pelo menos inicialmente, talvez seja mesmo encontrar um.

 

(1) Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril, publicado em 04 de maio de 2016

No primeiro artigo que escrevi no mês passado para o Dinheiro Vivo sobre o tema do “Networking” e que poderá encontrar no link https://www.dinheirovivo.pt/opiniao/networking-i-um-pensamento-out-of-the-box/
tentei passar a mensagem principal de que uma boa rede de networking é muito mais do que uma simples rede de contactos.

Para podermos elevar e maximizar o retorno do nosso investimento na construção de tal rede, é imperativo, como então referi, que o objectivo seja o de idealizar, construir, alimentar, expandir e utilizar uma rede de “relacionamentos”.
Desta forma, não só como uma ilustração e abordagem simplista mas também com o objectivo de provocar intelectualmente o leitor, usei a agricultura e a contabilidade como referências comparativas inerentes a esse modelo de construção, em que a primeira (agricultura) pretende lembrar-nos o “tempo” implícito a tal investimento e o segundo (a contabilidade) pretende trazer-nos as referências necessárias sobre o “equilíbrio” na gestão dessa mesma rede.
Ora, é exactamente sobre este segundo aspecto que o artigo de hoje pretende de forma breve tratar…

Um dos aspectos mais relevantes (não será com certeza o único, mas é sem dúvida um dos alicerces fundamentais deste edifício) na construção de uma boa rede de networking é a honestidade intelectual e a disponibilidade altruísta que deve existir não só na génese da estratégia de abordagem aos nossos contactos, assim como durante a vida dos relacionamentos dos mesmos que se pretendem criar e alimentar.

É esta a razão do título do nosso artigo de hoje.

Se queremos ter sucesso na criação de uma boa rede de networking devemos ter como base a criação de uma relação verdadeiramente “interessada” e não apenas e somente uma relação “interesseira” com os nossos contactos.

Alguns académicos e estudiosos deste tema por esse mundo fora, têm vindo a catalogar esta última como aquilo a que apelidam de “networking transaccional” (https://hbr.org/2015/03/the-right-and-wrong-way-to-network) em que a intenção de criar uma relação apenas e somente como uma pura troca mercantil, mais tarde ou mais cedo será uma estratégia e/ou acção condenada ao fracasso.

Em sentido contrário, a criação de uma relação verdadeiramente interessada ou aquilo a que alguns tentam traduzir como uma filosofia de “givers gain”, assenta no conceito de que quanto mais oferecemos de nós, mais possibilidades temos também de receber… e é exactamente isso o objectivo de todos que interagem no(s) universo(s) que vamos criando à nossa volta.

Como é óbvio, na gestão da nossa rede de networking será natural que algum fruto dela se pretenda retirar. Contudo é importante referir que apesar dessa necessidade ou desejo estar quase sempre presente, haverá a necessidade de providenciar um ambiente de reciprocidade em que os ganhos e proveitos dessa relação possam ser mútuos ainda que não coincidentes, no tempo, espaço ou valor tangível ou intangível dos mesmos.

Por outro lado, senão cuidarmos desse equilíbrio na gestão dos nossos relacionamentos, dificilmente conseguiremos uma boa e produtiva rede de networking, na medida em que por muitos novos contactos que possamos desenvolver, dificilmente uma rede minimamente relevante será criada se não soubermos cuidar dos anteriores.

Resumindo, expressões ou formas de tentar verbalizar esta postura que nos deve guiar permanentemente na criação da nossa rede de networking poderão ser múltiplas.
Sobre o que não poderá haver duvida alguma é de que não é possível criar esse mundo de relacionamentos e seu retorno desejado, em que o sinal positivo, em que o sinal positivo dos mesmos seja meramente unidireccional e que o lançamento a crédito seja feito sempre a nosso favor (isto para usar a linguagem contabilística do nosso primeiro artigo)... e esta questão levar-nos-á a falar da criação de uma proposta de valor como base de uma estratégia pessoal na construção e alimentação de uma boa rede de networking, mas sobre tais temas falaremos nos nossos próximos artigos ao longo do corrente ano.

2017-02-11
Guilherme Dray

A recente decisão do US Court of Appeals for the Ninth Circuit, de 9 de fevereiro 2017, que manteve e confirmou a suspensão temporária da Executive Order n.º 13769, “Protecting the Nation From Foreign Terrorist Entry into the United States”, do Presidente Donald J. Trump, que impedia o acesso aos EUA de nacionais de sete países islâmicos, é também uma vitória da Academia e da Ciência contra o retrocesso académico e científico.

Com efeito, apesar de sustentar juridicamente a sua decisão no facto de a Executive Order ser inconstitucional, por violar a 1.ª Emenda (quanto à liberdade religiosa) e a 5.ª Emenda constitucionais (quanto à necessidade de um due process of law para a restrição de direitos, liberdades e garantias), grande parte da decisão deste tribunal de recurso assenta na legitimidade processual dos Estados de Washington e do Minnesota para intentar uma providência cautelar contra a referida Executive Order presidencial. Ora, o principal argumento utilizado pelos referidos Estados para justificar a sua legitimidade processual foi o de que a manutenção daquela Executive Order seria gravemente prejudicial para as suas universidades. No essencial, os Estados reclamantes invocaram que ao banir a entrada no país de nacionais de sete países islâmicos – Iraque, Irão, Líbia, Somália, Sudão, Síria e Iémen - a referida Executive Order era gravemente prejudicial para as universidades norte-americanas, fortemente centradas na internacionalização e no acolhimento de estudantes, investigadores e professores de diversas nacionalidades, religiões e culturas. O argumento é lapidar: ao banir a entrada no país de estudantes, professores e investigadores de determinados países, a Executive Order prejudica fortemente as universidades, que passam a ficar impedidas de escolher e atrair os cérebros daqueles países, como sempre o fizeram no passado. Em concreto, os Estados alegaram que os efeitos produzidos por aquela ordem presidencial já estavam a causar prejuízo para as respetivas universidades, pois a mesma impediu, nomeadamente, no dia seguinte ao da sua entrada em vigor, a entrada no país de dois visiting scholars para a Washington State University e de três investigadores, dois médicos e três cientistas que iriam ser acolhidos pela University of Washington e que também já tinham viagens agendadas para os Estados Unidos. O Estado de Washington alegou, em suma, que “ambas as universidades têm um compromisso internacional e que para o efeito necessitam de acolher estudantes, investigadores e professores internacionais”, objetivo esse que é incompatível com a criação de barreiras à entrada de estrangeiros. De resto, os argumentos invocados pelos Estados de Washington e do Minnesota replicam e fazem eco do que tem sido reclamado e reivindicado nestes últimos dias pela generalidade da comunidade académica, científica e tecnológica estado-unidense: o segredo do seu sucesso, o facto de ocuparem sucessiva e reiteradamente os primeiros lugares do ranking mundial, a riqueza do seu sistema educativo e o progresso científico e tecnológico que os Estados Unidos e as suas empresas têm logrado alcançar assenta também na diversidade cultural, na internacionalização e na capacidade de atrair estudantes, académicos, cientistas e investigadores estrangeiros. Impedir as universidades e as empresas de escolherem livremente os melhores e mais habilitados apenas porque aqueles provêm de países eminentemente islâmicos ou de qualquer outra religião, para além de ser discriminatório, vai contra o que aquelas instituições e empresas preconizam, podendo pôr em causa a sua estratégia de globalização.

O ambiente académico e científico estado-unidense vive da criatividade e da diversidade e partilha de opiniões e conhecimentos de diversos quadrantes. É essa a chave do seu sucesso. E é assim que as sociedades progridem e evoluem. Assim, o que esta decisão judicial vem reiterar, portanto, é que grande parte do sucesso académico, cultural, científico e tecnológico dos EUA se centra na abertura, na tolerância e na natureza intercultural das suas universidades e centros de investigação. Mais do que afirmar a liberdade religiosa, a proibição de discriminação em função de convicções religiosas e a necessidade de um due process of law para efeitos de limitação de quaisquer direitos, liberdades e garantias, o que a recente decisão jurisprudencial vem fazer, também, é afirmar a vitória da Academia e da Ciência contra o obscurantismo e o retrocesso científico.

Washington D.C., fevereiro de 2017

 

Poderá aqui aceder à decisão judicial que confirmou a suspensão da executive order.
Independentemente de se concordar ou não com a decisão, impressiona a simplicidade da fundamentação.

 

O que a agricultura e a contabilidade têm em comum com o networking?

Este é o primeiro artigo de uma mini-estrutura de dez textos que escreverei mensalmente durante o ano de 2017 para o Dinheiro Vivo sobre o tema do Networking.

A ideia é tentar aqui, de forma resumida e compactada, transmitir ao longo dos próximos meses algum do conhecimento e trabalho desenvolvido na Universidade sobre este tema ainda tão pouco trabalhado de forma científica, mas com tão grande impacto na nossa vida pessoal e principalmente profissional nos dias que hoje correm.

Ao leitor, tentaremos que a presente rubrica ao longo do corrente ano o possa fazer reflectir, conhecer e dominar (e até discordar) alguns princípios de networking, assim como possa ajudá-lo a idealizar, construir, alimentar, expandir e utilizar rede de contactos, transformá-los em “relacionamentos”, adaptando as características pessoais e profissionais de cada um, através de uma estratégia personalizada, com o objectivo de obter ganhos de sinergias de escala, descoberta de melhores soluções de negócio e oportunidades profissionais.

Com efeito esta será a primeira ideia transversal a todos os artigos que se escreverão - A criação de uma (boa) rede de networking tem como implícita uma boa rede de relacionamentos e não (apenas) uma boa rede de contactos.

Ora, a pergunta inerente ao título do presente artigo é em si não só uma pequena provocação, mas também e principalmente, uma tentativa de simplificação do conceito e daquilo que entendo como fundamental no networking e na criação de uma “rede de relacionamentos”.

Claro está que outros conceitos, fundamentos e analogias poderão ser feitas ao tratamento do tema em curso, mas acredito que na génese de todos os (bons) resultados que qualquer um de nós pretende obter do seu networking alguns dos fundamentos básicos da Agricultura e da Contabilidade são indispensáveis para o objectivo em causa.

Isto porque nada mais simples e terreno para ilustrar a necessidade de saber tratar da nossa rede do que a agricultura, na medida em que qualquer lavrador ou engenheiro agrónomo (por mais ciência e químicos que o ajudem ao aproveitamento da terra e sua cultura intensiva) sabe que para “colher” há primeiro que semear, cultivar, tratar e cuidar.

Se pretendemos criar uma verdadeira rede de networking que possa criar valor para o sujeito e/ou para as organizações de que fazemos parte, é necessário saber investir o nosso precioso tempo em cada uma das relações em causa.

Contudo ao investir esse tempo há que fazê-lo de forma sincera e com equilíbrio… e daqui a referência à contabilidade.

Isto porque qualquer contabilista sabe que qualquer empresa, actividade ou organização para ser saudável tem que ter um balanço em que o crédito é maior que o débito, em que o deve é inferior ao haver, em que temos superavit e não deficit…e os mesmos princípios devem ser aplicados à criação de uma rede de relacionamentos.

Não é possível criar uma boa e verdadeira rede de networking em que as pessoas com quem nos relacionamos ou pretendemos relacionar estejam sempre e constantemente a ser alvos dos nossos pedidos, propostas e/ou solicitações. No fundo, em que o sinal positivo desse relacionamento apenas tenha um só sentido, um só fluxo. 

Direi mesmo, mais do que um balanço “nulo” o ideal é que entre aquilo que possamos “dever” aqueles com quem nos relacionamos possamos estar sempre numa posição confortável em que o valor do “haver” seja superior. Desde que tal seja feito de forma sincera e interessada deixar-nos-á sempre numa posição privilegiada e confortável na activação da nossa rede de relacionamentos.   

2017-01-06
Estela Guerra

O boom das startups e a incerteza sobre o sucesso do negócio tornam hoje atual o regime jurídico das sociedades irregulares previsto no Código das Sociedade Comerciais. Imaginemos que dois ou mais colegas, com a intenção de constituir uma sociedade, começam a desenvolver uma atividade comercial (é o caso de muitas startups nas suas “early and seed stages”). Para estes casos, existe a sociedade irregular, com um regime próprio para aquelas sociedades que ainda não se encontram plenamente constituídas.

Desde logo, o nome da sociedade irregular pode ser composto pelo nome dos seus sócios, sendo, no entanto, possível optar por um nome distinto, requerendo um certificado de admissibilidade de denominação social, e assim proteger temporariamente o nome escolhido.

Nesta fase, os sócios poderão ainda celebrar um acordo de fundadores (do inglês founders agreement mas que corresponde a um acordo parassocial), visando regular alguns aspetos das suas relações internas e ainda acordarem os termos da constituição da futura sociedade (p. ex. a percentagem de um futuro capital que há de pertencer a cada um dos fundadores e que poderá ser distribuída por futuros investidores ou colaboradores). 

Na falta de qualquer acordo de fundadores: (i) todos os sócios são administradores da sociedade irregular, podendo qualquer um deles se opor ao ato que outro pretenda realizar; (ii) é necessária autorização expressa dos sócios para o exercício de atividade concorrente ou para usar bens da sociedade para fins que lhe sejam alheios; e (iii) cada sócio participa nos lucros e perdas da sociedade na proporção da sua entrada para o património da sociedade.

Por outro lado, os sócios podem celebrar negócios em nome da sociedade irregular (p. ex. contratos de arrendamento, contratos de fornecimento e de aquisição de bens e serviços, e ainda contratos de trabalho). É, no entanto, necessário lembrarmo-nos que, ao contrário do que acontece com as sociedades anónimas e por quotas, os sócios podem responder por dívidas da sociedade irregular, sempre que o património desta seja insuficiente para cumprir as suas obrigações.

Para o desenvolvimento da atividade de uma startup, é ainda necessário que alguém trabalhe na implementação da ideia. Os fundadores são, por regra, os primeiros a entrar com a “mão de obra”, pois não constituem encargos financeiros para o projeto.  A par dos fundadores, a sociedade irregular pode ainda chamar ao projeto outros empreendedores, que contribuem com o seu know-how, em troca de uma participação social na futura sociedade (o chamado negócio participativo); contratar determinados serviços a terceiros ou ainda contratar trabalhadores.

Para a realização de tarefas de natureza temporária e para as situações em que não se pretende, entre outras, a fixação de obrigações de exclusividade e de fixação de horário, a figura do contrato de prestação de serviços é a mais adequada. A opção por este regime legal tornará a relação contratual mais “leve”, libertando a sociedade de uma série de obrigações e custos resultantes de um contrato de trabalho (p. ex. pagamento do subsídio de Natal e de férias; seguro de acidentes de trabalho; contribuições para a Segurança Social; e a liberdade de revogação do contrato de prestação de serviços sem o pagamento de qualquer indemnização).

Caso se pretenda que a pessoa contratada fique sujeita à disciplina da sociedade e cumpra instruções e ordens dos fundadores, dentro de um horário predefinido, deverá optar-se pela celebração de contratos de trabalho que, nesta fase, deverão ser celebrados a prazo certo sempre que as tarefas sejam elas também temporárias. Em termos fiscais, as sociedades irregulares podem ser reconhecidas como sujeitos passivos pela Autoridade Tributária. Para tal, é necessário que os sócios solicitem a atribuição de um número próprio para a sociedade (Número de Identificação da Pessoa Coletiva) e que declarem o início da atividade da sociedade nas Finanças.

Os sócios poderão, assim, imputar os custos em que incorram no exercício da atividade à sociedade, não os suportando a título pessoal. Porém, é essencial que as despesas sejam realizadas em nome da sociedade, sob pena de não se conseguir imputar a totalidade dos custos suportados.

Importa, também, não esquecer que a sociedade irregular está sujeita às obrigações fiscais de uma sociedade regularmente constituída, o que implicará a sua tributação em sede de IRC e demais obrigações declarativas, respondendo os seus sócios diretamente perante a Autoridade Tributária.

A sociedade irregular surge, assim, como um instituto que permite aos sócios verificarem a viabilidade dos seus projetos numa fase em que já tiveram de praticar atos jurídicos, como a compra de bens e a constatação de serviços. A partir do momento em que esses atos impliquem incorrer em encargos de custo e risco elevados ou quando for necessário o recurso a financiamentos públicos e privados, os sócios deverão ponderar completar o processo de constituir formalmente uma sociedade com os benefícios da limitação da responsabilidade que ela implica.

Muito se disse e escreveu sobre a eleição de Trump, a vitória do Brexit, a ascensão dos extremismos e dos populismos por essa Europa fora. Em Portugal, porque somos um povo de brandos costumes, temos a nossa “geringonça” que tem a sua quota de extrema esquerda com a anunciada agenda marxista. O que todos estes extremismos têm em comum é a aversão à mudança e o desejo de regressar a um passado, cuja recordação parece ser como uma daquelas nossas memórias de infância, sempre dourada e doce. É o horror à globalização, à perda de direitos e regalias dados como adquiridos, o pavor do que é estranho ou estrangeiro, o ódio aos ricos, a ameaça de um mundo novo que advém do acelerar do desenvolvimento tecnológico e que nos obriga a fazer coisas novas e diferentes e nos retira o conforto e a confiança nas receitas do passado.

O pasto para as demagogias está viçoso: são os desempregados, os jovens sem esperança de um futuro melhor, os aposentados que perdem direitos, os funcionários públicos que sentem os seus lugares e modo de vida ameaçados. Mesmo aqueles que trabalham e fazem coisas novas vivem vergados sob o peso dos impostos e das ameaças de ajuste de contas que paira sobre eles.

Estes são os sintomas da doença que se apoderou das democracias ocidentais. De repente, sem darmos por isso ou sem darmos importância, regressámos a um discurso de ódio e confronto e às irrealizáveis promessas de prosperidade e bem-estar sem fim. A demagogia sempre viveu paredes meias com a democracia porque sempre houve quem prometesse mais do que pudesse dar e porque só em casos muito excecionais quem disse toda a verdade triunfou pelo voto. No passado os partidos faziam equilibrismo, procurando cumprir os seus programas políticos sem arruinar o Estado, sem subverter os valores fundamentais da democracia. Entretanto a política profissionalizou-se. É hoje uma carreira, onde o único objetivo é tomar o poder e viver à conta do Estado, satisfazendo as suas longas clientelas. Os melhores fogem da política onde são perseguidos e vilipendiados nas redes sociais e nos comentários anónimos e sem sanção às noticias publicadas pela comunicação social. Hoje vale tudo em política. Os extremistas são os únicos que se mantêm fiéis à sua ideologia, sejam ela de esquerda ou de direita.

A democracia está doente. Os demagogos eleitos tomam o poder em vários lugares do mundo. Para onde nos levam não sabemos, mas podemos adivinhar. Todas as demagogias começam o seu trabalho por reescrever a história para que os anteriores governantes sejam vistos como abomináveis e os novos chefes endeusados para assim se perpetuarem no poder. As dificuldades e as adversidades são atribuídas a maléficas maquinações dos opositores, a democracia é redefinida para só eles poderem lá caber; os outros são ostracizados e perseguidos. Entretanto, naqueles países onde ainda mandam os políticos de antigamente, temos os Renzi, os Hollande, os Rajoy. De pouco consolo nos servem quando a hora é de resistir, é de fazer ver. Em Inglaterra vota-se a saída da União Europeia e o que nos propõe o poder instalado é “mais Europa”, ou seja, menos democracia e o federalismo tecnocrata de Augusto Comte. Os governantes “moderados” ou “tradicionais” de hoje querem viver no reino da tecnocracia onde só têm de decidir onde gastar mais dinheiro para contentar as massas e impor uma agenda de valores novos, uma nova moral asséptica, politicamente correta. Os povos revoltam-se, querem mais. Os campos extremam-se e, de repente, não sabemos de que lado devemos estar. De um lado estão os populistas de direita, como Trump, Farrage e Le Pen, do outro a extrema esquerda, Siriza, Podemos e Chaves. No meio há um deserto.

Escrevo estas palavras no dia 2 de dezembro de 2016. Como estes tempos são parecidos com o início dos anos 30 do século XX.

Resta-nos não nos resignarmos, lembrar o passado, lutar pela democracia e pelos valores democráticos, principalmente pela Liberdade, a liberdade de pensamento, a liberdade de opinião e a liberdade económica.

2016-12-26
Guilherme Dray

Desde a Antiguidade que o “número de ouro”, representado pelas iniciais de Phideas (ϕ), escultor e arquiteto encarregado da construção do Parthenon, em Atenas, é visto como um número irracional e misterioso, que confere harmonia e equilíbrio a uma infinidade de elementos da natureza. Os Clássicos diziam, aliás, que não há harmonia sem a referida “proporção áurea”, que tem sido a chave para a explicação de obras magníficas da natureza, no campo da arquitetura e das artes. A “proporção áurea” pode também, em sentido figurado, representar construções jurídicas ou sociais emblemáticas, integradoras de dois ou mais princípios autónomos. A segurança social assume, precisamente, no Estado Moderno, essa função congregadora, integrando os conceitos de Justiça Social, Igualdade de Oportunidades e Estado Social de Direito.

O sistema público de segurança social surge com o Estado Social de Direito, sendo um dos seus pilares. Insere-se na ideia de que o Estado deve promover não apenas as liberdades individuais e os direitos negativos do cidadão, próprios do liberalismo, mas também os direitos sociais e a igualdade de oportunidades. Atua como um instrumento de promoção da Justiça Social e marca a transição da igualdade em sentido formal para a igualdade em sentido material, numa evolução paulatina, mas segura.

Numa primeira fase, as revoluções americana e francesa, respetivamente de 1776 e 1789, trouxeram a ideia de que todos os homens nascem livres e iguais, sendo proibidas as discriminações. É a fase da igualdade em sentido formal e da “Rule of Law”: ao Estado competia, apenas, criar leis gerais e abstratas, cabendo a cada cidadão desenvolver livremente as suas capacidades, sem qualquer interferência estatal.

Mais tarde, a industrialização das sociedades, o desemprego generalizado, o agravamento das desigualdades e a ocorrência de acidentes de trabalho sem cobertura jurídica fizeram com que a habitual neutralidade do Estado fosse questionada. A igualdade formal começa a dar lugar à igualdade substantiva, em que o Estado admite intervir de forma a proteger aqueles que se encontram numa posição de maior inferioridade. Surge, então, o conceito de conceito de igualdade de oportunidades, que vê e concebe a igualdade não como um mero ponto de partida, mas sim como um ponto de chegada. E é neste contexto que surge, também, em nome da Justiça Social, a ideia de que o Estado deve proteger os seus cidadãos em momentos de particular vulnerabilidade, nomeadamente em caso de desemprego involuntário, doença, acidente ou maternidade. As Constituições novecentistas, que haviam herdado a igualdade formal das revoluções liberais, deram então lugar às Constituições do século XX, que consagraram o Estado Social de Direito. E este, por sua vez, proporcionou a criação de um sistema público de segurança social.

A primeira Constituição do Estado Moderno a inscrever direitos sociais foi a Constituição mexicana de 1917, nomeadamente o direito à edução, à saúde e à habitação, bem como diversos direitos em matéria laboral. Estavam, pois, lançadas as bases para o movimento de “socialização” das leis fundamentais, que foi definitivamente impulsionado pela Constituição de Weimar de 1919. Esta consolidou o conceito de constitucionalismo social e assegurou, nomeadamente, o direito à aposentadoria e à proteção na velhice, na maternidade e nos demais acasos da vida.

Criou-se, por esta via, o primeiro sistema de previdência social da história contemporânea e desde então os sistemas públicos de segurança social vieram para ficar, tendo sido objeto de ampla consagração em diversos textos jurídicos, quer a nível internacional, quer a nível nacional.

A nível internacional, a Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece que “Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social” (artigo 22.º). A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, por sua vez, reconhece “o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais que concedem proteção em casos como a maternidade, doença, acidentes de trabalho, dependência ou velhice, bem como em caso de perda de emprego” (artigo 34.º).

Por fim, para fechar o ciclo, as diversas constituições do século XX dos Estados ocidentais avançaram no mesmo sentido – entre nós, a Constituição garante que todos têm direito à segurança social, incumbindo ao Estado organizar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, que proteja os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho (no artigo 63.º).

O sistema público de segurança social não é, portanto, uma invenção de hoje –  ele tem raízes histórico-culturais e surge na sequência de uma longa e sólida evolução, associada ao advento do Estado Social do Direito. O sistema público da segurança social não é, também, uma realidade doméstica ou nacional – ele resulta de um amplo movimento internacional, iniciado com a Constituição de Weimar (1919) e que culminou com a sua consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). O sistema público de segurança social, tem, enfim, um substrato e uma filosofia subjacentes – ele insere-se nos propósitos de promoção da igualdade de oportunidades, do bem comum e da Justiça Social. A segurança social harmoniza e equilibra estes três vetores. Ela atua, pois, como o “número de ouro” do Estado Social de Direito e do Modelo Social Europeu. Quase um século após o aparecimento as primeiras intervenções legislativas, em Portugal, relativas à criação de um sistema de seguros sociais obrigatórios, importa assinalar a importância deste sistema e recordar que a sua existência é um garante das democracias modernas. Importa, por isso, saber preservar o sistema público de segurança social, garantindo a sua sustentabilidade.