2016-12-02
Guilherme Dray

O Direito do Trabalho desenvolveu-se na sequência da industrialização e da crise gerada com a famosa Questão Social do século XIX, com o propósito de proteger a parte mais fraca. Esta marca distintiva nunca deixou de existir e sempre que ocorre uma crise económica e social de grandes proporções o Direito do Trabalho é chamado a intervir. Nem sempre, porém, é utilizado da melhor forma.

A resposta que tem sido dada perante graves crises económicas tem variado. As respostas que foram dadas, respetivamente, nos Estados Unidos da América (EUA), após a Grande Depressão de 1929, e na União Europeia (UE), na sequência da crise das dívidas soberanas de 2008, são distintas e refletem duas abordagens quase opostas. Paradoxalmente, foi nos EUA, país tradicionalmente associado ao capitalismo, que foi dada mais importância à negociação coletiva e ao compromisso, ao passo que na UE se enveredou pela subalternização da contratação coletiva. Os resultados foram distintos: enquanto na UE o desemprego aumentou e as economias estagnaram, nos EUA iniciou-se na altura um caminho de progresso económico e social muito impressivo.

Na sequência da crise de 1929, que lançou os EUA numa tremenda recessão, com mais de 1/4 da população ativa desempregada, com falências de bancos e de empresas, o novo Presidente então eleito, Franklin Roosevelt, lançou o New Deal, programa político destinado a recuperar a economia que implicou um conjunto significativo de reformas. É nesta fase, nomeadamente, que são aprovados, o National Industrial Recovery Act, destinado a promover a recuperação da indústria; o Emergency Banking Act, que procurou garantir o saneamento do setor bancário; o Agricultural Adjustment Act, que teve em vista regular a produção agrícola; e o Home Owner’s Refinancing Act, que teve como objetivo evitar a perda de casas próprias hipotecadas. Neste ambiente social e político tornou-se claro, também, que importava apostar na negociação coletiva e pôr termo à agressividade que grassava nas indústrias, que opunha sindicatos e empregadores e que travava o crescimento económico.

Surge, então, em 1935, o Wagner Act, que atribui pela primeira vez aos trabalhadores legitimidade para atuar de forma coletiva. O diploma criou, por outro lado, duas agências administrativas: a National Labor Relations Board, incumbida de garantir a aplicação da lei laboral, e a Works Progress Administration, encarregue de combater o desemprego através da contratação de desempregados de longa duração. O Supreme Court, por sua vez, reconheceu o direito de associação dos trabalhadores como um direito fundamental. A partir de então, a negociação coletiva passa a ter um papel predominante e iniciou-se uma espécie de golden age da economia americana, alicerçada no compromisso responsável entre os parceiros sociais. De um problema, fez-se uma oportunidade; o confronto nas fábricas deu lugar à concertação e a sociedade americana apostou, finalmente, na mobilidade social e na igualdade de oportunidades. Criou-se um desígnio nacional. O Direito do Trabalho, centrado na proteção das minorias e na negociação coletiva foi determinante. Os sindicatos perceberam, de forma responsável, que acima dos seus interesses de classe estavam os interesses da nação. Os empregadores aperceberem-se também que o aumento da produtividade não se consegue sem negociação e sem a dignificação do trabalho. A liderança inspiradora do Presidente Franklin Roosevelt fez o resto: foi decisiva para a criação do American Dream e para a restauração de um clima de confiança.

A resposta dada pela UE à crise das dívidas soberanas de 2008 foi oposta. Ao invés de se apostar na negociação coletiva, enveredou-se pela sua desvalorização. As reformas laborais dos países do Sul da Europa entre 2011 e 2012 foram paradigmáticas: promoveu-se a gestão do tempo de trabalho por acordos individuais, facilitou-se o despedimento por razões económicas, diminuiu-se o número de dias de férias e de feriados e reduziu-se de forma legalmente imperativa o valor da retribuição em caso de trabalho suplementar. Os resultados, todavia, não foram os desejados: a economia não progrediu e o desemprego aumentou. É ainda no rescaldo deste quadro que nos encontramos.

E é nesta conjuntura que a aposta na negociação coletiva, através concertação social, é cada vez mais decisiva. A negociação coletiva potencia a criação de um clima de confiança, permite a adaptação da lei geral à especificidade do setor de atividade ou da empresa, é essencial para dinamizar a economia e é certamente decisiva para a promoção do emprego. O papel dos parceiros sociais é, por isso, determinante.

Sabendo-se, como se sabe hoje, que o país padece de um problema crónico de falta de crescimento económico, importa, mais do que nunca, apostar na negociação coletiva.

É igualmente neste contexto que é de congratular a recente publicação, no Boletim do Trabalho e do Emprego n.º 37, de 8 de outubro de 2016, do contrato coletivo de trabalho celebrado entre a Associação de Operadores do Porto de Lisboa e o Sindicato dos Estivadores, do Centro e Sul de Portugal, que pôs termo a meses de disputas laborais destrutivas de um dos mais importantes portos do país. Este exemplo é paradigmático: o contrato coletivo ora publicado deixou para trás meses de destruição e abre a porta à recuperação do Porto de Lisboa. O crescimento económico do país passa também, pelo reforço da negociação coletiva. Há que seguir o exemplo.  

 

É sabido que a economia está a migrar para plataformas digitais onde a oferta e a procura de bens e serviços se encontram online. A procura com sucesso de fórmulas para essa migração, específicas para o comércio de cada bem ou serviço, fez entrar em jogo novas empresas com uma dimensão global e chamou a atenção das indústrias tradicionais para o valor dessas fórmulas.

Fórmulas que mais não são do que a concretização de ideias. Para que estas ideias surjam não é preciso mais que o conhecimento dos princípios da economia digital e do sector do comércio em que se pretende aplicá-las. Para alguém vender roupa, por exemplo, deixa ser preciso ser um industrial do sector, deixa de ser preciso investir numa operação tradicional de distribuição. Basta uma boa ideia de como o fazer online.

Mas a ideia tem de ser boa, ou seja, tem de funcionar quando aplicada. Pode não ser economicamente viável lançar para o mercado todas as ideias para determinar se funcionam ou não. No entanto, o fenómeno das startups nasceu assim nos Estados Unidos, onde as pessoas parecem naturalmente mais inclinadas para correr riscos e aceitar o veredicto do mercado.

Mas não foram só os que tiveram ideias que entraram no jogo das startups. Entraram os que acharam que se poderia ganhar dinheiro com o comércio destas boas ideias investindo naquelas com maior probabilidade de sucesso. Aparecem os fundos de capital de risco em startups que investem em incubadoras, cujo sucesso depende da capacidade de selecionar apenas os melhores projetos. São peças fundamentais pois fornecem as condições físicas e financeiras para que o sucesso de uma startup dependa apenas com uma condição: a de que o projeto tenha por base um bom conceito, capaz de atrair mercado para si. Se esta condição está satisfeita o “ecossistema” deve ser capaz de lhe proporcionar os meios para que se possa lançar e viver segundo as regras do mercado.

Em dias de Web Summit, é impossível não nos sentimos atraídos para uma realidade onde são as ideias que geram os negócios e em que o financiamento depende da qualidade dessas mesmas ideias. Mas não nos enganemos, as regras do jogo não mudaram: continua a ser o mercado a decidir quem sobrevive na economia digital e a determinar a eficiência de todas as estruturas que fazem o “ecossistema” que gira à volta dos produtores de ideias. Temos assistido, sobretudo na Europa e mais na Europa do Sul, ao surgimento de políticas públicas (que se me perdoe a redundância, mas é força de tanto ouvir a expressão) de incentivo à criação de startups. Portugal não é exceção. É verdade…

 

2016-10-20
Estela Guerra

Os últimos tempos têm sido marcados pela vaga de franceses que têm escolhido Portugal para viver, conduzindo a um boom no investimento imobiliário nacional. Esta invasão francesa levou-nos à descoberta do que se fazia por lá, no ramo imobiliário, e guiou-nos ao encontro da venda contra renda vitalícia, uma modalidade de venda de imóveis com vasta adesão em França, mas praticamente desconhecida no nosso país e cuja celebração é possível em moldes semelhantes ao que sucede em terras gaulesas.

Basicamente, a venda contra renda vitalícia consiste na venda de um imóvel contra o pagamento da totalidade ou de parte do preço sob forma de renda vitalícia. Esta figura assume duas modalidades: com ocupação e livre.

Na nossa opinião, é a modalidade com ocupação que revela maior interesse, permitindo ao vendedor alienar o seu imóvel, mas continuar a habitá-lo até falecer, ao abrigo do direito de usufruto ou do direito de uso e habitação e receber o pagamento do preço sob a forma de renda vitalícia como contrapartida da venda. Assumindo esta modalidade, a venda contra renda vitalícia torna-se especialmente atrativa para pessoas de idade avançada que precisam ou desejam obter um complemento de reforma, sem terem de abandonar a sua casa. Por outro lado, existe a chamada modalidade livre que permite ao comprador dispor, de imediato, do imóvel como se tratasse de uma compra “normal”, beneficiando o vendedor do pagamento do preço sob a forma de renda vitalícia.

A principal caraterística da venda contra renda vitalícia é, sem dúvida, o facto de o comprador pagar ao vendedor o preço sob forma de renda até ao falecimento do vendedor. Assim, esta figura contratual revela-se algo “soturna” pois tem por base uma “aposta” sobre a longevidade do vendedor: o comprador tem interesse em que o vendedor não viva durante mais anos do que aqueles que tiver previsto aquando da celebração do contrato, porque se tal acontecer, o negócio acarreta um prejuízo para o comprador que se obrigou a pagar uma renda vitalícia ao vendedor.

Saliente-se que a concessão de benefícios ao vendedor, no âmbito do imposto sobre o rendimento, é das principais razões, se não a principal, que conduz à grande adesão a esta figura em França. Uma pessoa que decida vender a sua casa contra a renda vitalícia vê as suas rendas tributadas após uma dedução fiscal que varia consoante a sua idade no momento da venda. À medida que a idade do vendedor é mais avançada no momento da venda, a renda vitalícia a receber é menos tributada, o que potencia, uma vez mais, que esta seja um negócio muito atrativo para pessoas reformadas.

Por cá, apesar de não existir qualquer dedução específica, parece defensável, embora dependendo da interpretação que a Autoridade Tributária venha a fazer das normas gerais aplicáveis, que se possa abater ao valor das rendas a parte correspondente à parte do preço paga inicialmente. Por outras palavras, apenas seria tributada a parte relativa ao pagamento inicial, se houver, e a parte da renda vitalícia no valor que exceda o preço acordado pela venda do imóvel; não sendo tributado o valor pago como renda vitalícia até ao montante acordado como preço de venda do imóvel. Veja-se, a título de exemplo, a seguinte hipótese: um casal com 68 anos vende o seu apartamento com valor patrimonial tributário de €150.000,00, ao seu neto. Como contrapartida, o neto pagará €100.000,00 na data da escritura e uma renda vitalícia de €500,00 por mês. Na nossa opinião, o valor de rendas vitalícias de €50,000,00 recebidas pelos vendedores não serão tributadas, sendo somente o excedente deste valor tributado em sede IRS (categoria H).

Em face do exposto e na sequência da invasão francesa no imobiliário português, acreditamos que a chegada da venda contra renda vitalícia a Portugal está para breve, assumindo-se como um novo desafio para o investimento imobiliário nacional.

A UE está numa encruzilhada, todos sabemos, entre dois caminhos: o de uma Europa de livre circulação de pessoas, bens e capitais que confia que dessa liberdade pode sair uma melhor distribuição da riqueza entre os Estados europeus, com respeito pela identidade cultural e política de cada um; ou o de uma Europa política, centralizadora da governação dos Estados que a integram, forçando através das chamadas políticas comuns à sua progressiva integração numa só. Apenas um destes caminhos é verdadeiramente inclusivo e assegura que a Europa se manterá fiel ao maior dos valores: a liberdade. A Europa social que as esquerdas e as direitas europeias desejam acabaria, se não se desintegrasse antes, por sacrificar a liberdade dos cidadãos e dos povos a uma ideia de bem comum sobre a qual manifestamente não há consenso entre os Estados europeus. Haverá sempre quem diga que ver apenas dois caminhos é redutor, que há soluções ditas intermédias - do apreço de tantos que acusam de dogmáticas as visões de quem distingue ideias e conceitos – que permitirão um correto equilíbrio entre a liberdade e o bem-estar social dos povos da Europa. Não nos vamos perder nessa discussão. Admitamos que a divisão em dois caminhos se refere à escolha entre aqueles que dão predominância à liberdade dos povos e aqueles caminhos que dão preponderância à integração política e à integração económica entre Estados. Admitamos também, para afastar os fantasmas maniqueístas que esquerda e direita usam para afastar quem lhes é contrário no pensamento, que todos queremos uma mais justa distribuição da riqueza e o fim das assimetrias entre os Estados ricos do Norte e os pobres do Sul. Assim como todos desejamos que todos os povos tenham acesso a saúde, educação e habitação que lhes permitam uma verdadeira igualdade de oportunidades.

Estando à vista os resultados da governação europeia, sobretudo dos últimos 20 anos, a indignação é geral. As novas esquerdas populistas só aceitam uma UE que aplique o socialismo de forma integral, o que no estado atual das coisas se lhe afigura com algo plausível. As novas direitas nacionalistas gritam que a Europa os rouba e nada querem ter a ver com ela. E depois há os que nos indignamos com a insensatez dos políticos. E ficamos duplamente indignados por não compreendermos como se continua a dizer que os males da UE resultam do dito “modelo neoliberal do mercado interno” quando vemos que os políticos europeus nos empurram para uma Europa cada vez mais intervencionista e centralizadora, que dirige, com resultados desastrosas, um mercado, o qual nunca chegará a ser verdadeiramente comum dado o excesso de intervencionismo das instituições europeias e a sua manifesta incapacidade de regular nas matérias (basta pensar na regulação do setor financeiro) das quais depende o seu funcionamento.

Apesar das dúbias razões que levaram os ingleses e os galeses a votar no Brexit, tradicionalmente, sempre vimos o Reino Unido como um defensor de uma Europa como espaço de liberdade. Uma vez consumado o Brexit, ou mesmo antes disso, pois o RU já nem sempre se faz representar nas cimeiras europeias, parece que vai ficar um vazio no debate europeu, uma falta de contraponto às tendências centralistas europeias. O Presidente da Comissão Europeia já grita a plenos pulmões que vai duplicar o orçamento da UE, que devemos ter um ministro dos negócios estrangeiros da UE e até, pasme-se, uma defesa comum europeia gerida de um quartel general europeu em Bruxelas. É verdade que a palavra do presidente da Comissão Europeia vale o que vale, cada vez menos, mas estas ideias não deixam de assustar. Sobretudo, se forem vistas como são apresentadas: como a forma de evitar os populismos de esquerda e de direita que estão a por em perigo as democracias europeias e que estão a questionar a própria existência da UE. As palavras de Juncker soam a desespero, a fuga para frente, por incapacidade de compreender as causas do atual estado de coisas na UE. É verdade que as causas próximas são complexas e difíceis de explicar. Ao contrário, é fácil dizer que os problemas se resolvem com mais fundos estruturais, maiores orçamentos europeus. A UE apresentada como uma espécie de paladino dos pobres - sejam só os produtores de gado da Normandia, sejam países inteiros como a Grécia e Portugal - é mais apelativa… sobretudo para os pobres que estão ainda e sempre em maioria. Ora, ao discurso de quem manda dirigido ao coração dos pobres e não à sua razão chamamos hoje populismo. Os filósofos antigos chamavam-lhe demagogia, mas falta hoje coragem para usar a palavra porque implica reconhecer a degradação a que chegaram democracias europeias ou reconhecer que a democracia ainda é, tal como a definiu Platão, o governo daqueles cuja pobreza lhes impede de decidir em conformidade com a razão.

O populismo do presidente da Comissão Europeia, que não vemos contestado nas suas linhas orientadoras pelos nossos politólogos, mostra até que ponto a Europa não compreendeu que o caminho de integração que segue, e quer seguir com mais afinco, o está a afastar dos seus objetivos: o da sobrevivência das instituições europeias (aquele que o aparelho burocrático europeu mais preza) e o bem-estar social dos povos europeus. O impacto das políticas económicas europeias através dos chamados fundos estruturais tem sido dramático, sobretudo para países do sul da Europa, levados a investimentos públicos desproporcionados em relação à sua capacidade de investimento em grandes projetos comunitários, sob ameaça de perderem o “comboio europeu”. E levados também a desenvolver setores da economia, as mais das vezes os menos relevantes, que se traduziram apenas em aumentos temporários da riqueza de quem recebeu os fundos. É mais disto que o discurso do presidente da

Comissão Europeia promete: embriagar os eleitores dos países mais pobres com a promessa de fundos europeus, agora com a promessa de uma paz duradoura sob os auspícios de Bruxelas saída, certamente, da imaginação do próprio Juncker.

No ano em que se comemoram os 50 anos de vigência do Código Civil de 1966, começo por confessar que, não sendo, obviamente, da geração de advogados que viveu sob o Código de Seabra (pois nasci no ano anterior à entrada em vigor do atual código civil), a leitura ocasional do velho Código Seabra cria em mim o sentimento de que ficámos a perder com a sua substituição. Não se esquece a proclamação, ao estilo de uma declaração universal, com que começa: “Só o homem é suscetível de direitos e obrigações”; ou que nele os direitos e obrigações eram simplesmente faculdades ou necessidades morais de praticar ou de deixar de praticar certos factos. Isto, comparando com o Código Civil de 1966 que abre, como todos sabemos, com a enumeração das fontes do direito e, sistemática e friamente, separa os conceitos que o outro confundia com arte...

É certo que ambos são produtos dos seus respetivos tempos, adaptações sem grande originalidade das codificações de influência francesa do século XIX e de origem germânica do século XX. Os juristas do nosso tempo dirão, e bem, que o atual Código Civil, é um código tecnicamente mais perfeito. Dirão também que serviu bem até hoje, como prova o facto de o seu corpo de normas ter sofrido poucas alterações nestes 50 anos. O que é verdade também, se excecionarmos matérias onde a evolução da moral forçou alterações, como as que aconteceram em 1977 em matéria de direito da família. Ou excecionarmos ainda algumas áreas que se tornaram demasiado complexas para caberem dentro do mesmo corpo sem lhe quebrar o equilíbrio sistemático: como aconteceu com o arrendamento em relação à locação. Alguém também apontará de certo que existem hoje realidades que o legislador não previu e que hoje ocupam uma extensa lista de leis e decretos-lei que se vão publicando de forma avulsa. Matérias como a proteção de dados pessoais e dos direitos da personalidade. E ainda que em alguns aspetos o Código Civil continua, apesar das alterações recentes sobre uniões de facto, casamento de pessoas do mesmo sexo e adoção, a estar ultrapassado pelos conceitos morais vigentes em matéria de regime supletivo de bens no casamento, direitos de sucessão dos cônjuges (curiosamente ambas revistas em 1977).

Por isso, se perguntarão se não devemos aproveitar a ocasião para abrir um novo ciclo de revisão do Código Civil como um todo. Não sei responder a essa pergunta, mas sei que um dos méritos do atual Código Civil foi de ter sido o fruto de um trabalho pensado com o tempo que o tempo permitia nos anos 60 do século passado; por pessoas como o Professor Vaz Serra; sem pressas impostas por ciclos políticos, porque como sabemos não os havia então. Digo, por isso, que a haver uma reforma ela não pode ser uma iniciativa política (não vale a pena pensar em pactos de regime pois são quimera) mas tem de ser uma iniciativa daquelas que na nossa sociedade podem dar um melhor contributo para a revisão deste código. E é preciso ainda encontrar a pessoa que pelo seu mérito possa liderar este esforço, penso eu que desconfio das obras coletivas. Com tantos requisitos, será difícil termos uma revisão do Código Civil nos tempos mais próximos e talvez seja melhor esperar que ele viva dignamente outros 50 anos com remendos pontuais, como até hoje.

Os tempos que vivemos estão a dar-nos uma dura lição: a democracia vacila, tanto na Europa como nas Américas, pois vemos que das consultas aos povos não saem decisões racionais, mas sim escolhas emocionais. Na Venezuela, elege-se aquele que depois se transforma em tirano. Nos Estados Unidos, as bases dos partidos escolhem candidatos que objetivamente não reúnem as qualidades que racionalmente se requerem de um futuro presidente da maior potência económica e militar à face da Terra. Em França, a xenofobia alimenta a extrema direita ao mesmo tempo que o povo elege, sucessivamente, presidentes sem estatura (intelectual) com base em promessas de vendedores de feira. A Espanha cede a uma estrema esquerda que, para se vender melhor, é capaz de dizer que é social democrata; e que apenas a divisão entre constitucionalistas e nacionalistas impediu de chegar ao poder. Podíamos continuar citando, só na Europa, a Áustria, a Hungria, a Polónia, países de onde sopram ventos e reminiscências de tempos que julgávamos que não podiam voltar. Mas bastamo-nos com o Reino Unido, onde o povo, que se tem como exemplo de uma velha e sábia tradição democrática, votou no Brexit apenas porque não gosta dos intrusos que fazem a sua economia crescer. Em democracia, diz-se que a vontade do povo é soberana. Mas o que fazer quando não há hipótese de acertar na escolha porque nenhuma é boa, como vai acontecer em novembro nos EUA? Ou o que dizer quando o povo escolhe o mal para si próprio e para os outros, como foi o caso do referêndum no RU?  Ou como agir quando o povo se deixa sistematicamente enganar por políticos sem escrúpulos, que, nuns casos se tornam os carrascos de quem os elegeu (Venezuela, Turquia…) e noutros querem o sistema democrático como está para poderem continuar a ser eleitos, como vemos em praticamente todas as democracias?

Estes casos demonstram por si só que a democracia está em crise. Por um lado, porque sendo as nossas democracias representativas verdadeiras formas de oligarquia, os que disputam o título de representantes do povo visam o poder para os seus fins, nuns casos, pessoais, noutros ideológicos de uma minoria que, em ambos os casos, escondem sob promessas de igualdade e bem-estar coletivo quando em verdadeira democracia os fins só podem ser os essenciais à vida em liberdade. Por outro lado, porque, o povo soberano é incapaz de definir quais os fins comuns da sociedade em que vive e cede àquele que mais lhe prometer no momento do voto. Demonstram também os casos isolados da democracia direta que nem aqueles dos quais mais se esperaria, como é o caso dos britânicos, decidem racionalmente.

Responder à pergunta de onde vem essa incapacidade de agir racionalmente não está nas nossas mãos. Mas uma coisa temos por certa: para eleger e governar, a vontade não é suficiente; para que o mundo funcione, não basta querer. O querer dos políticos não é suficiente para que a sociedade progrida indefinidamente como pretendem (nem tal progresso é condição de civilização, diríamos nós). Há limites a esse querer: é a natureza que no-los impõe e não está nas nossas mãos ultrapassá-los. É fácil compreender isto se, em vez da palavra “natureza”, usarmos a palavras “ambiente”. Todos reconhecemos que os grandes planos económicos centralizados falharam quando teimaram em explorar o ambiente para além do possível, ou quando à economia de mercado foi deixado caminho livre para poluir e explorar recursos indiscriminadamente. Já é mais difícil a compreensão, se a palavra usada for “economia”, porque a ela não associamos leis naturais, como devíamos, mas antes a vemos como um instrumento da vontade de quem governa. E, por isso, temos governantes que, consciente ou inconscientemente (não sei qual o pior), prometem o impossível: gastar o quem não temos ou não pagar aos credores e ao mesmo tempo pedir-lhes mais dinheiro. Mais difíceis ainda são os limites à suficiência da vontade que resultam da própria natureza humana, cuja compreensão, certamente, nos tornaria a todos suficientemente sábios para fazer as nossas escolhas racionalmente e poder viver livres e em democracia.

O que temos por certo permite, isso sim, mais uma última reflexão: a democracia, para poder dar-nos a liberdade, precisa de escolhas racionais. Se insistirmos em propor aos eleitores escolhas irracionais e o povo insistir em escolhas sentimentais, a democracia acabará por falhar e cederá o lugar a outras formas de governo em que a liberdade cederá, por sua vez, a outros fins com ela incompatíveis, sejam eles o bem-estar social ou a igualdade, sejam eles os fins individuais de um qualquer ditador.

2016-07-25

Se ouviu dizer que a sua empresa vai poder ser multada em mais de 20 milhões de euros pela má gestão dos dados pessoais dos seus trabalhadores, tem dois pontos a reter. O primeiro é simples: ouviu bem.

A culpa é do Regulamento (EU) 2016/679. Quatro anos volvidos desde o início das negociações, Parlamento, Conselho e Comissão chegaram a um entendimento que resultou em 173 “Considerandos” e 99 Artigos respeitantes à proteção, tratamento e circulação dos dados pessoais das pessoas singulares. A ideia foi uniformizar as diferentes legislações que existiam nos vários Estados-Membros, estabelecendo-se agora um conjunto de regras diretamente aplicáveis a cada um deles (e nem o “Brexit” abrirá exceção para o Reino Unido, no que concerne às relações comerciais ou serviços prestados aos restantes 27).

O segundo ponto a reter é o de que, e apesar de o Regulamento só entrar em vigor em 25 de maio de 2018, deve começar a preparar-se desde já. “Sem ter pressa, mas sem perder tempo” – gostando-se ou não deste Nobel – é, sem dúvida, o rumo a seguir. É que, se em muito a Europa apenas repete ou concretiza direitos e deveres já consagrados na Diretiva de 95, certo é que, na maioria do texto comunitário, se introduzem alterações significativas que exigem das empresas uma preparação cuidada e uma revisão dos métodos de organização e proteção das informações constantes das suas bases de dados.

Organismos do Estado (com exceção dos Tribunais) e empresas cuja atividade principal implique o tratamento de dados sensíveis ou em grande escala têm, por enquanto, alguns deveres acrescidos: para elas é obrigatória a contratação de um “Data Protection Officer” ou “Encarregado da Proteção de Dados”. Basicamente, trata-se de alguém que detenha conhecimentos sólidos sobre proteção de dados e a quem incumbirá, com independência, prestar aconselhamento e cooperar com as autoridades de controlo, em relação a quem atuará como ponto de contacto. O Regulamento prevê que este Encarregado possa ser um trabalhador da empresa ou um prestador de serviços – parece-nos, porém, que a independência exigida para o cargo se coaduna mais com a segunda; por outro lado, não sendo ainda obrigatória para todas as empresas parece-nos, também aqui, que o rumo mais provável a tomar pela U.E. será o da uniformização, pelo que as empresas poderão contratar desde já um Encarregado de Proteção de Dados (figura que, de resto, era já facultativa, antes da aprovação do Regulamento).

Sem prejuízo, qualquer que seja a estrutura, dimensão ou atividade da empresa/empregadora em causa, todas serão afetadas, a partir de 2018, por um conjunto de obrigações que, se não forem preparadas desde já, dificilmente poderão ser cumpridas, dada a complexidade das matérias e a exigência, sobretudo a nível tecnológico, que implica o seu acompanhamento. Será necessário, designadamente, rever os procedimentos respeitantes ao consentimento dos trabalhadores sobre o tratamento dos seus dados pessoais, aferir da necessidade de proceder a uma avaliação de impacto sobre os mesmos (“privacy impact assessments”), assegurar a efetividade do “esquecimento” a que os trabalhadores têm direito, proceder à “pseudonimização” e “cifragem” dos seus dados pessoais, rever a capacidade de “portabilidade” desses dados, e adotar diversos princípios de proteção de dados desde a conceção (“privacy by design”) e por defeito (“privacy by default”) o mais cedo possível, adotando medidas que componham uma política interna efetiva de compliance de modo a assegurar a legalidade, neste novo quadro jurídico.

Podendo parecer, nalguns casos, excessivo, haverá que tomar consciência que direta ou indiretamente, conscientemente ou nem tanto, o volume de informação que as empresas atualmente detêm acerca dos trabalhadores assumiu uma dimensão sem precedente e é tanto mais detalhada quanto menos palpável se torna. As fichas A5 amarelas, ordenadas de A a Z, separadas por cartões e guardadas num armário são agora megabytes, arquivadas numa “nuvem” que requerem um controlo eficaz que, contudo, nem sempre se alcança: só depois de um anónimo exigir dinheiro pelo “resgate dos dados” é que o Banco Central Europeu deu conta da falta de endereços de email nas suas bases de dados, pirateadas em julho de 2014. Neste caso, 20 mil. Nos EUA, em julho do ano passado, hackers suspeitos de terem ligações ao Governo chinês acederam aos dados pessoais de 4 milhões de funcionários públicos. E ninguém sabe ainda a extensão (deste e de outros) ciber- desvios-de-informação.

 

A notícia da falência da brasileira Oi parece, à primeira vista, ser um facto de pouca importância que apenas serve para nos recordar que a “nossa” Portugal Telecom foi em tempos a moeda de troca no pântano BES.

Uns dias depois, surgiram notícias sobre investidores em obrigações “PT” que reclamavam ter sido enganados pelos bancos que lhas venderam. Custa a crer, depois dos casos BPN, BPP, BES e Banif, que haja quem tivesse investido em obrigações da Oi sem se preocupar com os riscos que a empresa corria. Contudo, quando lemos os prospetos, fichas técnicas, extratos de conta e outras coisas sobre os “produtos” financeiros derivados das obrigações PT que foram vendidos a numerosos investidores, não podemos deixar de ficar espantados, mais uma vez, com a forma como certos bancos impingiram investimentos arriscados aos seus clientes.

Comecemos pelas obrigações. Manda a prudência que quem compra obrigações tenha consciência de que corre o risco que o emitente dessas obrigações possa deixar de as pagar. O que se estranha é que tenha havido bancos que não avisaram os seus clientes de que essas obrigações deixariam de ser pagas pela PT mas pela Oi e que tinham a possibilidade de as amortizar ao seu valor nominal na altura em que foram transmitidas para a Oi.

Houve ainda casos em que os bancos sonegaram informação essencial, a lembrar os casos BES e BPP, e ainda garantiram que essas obrigações eram seguras, um bom investimento e que não haveria razões para temer.

Estes são os casos mais simples de resolver. Das duas uma: ou os bancos faltaram aos seus deveres de informação ou cumpriram esses deveres. No primeiro caso, são responsáveis pelos prejuízos causados. No segundo, cabe aos clientes sofrer as consequências de um mau investimento.

Pior: existem casos em que os bancos criaram “produtos derivados tóxicos” tendo como ativo subjacente obrigações da Portugal Telecom. Por outras palavras, houve bancos que criaram instrumentos financeiros sustentados em obrigações da Portugal Telecom em que o investidor não adquiria obrigações da Portugal Telecom mas tinha direito a receber determinadas quantias indexadas a essas obrigações. Em algumas situações o banco limitou-se a partir obrigações da Portugal Telecom no valor de 100 mil euros em pedacinhos de mil euros cada transformando-a num outro título que assim conseguia vender a mais pessoas.

Noutras situações, o banco empacotava essas obrigações com obrigações de outras empresas como a Brisa, a Edp, a Telefónica ou a Telecom Italia. Nada a apontar se a finalidade fosse contrabalançar o risco de umas com outras. Mas, lendo com atenção os diversos documentos que regulam esses títulos, repara-se que não é bem assim: em alguns casos basta que uma das obrigações do pacote entrar em incumprimento para que se vençam os títulos, obrigando-se o banco a pagar o valor de mercado da obrigação em incumprimento, a que menos vale, sem ter em conta o valor das outras duas. Ou seja, quem comprou um título ligado a obrigações da PT e ainda da Edp, da Brisa ou de outra empresa recebe apenas os despojos da Oi, perdendo o direito a receber a parte correspondente às outras obrigações.

Será que não se aprendeu nada com o caso BES e os casos anteriores que tanto custaram a milhares de investidores incautos? Até quando abusarão certos bancos da sua licença para tomar depósitos e aconselhar os seus clientes a investir?

Já há muito tempo que tenho vindo a formar a opinião de que os bancos deveriam ser proibidos de vender instrumentos financeiros derivados a clientes particulares e a pequenas e médias empresas e que as demais empresas apenas deveriam poder subscrever derivados para efeitos de cobertura de risco e nunca para especular com hipotéticas valorizações.

No que aos investidores em obrigações PT/Oi e derivados de obrigações PT/Oi diz respeito, espera-os correr o caminho das pedras e lutar pelos seus direitos junto dos reguladores e dos bancos faltosos que responderão: “Uops! We did it again.”.

Não há quem ponha um fim nisto?

 

A crise da banca portuguesa, como a crise das barrigas de aluguer, a crise do acordo ortográfico ou a crise dos direitos dos animais mostra que Portugal vive hoje a mais penosa ameaça à sua existência: morrer de ignorância.

Vem esta reflexão céptica (ou será cética) a propósito da polémica acerca das taxas de juro “negativas” que mereceu comentários na imprensa, discussão no Parlamento e uma oração de sapiência do Governador do Banco de Portugal pronunciada na casa da democracia.

Em declarações ao Parlamento, afirmou o Governador do Banco de Portugal, pronunciando-se acerca dos impactos das Euribor negativas que "há um limite a partir do qual é preciso ter em conta a taxa de juro negativa", para de seguida, alarmado, perguntar "o que está em causa é se queremos levar esse princípio ao ponto de cobrar taxas negativas" ou "se aceitamos que há um limite zero", para concluir, redondo qual conselheiro Acácio, "cabe a esta câmara decidir porque é uma questão politica” pois “o Banco de Portugal não pode legislar”.

Não esqueceu certamente o Sr. Governador a Carta Circular n.º 26/2015/DSC de 30 de março de 2015 onde afirmava: “quando a taxa de juro aplicada a contratos de crédito e de financiamento esteja indexada a um índice de referência, deve resultar da média aritmética simples das cotações diárias do mês anterior ao período de contagem de juros, entende este Banco que, nos contratos de crédito e de financiamento em curso, não podem ser introduzidos limites à variação do indexante que impeçam a plena produção dos efeitos decorrentes da aplicação desta regra legal.”

Desta frase elíptica entenderam muitos que o BdP defenderia que, quando da soma da Euribor (negativa) à margem convencionada entre as partes o valor resultante fosse também ele negativo, a taxa de juro seria também “negativa” (as aspas justificam-se porque “juros negativos” é uma contradição nos termos, como veremos de seguida).

Talvez o BdP devesse ter ficado quieto no seu canto e este problema não teria assumido as suas proporções actuais (ou será “atuais”).
Mas a peroração do BdP na sua carta circular brinda-nos ainda com uma outra verdade como um punho - tal é a dor que nos provoca - ao afirmar “sem prejuízo de outras soluções contratuais legalmente admissíveis, entende-se ser de sublinhar que as instituições de crédito, caso estejam habilitadas a atuar como intermediários financeiros e entendam comercializar instrumentos financeiros derivados de taxa de juro como forma de prevenir os efeitos da evolução negativa dos indexantes utilizados na contratação de operações de crédito e de financiamento, devem assegurar a autonomização da contratação dos referidos instrumentos relativamente ao contrato de crédito e, bem assim, garantir o esclarecimento dos clientes sobre as caraterísticas desses instrumentos financeiros derivados.”

Tal asserção de difícil compreensão mais não é do que um convite a que bancos e particulares celebrem contratos de derivados para resolver esse problema dos riscos de a taxa de juro algum dia se aproximar de “zero” ou cair abaixo de “zero”.

Não bastava soltar um demónio como logo se põe outro à espreita: os instrumentos financeiros derivados que em vez de ficar na gaveta devem ser usados para levar os clientes a fazer o que eles não querem, não compreendem e não precisam. Não era necessário chamar para aqui os derivados.

Um ano volvido, o diabo estava à solta: os juros “negativos” estão à porta e perguntam se podem entrar. Os demagogos – felizes - podiam finalmente anunciar ao povo que em vez de pagar empréstimos os bancos lhes farão o obséquio de os brindar com dinheiro fresco ou lhes amortizar os empréstimos. E se não o fizessem cá estarão os deputados da nação para os mandar fazer. Os banqueiros assustados com a possibilidade mostraram a quem de direito - o BdP - que isso lhes traria grandes e graves prejuízos e nada ajudaria a sua débil saúde financeira.

O Governador vai então ao Parlamento explicar que aquela carta 30 de março de 2015 nada dizia e como tal ele nada podia fazer e - já agora - seria bom que o parlamento fizesse uma lei a dizer que os juros não podem sem menos de “zero”.

Não é preciso; basta saber ler. Diz o número 1 do artigo 1145.º do código civil português: “As partes podem convencionar o pagamento de juros como retribuição do mútuo; este presume-se oneroso em caso de dúvida.”

Por outras palavras, a menos que as partes o convencionem, o mútuo é oneroso, conferindo o direito ao mutuante a receber o capital mutuado acrescido de um juro. É verdade que o código civil já tem 50 anos e por isso talvez não esteja na moda mas por enquanto não há juros “negativos”.

Já agora o problema resolve-se da seguinte forma:
1. Se as partes nada tiverem dito os bancos aplicam a formula contratualizada até o valor chegar a “zero” pelo que haverá períodos em que os mutuários serão poupados ao dever de pagar juros;
2. Se as partes assim o entenderem podem estabelecer valores de juros mínimos fixos, mínimos ou máximos sem necessidade de recorrer a derivados.

Se os nossos legisladores quiserem fazer-nos um favor: poderiam consagrar esta segunda regra numa lei, pois não o estando, sempre que queremos fixar uma taxa de juro lá nos impõem o famigerado “swap”, “breakage costs” e outras coisas que doem.
Haja esperança!

O fim do ano de 2015 foi acidentado para o já débil setor financeiro português. O Banco de Portugal e o Banco Central Europeu queriam limpar esta casa na ponta ocidental da Europa antes da entrada em vigor a 1 de janeiro de 2016 do mecanismo europeu de resolução bancária. Primeiro foi a decisão de intervencionar o BANIF, pequeno banco do sistema mas com um custo potencial de mais de 3.000 milhões de euros para o contribuinte português. Seguiu-se, no dia 29 de dezembro, uma segunda resolução do BES.

O Banco de Portugal deliberou “re-transferir” determinadas obrigações sénior num valor aproximado de 2.000 milhões de euros para o BES, banco mau que resultou da medida de resolução de agosto de 2014.

Conforme foi anunciado pelo Banco de Portugal, a nova medida melhora o rácio de capital do Novo Banco que sobe para 13%.

Antevendo os litígios judiciais que certamente advirão desta medida, o Banco de Portugal afirma que a medida agora imposta resulta de “perdas decorrentes de factos originados ainda na esfera do Banco Espírito Santo, S.A. e anteriores à data de resolução”, ou seja, que a medida só visa resolver um problema anterior à criação do Novo Banco. Invoca ainda que a nova resolução é “necessária para assegurar que, conforme estipulado no regime de resolução, os prejuízos do Banco Espírito Santo, S.A. são absorvidos, em primeiro lugar, pelos acionistas e pelos credores daquela instituição e não pelo sistema bancário ou pelos contribuintes”, o que justificaria o tratamento desfavorável dado aos titulares das obrigações “re-transferidas” para o BES. Por último, o Banco de Portugal conclui que esta última decisão “constitui a alteração final e definitiva do perímetro de ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos para o Novo Banco” que havia ficado em aberto na medida de resolução original e que, com esta decisão, “se considera definitivamente fixado”.

Em contraste com a medida de resolução original aprovada em 2014, cuja legalidade dificilmente poderá ser posta em causa, neste caso específico há fortes razões para questionar a proporcionalidade e oportunidade da medida adotada, que mais parece uma fuga para a frente do que um ponto final na questão BES.

Quanto à oportunidade, convém lembrar que a medida surge mais de um ano e quatro meses depois da intervenção no BES, ocorrida a 4 de agosto de 2014. Assim, dificilmente se compreenderá que factos ocorridos antes de agosto de 2014 justificariam tão gravosa medida. Como sabemos, desde essa data o Novo Banco aprovou as suas contas de 2014, as quais terão sido devidamente auditadas pelos seus revisores oficiais de contas e revistas pelo Banco de Portugal no exercício das suas funções de supervisão. Posteriormente, o Novo Banco aprovou contas trimestrais e semestrais relativas ao ano de 2015 e foi submetido aos testes de «stress» do Banco Central Europeu que foram anunciados pelo Banco de Portugal em 14 de novembro de 2014.

Como é agora possível invocar-se que a nova medida resulta de factos anteriores à resolução?

Por outro lado, esta medida põe em causa a igualdade de tratamento de credores por, em primeiro lugar, ter ocorrido em 2015 o reembolso de obrigações de igual natureza e ainda por haver outras emissões de obrigações do BES que tinham sido assumidas pelo Novo Banco.

Como pode então explicar-se que uns credores tenham visto os seus créditos satisfeitos e outros não?

Esta medida não parece pois proporcionada. Igualmente privilegiados são os demais credores comuns do Novo Banco que não vêm os seus direitos prejudicados pela resolução agora adotada. Não se consegue vislumbrar no regime de resolução bancária qualquer norma que possa fundamentar o tratamento desigual de credores de uma mesma categoria, com a exceção dos depósitos que beneficiam de um direito de prioridade sobre os demais credores comuns. O que é mais estranho é que a presente medida não atinja sequer os detentores de outras obrigações sénior assumidas pelo Novo Banco.

Em resumo, temos pano para mangas: a litigância que se seguirá será muita e a probabilidade de os credores prejudicados virem a ganhar em tribunal é grande.

Significativo é que o comunicado do Banco de Portugal venha esclarecer que “compete ao Fundo de Resolução neutralizar, por via compensatória junto do Novo Banco, os eventuais efeitos negativos de decisões futuras, decorrentes do processo de resolução, de que resultem responsabilidades ou contingências”, como que a dizer que o sucesso de eventuais litígios que se adivinham não prejudicará o Novo Banco, o que não é necessariamente verdade, como as manifestações à porta da sua sede e dos seus balcões têm mostrado.

Todos sabemos que a responsabilidade última de eventuais litígios em torno da resolução do BES terão de ser pagos pelo Fundo de Resolução. Ao afirmá-lo, o Banco de Portugal parece querer indicar que os credores afetados por esta última medida verão os seus direitos satisfeitos em tribunal. O que o Banco de Portugal e o Banco Central Europeu conseguem com esta medida é melhorar a situação financeira do Novo Banco e eventualmente facilitar o processo de venda.

Contudo, perde-se certeza jurídica e perde-se a confiança na palavra dada pelo Banco de Portugal e pelo Banco Central Europeu, que atropelam as leis de que deveriam ser os principais guardiões.

Fica por saber se os potenciais compradores do Novo Banco não deverão ter razões para desconfiar de um regulador que permitiu (e exigiu) um aumento de capital de um banco com gravíssimos problemas internos, que de seguida intervencionou e que volta atrás numa decisão tomada há mais de um ano e quatro meses.

O futuro o dirá.