Joana Fuzeta da Ponte, advogada sénior da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião sobre sobre «Os Desafios da Nova Realidade do Teletrabalho», publicado hoje, a 9 de Junho de 2023.
Depois da implementação “forçada” pela pandemia Covid-19, muitas empresas optaram por manter o regime de teletrabalho, adaptando-o à realidade da sua organização.
A adoção deste regime, que já é uma realidade desde março de 2020, traz, naturalmente, novos desafios com a necessidade de implementação de diferentes regras, procedimentos e, acima de tudo, cautelas que têm de ser adotadas para, por um lado, garantir os principais interesses das empresas e, por outro lado, os direitos dos trabalhadores.
E de que desafios estamos a falar?
Desde logo, o teletrabalho suscita questões relacionadas com a adoção de meios de vigilância e controlos não admissíveis por lei, mas que são muitas vezes utilizados por parte das empresas. Embora, em regra, sejam inadmissíveis e caso sejam aplicados sujeitem as empresas a coimas cujos valores são muito elevados (podendo ultrapassar os €20 milhões), há quem continue a insistir na sua utilização. Um desafio complexo a resolver, mas que terá, certamente, de ser uma solução que, mais do que passar pela aplicação de coimas deverá permitir a utilização de meios de teletrabalho que garantam a privacidade do trabalhador.
Têm também sido suscitadas questões em torno do pagamento de despesas associadas ao teletrabalho. É expectável que, muito em breve, seja definido um valor máximo relativamente ao qual o pagamento de uma compensação de teletrabalho será isento de tributação caso sejam previstas em acordo entre as partes. Mas e se tal não acontecer? Pois, caso assim seja as empresas continuarão a ter dificuldades em saber quanto e quando devem pagar aos trabalhadores as designadas “despesas adicionais” pela prestação da atividade em teletrabalho. Para minimizar este problema, julga-se que deve ser adotado no seio da organização um Regulamento Interno que fixe procedimentos claros e objetivos a seguir pelos trabalhadores que pretendem reivindicar a despesa, bem como prazos a cumprir pela empresa para aprovação e pagamento da despesa.
Como também não poderia deixar de ser, naturalmente, que a lei expressamente prevê a obrigatoriedade de serem fornecidos instrumentos para a prestação em teletrabalho por parte da empresa. Mas de que instrumentos estamos a falar? Um trabalhador que utilize, regulamente, um computador pode exigir um equipamento com caraterísticas mais avançadas? Ou será que a empresa é obrigada a facultar-lhe um monitor e uma secretária? Consideramos que no próprio acordo de teletrabalho podem ficar definidos os instrumentos que as partes acordam que devem ser disponibilizados, tal como em sede de Regulamento Interno. No entanto, caso tal não aconteça, julgamos que deverá ser feita uma avaliação do caso concreto, procurando perceber quais os instrumentos realmente necessários para que um trabalhador médio desempenhe determinadas funções, não tendo a entidade empregadora o dever de fornecer tudo aquilo que o trabalhador solicite.
Por fim, e embora os desafios não se esgotem naturalmente nos aqui referidos, muita questão tem suscitado a necessidade de o teletrabalhador não ser “incomodado” no seu período repouso. Também para obviar a este desafio, nomeadamente quando com o envio de emails o trabalhador se possa sentir obrigado a responder a quaisquer horas, julgamos que as empresas devem adotar um “disclaimer” nos seus emails durante o período de repouso, no qual seja dada nota de que a mensagem não tem caráter urgente, pelo que o trabalhador não se deve sentir obrigado a responder fora do seu horário de trabalho.
Muitos mais desafios poderão vir a colocar-se o que será, certamente, um sinal positivo pois, tal só não aconteceria se o teletrabalho deixasse de ser uma realidade.
Em suma: o grande novo desafio está em encontrar um equilíbrio para responder às novas questões que o teletrabalho suscita à medida que é implementado, o que apenas se conseguirá tendo em consideração, por um lado, a conciliação entre a vida profissional e privada dos trabalhadores e, por outro lado, os interesses económicos das empresas.
Marco Claudino, Advogado e Consultor da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião no Jornal de Negócios, sobre «O IRS dos Municípios e dos Contribuintes não é do Fisco», publicado hoje, a 20 de abril de 2023.
No passado dia 14, o Jornal de Negócios noticiou que o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em decisão recente, considera que o Fisco se encontra a calcular de forma errada a participação variável do IRS que aos municípios cabe como receita.
Em breves palavras, desde 2007 os municípios têm direito, em cada ano, a uma participação variável de 5% do valor do IRS dos contribuintes residentes no seu território. E é exatamente variável porque podem os municípios decidir partilhar, no todo ou em parte, esse valor com os próprios munícipes. A Lei refere ainda que este valor é calculado sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no artigo 78.º do Código do IRS.
O Fisco tem entendido que embora integrem a coleta, os rendimentos não englobados devem ser excluídos do valor a considerar, uma vez que, sendo tributados autonomamente, não se lhes pode aplicar deduções. É uma tese que, com o devido respeito, não tem sustentação nem na letra da Lei (que refere claramente coleta) nem no seu espírito – trata-se de uma partilha de recursos entre o Estado e os Municípios na proporção de 95-5 e não numa dispensa de 5% por parte do Estado nos termos que a AT entende.
O impacto desta decisão é de várias centenas de milhões de euros. No Orçamento do Estado para 2023 o valor do IRS repartido para municípios e contribuintes ascende a 650 milhões de euros (ou seja, foi considerada uma coleta de 13 mil milhões de euros). Por seu turno, nos documentos de execução orçamental de 2021 – ano relativo aos valores distribuídos em 2023 – pode verificar-se que a receita do IRS é de 14.5 mil milhões de euros. Numa estimativa conservadora, se aplicada a fórmula de cálculo validada pelo CAAD teremos seguramente pelo menos uma diferença de mil milhões de euros no valor da coleta a considerar para esta repartição, o que equivalerá a 50 milhões de euros (correspondente a 5%) subtraídos aos municípios e aos contribuintes.
A Autoridade Tributária (AT) não recorreu da decisão. Embora, como dissemos, concordemos com o CAAD, entendemos que teria sido benéfico a existência de recurso. Na verdade, tratando-se, em nosso entender, de matéria com relevância jurídica e social fundamental, caberia inclusivamente recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo.
A análise pelo STA permitiria alcançar segurança jurídica e uniformidade. E, não menos importante, previsibilidade relativamente à atuação futura da AT.
Temos, reconhecemo-lo, receio que a decisão de não recurso da AT tenha tido como objetivo limitar danos ao caso concreto, mantendo para os demais processos a mesma interpretação.
Por isso, é essencial que o Sr. Ministro das Finanças, a quem cabe a tutela da AT e da Direção-Geral do Orçamento e a preservação de uma relação de confiança e lealdade com os contribuintes, não ignore este caso.
Não tendo havido recurso por parte da AT, as liquidações do IRS deste ano devem já ver refletidas a interpretação sufragada pelo CAAD. Mas mais, a AT de forma oficiosa não pode deixar de proceder à revisão das liquidações do IRS dos contribuintes residentes nos municípios que dispensaram no todo ou em parte o IRS respetivo. Deve fazê-lo relativamente aos últimos quatro anos (prazo para revisão dos atos tributários). No que concerne aos municípios, deve ser, desde já, determinada a retificação do Mapa do Orçamento do Estado que prevê as transferências para aquelas autarquias locais.
Adicionalmente, devem os municípios ser compensados relativamente ao valor indevidamente retido nos últimos anos e que lhes cabia por direito.
Caso assim não aconteça, o Estado, para além de não ser merecedor de confiança, estará a convidar
Municípios e Contribuintes à litigância e assim congestionar os já saturados tribunais administrativos e fiscais.
Esperemos que o Sr. Ministro das Finanças, que não pode dizer que não sabe nem conhece o caso, tome as decisões que se impõem!
As novas alterações ao Código do Trabalho, aprovadas pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, entram em vigor, na grande maioria, no dia 1 de maio de 2023.
É também nessa data que entra em vigor a polémica norma relativa à proibição de recurso ao outsourcing nos 12 meses posteriores a um processo de despedimento coletivo ou de extinção do posto de trabalho. De acordo com esta regra, de futuro, as empresas não poderão, no prazo de um ano, recorrer a serviços externos para assegurar o trabalho de quem foi objeto de despedimento coletivo ou de extinção do posto de trabalho.
Até ao último minuto empresas e confederações patronais tiveram a esperança de que esta norma ficasse pelo caminho e não constasse da Lei que aprova a Agenda do Trabalho Digno.
Sucede que isso não se verificou. A norma consta do novo artigo 338.-ºA da Lei n.º 13/2023, sob o título “Proibição do recurso à terceirização de serviços”. Apesar de aprovada, esta norma levanta muitas dúvidas legais, podendo, no limite, ser de constitucionalidade duvidosa.
Para a Assembleia da República esta é uma norma que visa proteger e combater a precariedade laboral; já para as empresas e confederações patronais esta é uma norma altamente limitadora da liberdade empresarial, chegando mesmo a ferir o direito constitucional da liberdade de iniciativa económica.
Ora, nos tempos que correm e que irão correr - em que as empresas necessitam de cada vez mais fazer restruturações empresariais -, proibir as empresas de recorrerem ao outsourcing pode ser contraproducente para o reforço da respetiva competitividade e eficiência. O recurso ao outsourcing permite que as empresas diminuam custos, pois quando uma empresa tem necessidade de fazer um despedimento (coletivo ou uma extinção de um posto de trabalho) e externalizar serviços é, claramente, salvo em situações de fraude, porque necessita de reduzir custos operacionais, sejam estes humanos ou em matéria de gestão de infraestruturas ou de equipamentos.
Proibir que uma empresa recorra à externalização de serviços numa altura em que atravessa dificuldades financeira pode ser, em muitos casos, uma medida penalizadora e prejudicial para as empresas e que, indiscutivelmente, limita a sua liberdade de atuação e de reorganização, podendo suscitar-se dúvidas quanto à sua constitucionalidade.
Além disso, a norma levanta ainda muitas dúvidas interpretativas.
Desde logo, ficamos na dúvida se a proibição afeta apenas as atividades principais da empresa ou se afeta qualquer tipo de serviços (como limpeza, refeitório ou segurança interna)? Em nossa opinião, a ser proibido, só o deveria ser para as atividades principais da empresa.
Surge ainda a dúvida do que acontece aos processos de outsourcing que ocorram em momento anterior a um despedimento coletivo (por exemplo uma semana antes)? Ou até mesmo do que acontece a este despedimento coletivo “colado” a um processo de outsourcing? É lícito ou ilícito? Se interpretamos literalmente a lei, a resposta é de que em momento anterior ao despedimento não há qualquer limitação de recurso ao outsourcing.
Questiona-se ainda se esta proibição de recurso ao outsourcing abrange os acordos de revogação que tenham tido por base o despedimento coletivo ou a extinção do posto de trabalho? Em nossa opinião, estes acordos não entram na equação e, portanto, a existência destes acordos de revogação não impede o posterior recurso ao outsourcing.
Em face do cenário exposto, acreditamos que, das duas uma: ou a norma relativa à proibição de outsourcing é objeto de fiscalização sucessiva junto do Tribunal Constitucional ou, não sendo e mantendo-se a atual norma nos exatos termos, teremos um incremento de litígios laborais.
Aguardamos, com expetativa, os próximos desenvolvimentos.
Ana Paula Santiago, Associada Sénior da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião na revista digital ADVOCATUS da ECO, sobre as «Novas Medidas Contra o Trabalho Temporário Injustificado», publicado hoje, a 28 de fevereiro de 2023.
A “Agenda do Trabalho Digno” aprovada na Assembleia da República a 10 de fevereiro veio introduzir diversas alterações ao regime do trabalho temporário no Código do Trabalho, das quais destacamos as principais: (i) limite de renovações dos contratos de trabalho temporário a termo certo, (ii) limite de cedências de trabalho temporário, e, (iii) clarificação quanto às condições de trabalho relativas ao trabalhador temporário.
Uma das principais alterações foi a redução do número máximo de renovações dos contratos de trabalho temporário a termo certo, das atuais seis para quatro, estabelecendo a regra: “O contrato de trabalho temporário a termo certo não está sujeito ao limite de duração e, enquanto se mantiver o motivo justificativo, pode ser renovado até quatro vezes.”
Mas mais, ao fim de quatro anos de cedências temporárias pela mesma empresa ou outra que com esta se encontre em relação de domínio, de grupo, ou mantenha estruturas organizativas comuns, a empresa é obrigada a integrar o trabalhador no seu quadro de pessoal, convertendo-se o contrato de cedência temporária em contrato de trabalho por tempo indeterminado.
Foram também clarificadas as condições de trabalho relativas ao trabalhador temporário passando a constar no Código do Trabalho que o trabalhador temporário “tem direito a férias, subsídios de férias e de Natal, bem como outras prestações regulares e periódicas, em dinheiro ou em espécie, a que os trabalhadores do utilizador tenham direito por trabalho igual ou de valor igual”.
As alterações ao regime de renovação e duração dos contratos de trabalho temporário não se aplicará aos contratos celebrados a termo resolutivo celebrados antes da entrada em vigor da nova lei, no que respeita à sua admissibilidade, renovação e duração e à renovação dos contratos de trabalho temporário.
Destas alterações ao regime do trabalho temporário parece resultar que o legislador da “Agenda do Trabalho Digno,” procurou uma aproximação ao regime do trabalho a termo certo, designadamente, ao estabelecer limites máximos mais reduzidos de renovações, de duração e de sucessão de contratos de cedência temporária, diminuindo a flexibilidade das empresas ao recurso a este tipo de contratação temporária.
Não obstante estas novas regras serem mais rigorosas e exigentes para as empresas de trabalho temporário, ainda assim, na prática, poderão revelar-se insuficientes para combater o recurso injustificado ao trabalho temporário, e consequentemente, virem a revelar-se infrutíferas como bandeira contra o trabalho precário.
Por agora resta aguardar pela sua implementação pelas empresas, para podermos comprovar ou não os efeitos dissuasores destas novas medidas no recurso fraudulento ao trabalho temporário.
Joana Fuzeta da Ponte, advogada da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião na revista digital Advocatus da ECO, sobre o «A implementação da semana de quatro dias de trabalho», publicado hoje, 17 de janeiro de 2023.
Cada vez mais as empresas têm centrado a sua preocupação no aumento da produtividade dos trabalhadores.
Tendencialmente, no âmbito de uma perspetiva “tradicional” o aumento da produtividade estava diretamente relacionado com a laboração dos trabalhadores de forma mais intensa, ou seja, produzindo mais no mesmo número de horas.
Essencialmente, durante a pandemia, os trabalhadores passaram a estar cada vez mais disponíveis 24h por dia, sete dias por semana, aumentando o número de horas trabalhadas e a sua disponibilidade constante para responder a emails e chamadas telefónicas.
Significou isto maior produtividade? Ou, por outro lado, será esta a visão atual do conceito de produtividade? Não necessariamente.
Atualmente constata-se que trabalhadores mais descansados trabalham melhor (de forma mais produtiva). Ou seja, é possível ser mais produtivo trabalhando menos horas. Tanto assim é que muitos países iniciaram recentemente a implementação da “semana de quatro dias de trabalho” como em diversas empresas.
Portugal não fica de parte, pois está prestes a iniciar um “Programa-Piloto Semana de 4 dias”, a realizar durante seis meses em empresas do setor privado, com o objetivo de avaliar os impactos desta modalidade de gestão do horário laboral, nas empresas, nos trabalhadores e nas suas famílias.
O Programa-Piloto assenta na prestação de atividade apenas em quatro dias, sem redução salarial e com redução do número de horas semanais dos trabalhadores, durante seis meses, e tem obrigatoriamente de abranger a grande maioria dos trabalhadores. As empresas que se candidatem fazem-no de forma voluntária e reversível, não tendo qualquer comparticipação financeira do Estado, que apenas “providencia suporte técnico e administrativo” no apoio da transição.
Até ao final deste mês, as empresas interessadas devem manifestar o seu interesse em participar no projeto, estando a seleção dos participantes planeada para o próximo mês.
Os meses de março até maio serão de preparação da implementação do projeto que se iniciará em junho durante o período de seis meses.
Para avaliar a eficácia do projeto serão medidos, do lado dos trabalhadores, os efeitos no bem-estar, qualidade de vida, saúde física e mental, bem como a satisfação de prestação de atividade na empresa e intenção de nela permanecer.
Do lado das empresas serão essencialmente objeto de análise a produtividade, competitividade, taxa de absentismo e capacidade de recrutamento.
Estaremos de facto a viver uma “revolução” da gestão da organização de trabalho?
Talvez. Só os próximos tempos irão determinar o sucesso (ou insucesso) da experiência piloto.
Joana Fuzeta da Ponte, advogada da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião na revista digital Advocatus da ECO, sobre o «Reforço das relações coletivas de trabalho e da negociação coletiva na nova legislação laboral», publicado hoje, 27 de dezembro de 2022.
A Agenda do Trabalho Digno, que visa alterar o Código do Trabalho, tem como um dos seus principais objetivos conferir maior dinamismo à negociação coletiva, bem como reforçar as relações coletivas de trabalho.
Isto porque é reconhecido o papel desempenhado pela negociação coletiva na promoção dos direitos dos trabalhadores, na adaptação das empresas à competitividade e na criação de paz social. Por outro lado, a negociação coletiva foi também fortemente impactada pela pandemia provocada pela doença Covid-19.No âmbito desta temática, a Agenda do Trabalho Digno prevê direitos coletivos para os economicamente dependentes. As pessoas em situação de dependência económica passam a ter direito: (i) à representação dos seus interesses socioprofissionais por associação sindical e por comissão de trabalhadores, ainda que delas não possam ser membros; (ii) à negociação de instrumentos de regulamentação coletivas de trabalho negociais, específicos para trabalhadores independentes, através de associações sindicais; (iii) à aplicação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho negociais já existentes e aplicáveis a trabalhadores, nos termos neles previstos.
A Agenda do Trabalho Digno admite também o exercício da atividade sindical na empresa ainda que não existam trabalhadores sindicalizados, mediante condições específicas aplicáveis e desde que não se afete o normal funcionamento da atividade produtiva.
A escolha da convenção coletiva pode não ser possível se o trabalhador já se encontrar abrangido por portaria de extensão e a emissão da portaria de extensão afasta a aplicação de convenção que tenha, eventualmente, sido escolhida.
A par das referidas alterações, o novo regime prevê que em caso de denúncia de convenção coletiva a parte destinatária pode requerer ao Presidente do Conselho Económico e Social arbitragem para apreciação da fundamentação da denúncia, a qual suspende os seus efeitos, impedindo a convenção de entrar em regime de sobrevigência.
As medidas previstas na Agenda do Trabalho Digno permitem, por outro lado, reforçar de modo inovador o papel dos instrumentos já existentes na lei, e nomeadamente das decisões resultantes de arbitragem necessária, tornando-os mais efetivos na prevenção de vazios de cobertura da negociação coletiva, reforçando-se, ainda, o papel da arbitragem na apreciação da fundamentação invocada para a denúncia de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho
Cada vez mais, as alterações pretendem caminhar para uma negociação coletiva que, quando equilibrada e bem-sucedida, garante a adaptabilidade da legislação laboral às especificidades do setor ou da empresa e o aumento da produtividade empresarial.
Em suma: sendo reconhecida a importância da negociação coletiva, a Agenda do Trabalho Digno procurou dinamizar a sua utilização, criando novas regras nesse sentido.
Guilherme Dray, sócio da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião no jornal Expresso sobre o «Algorithm Management e a Necessidade de Humanização da Gestão», publicado no dia 23 de dezembro de 2022.
A gestão algorítmica do trabalho veio para ficar.
Seja ao nível da seleção de trabalhadores, em matéria de distribuição de tarefas ou em sede de cessação do contrato de trabalho, o recurso a algoritmos para substituir a ação humana e para efeitos de exercício do poder de direção por parte das empresas é um hoje um dado incontornável.
Em matéria de seleção de trabalhadores, os algoritmos já são atualmente utilizados no habitualmente denominado employment background check. Ou seja, os algoritmos são utilizados para selecionar perfis de candidatos a emprego com base em determinados critérios, tais como, o facto de alguém estar (ou não) empregado, as suas qualificações, a Universidade onde estudou, a idade, o género, a nacionalidade, o local de residência, o passado criminal ou mesmo questões mais íntimas, como sejam as convicções políticas, religiosas, a orientação sexual ou a situação familiar do candidato(a) a emprego.
Em matéria de execução do contrato de trabalho, os algoritmos são utilizados para distribuir tarefas, criar escalas e horários de trabalho, avaliar a performance do trabalhador, criar ratings sobre o respetivo desempenho, determinar a sua progressão (ou não) na carreira e a atribuição de prémios de produtividade, bem como, em particular no âmbito das plataformas digitais, para desconectar e afastar o trabalhador caso o seu desempenho não seja considerado o mais adequado.
Em matéria de cessação do contrato de trabalho, os algoritmos já são utilizados para efeitos de seleção dos trabalhadores a despedir, seja em processos de despedimento por extinção do posto de trabalho, seja em despedimentos coletivos, com base em parâmetros que medem, nomeadamente, a assiduidade e o absentismo do trabalhador.
Os algoritmos vieram para ficar e a digitalização e automação do trabalho parece irreversível.
Podem ser benéficos, em matéria de gestão laboral, por garantirem maior eficiência e objetividade nas decisões, mas podem também ser perniciosos, discriminatórios e profundamente injustos na abordagem dos temas acima referidos.
Por essa razão, atenta a falta de transparência que lhes está associada, a falta de controlo humano que lhes está subjacente e, acima de tudo, a injustiça que pode resultar do facto de no futuro sermos exclusivamente “controlados” e “geridos” por algoritmos, diversas instâncias internacionais têm reclamado a necessidade de os regulamentar e “humanizar”, garantindo justiça, transparência e responsabilização.
A União Europeia, na proposta de Diretiva do Parlamento e do Conselho sobre a melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais, de 9/12/2021, preconiza a regulamentação dos algoritmos, através das seguintes regras:
- Artigo 6.º: estabelece um dever de transparência, determinando que o empregador deve informar o trabalhador sobre a utilização de algoritmos para controlar, supervisionar ou avaliar o seu desempenho;
- Artigo 7.º: impõe a necessidade de as empresas garantirem o controlo humano sobre a gestão algorítmica, devendo ser assegurada a existência de um profissional capacitado e com autoridade que fique responsável por controlar as decisões tomadas por algoritmos;
- Artigo 8.º: confere aos trabalhadores o direito de reclamarem perante uma pessoa qualificada da empresa sobre decisões tomadas com base em algoritmos, podendo pedir-lhe explicações e requerer a sua eventual revisão.
A nível nacional, a “Agenda Para o Trabalho Digno”, que deverá ser aprovada ainda este ano na Assembleia da República e que altera o Código do Trabalho, também consagra novas regras sobre o tema, que deverão entrar em vigor em 1 de janeiro de 2023, a saber:
- Artigo 3.º, n.º 3: estabelece que os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho apenas podem dispor sobre gestão algorítmica se o fizerem em sentido mais favorável ao trabalhador;
- Artigo 24.º: determina que as decisões tomadas com base em algoritmos não podem ser discriminatórias;
- Artigo 106.º: estabelece que o empregador deve informar o trabalhador sobre os parâmetros, as regras e as instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisões sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como as condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da atividade profissional; e
- Artigo 424.º: estabelece que as comissões de trabalhadores têm também o direito de ser informadas sobre as mesmas questões.
A ideia é clara: mais do que assistir ao seu crescimento sem nada fazer, importa regular a gestão algorítmica, de modo a combater a sua opacidade, a impedir práticas discriminatórias e a garantir a revisão humana das decisões tomadas com base em algoritmos.
O ano de 2023 vai trazer novidades sobre esta matéria. E as novidades apontam num sentido único: garantir a “humanização” da gestão empresarial.
Este artigo foi publicado no Jornal de Negócios no dia de hoje, 20-10-2022.
Depois de um prolongado e complexo processo legislativo, a Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018[1], também conhecida por “Diretiva ECN+”, foi (tardiamente) transposta pela Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto.
A Lei n.º 17/2022 introduz significativas alterações à Lei da Concorrência (aprovada pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio), assim como aos Estatutos da Autoridade da Concorrência (“AdC”). Essas alterações são aplicáveis aos procedimentos desencadeados a partir de 16 de setembro de 2022, data da sua entrada em vigor.
Para uma melhor perceção do contexto da Diretiva ECN+ e da (tão) aguardada lei nacional de transposição, deve salientar-se que a Diretiva ECN+ apenas se aplica aos artigos 101.º (práticas restritivas da concorrência) e 102.º (abusos de posição dominante) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), que são suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros.
A aplicação destas regras de concorrência é assegurada pelas autoridades nacionais da concorrência (“ANC”), como é o caso da AdC, em paralelo com a Comissão Europeia, ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 1/2003[2], integrando a designada “Rede Europeia da Concorrência”.
A Diretiva ECN+ visa assegurar que as ANC dispõem de garantias de independência, de meios e de competência de execução e aplicação das coimas necessárias de modo a conseguirem aplicar, de forma eficaz, os artigos 101.º e 102.º do TFUE, mas acabará necessariamente por influenciar o Direito nacional da concorrência, em particular, quando este seja aplicado em paralelo, o que ocorre na maioria dos casos.
O objetivo fundamental da Diretiva ECN+ é a harmonização processual e procedimental, fruto do modelo descentralizado trazido pelo Regulamento (CE) n.º 1/2003 e de uma crescente integração (não isenta de críticas) do “public enforcement” das regras de Direito da concorrência entre os 27 Estados-membros.
De entre as alterações introduzidas à Lei da Concorrência, destacam-se as alterações relativas:
(i) Ao reforço dos poderes de investigação da AdC, em particular no âmbito dos poderes de busca, exame, recolha e apreensão, incluindo buscas domiciliárias;
(ii) Aos prazos de recurso de decisões finais, que passam de 30 dias úteis para 60 dias, e ao efeito dos recursos de decisões sancionatórias, que terão efeito suspensivo quando o visado efetue o pagamento do valor total da coima ou de uma caução no valor de 50% da coima;
(iii) À prescrição do procedimento por infração, que passa a suspender-se pelo prazo que a decisão da AdC for objeto de recurso judicial, sem que exista uma limitação temporal, o que constitui uma alteração, no mínimo, discutível, por excessiva e desproporcional, e em violação dos princípios de segurança e certeza jurídica; e
(iv) Às coimas, passando a aplicar-se um limite máximo de 10% do volume de negócios total, a nível mundial (e não nacional), das empresas infratoras.
Nem todas as alterações introduzidas resultam da transposição da Diretiva ECN+, verificando-se, em alguns aspetos, um extravasar do previsto na Diretiva.
Assiste-se a uma reforma do regime de concorrência vigente, que surge, quase como despercebida (pelo menos, para já), suscitando diversas dúvidas ao nível da sua certeza e segurança jurídica. Antecipa-se assim um aumento da litigância, com um efeito contraproducente em relação ao objetivo último de integração do “public enforcement” das regras de concorrência nos diversos Estados-membros.
É, por isso, muito importante que as empresas se preparem para fazer face a estas novas alterações, com a adoção de programas de compliance no âmbito do Direito da concorrência, que devem consciencializar e sensibilizar os seus colaboradores para as práticas permitidas e proibidas, com uma enumeração de “To-Do and To-Don’t” e realçar as possíveis consequências de uma infração, nomeadamente, sanções financeiras, danos reputacionais, perda de clientela e de mercado, responsabilidade contraordenacional e criminal, incluindo dos seus órgãos de direção. Mas não só!
As empresas devem estar preparadas para reagir em casos de inspeções (dawn raids) da AdC, conhecendo quais são os seus direitos e deveres, que meios de tutela têm à sua disposição, que informação deve e pode ser transmitida à AdC.
Só um programa de compliance robusto, mas simultaneamente simples, direto e acessível, conseguirá responder eficazmente a estas exigências e às novas alterações, que terão repercussões, quer, na parte de deteção, bem como na parte de repressão de infrações, com um reforço dos poderes da AdC e um previsível aumento das coimas aplicáveis.
Poderá, assim, ser caso para dizer que, a coberto da transposição da Diretiva ECN+, a Lei da Concorrência tornar-se-á uma “Lei da Concorrência +”.
O Secretário de Estado da Energia português anunciou recentemente um aumento da tarifa paga aos produtores pela eletricidade (FiT) resultante dos leilões de 2019 e 2020. Este aumento corresponderá à taxa de inflação de 2022 e 2023. A lógica desta medida consiste em salvar até 700MW de projetos de PV adjudicados nos leilões que, devido ao seu FiT muito baixo, não são financiáveis e, por conseguinte, correm o risco de não serem concluídos. O governo português argumenta que as atuais circunstâncias inflacionistas excecionais justificam esta medida, mas apenas para os projetos com tarifas muito baixas (começando no histórico mínimo de 11,14Eur /MWh!). Esta situação mostra que, em certa medida, o modelo de leilão 2019-2022 teve as suas falhas, uma vez que privilegiou a fixação de preços arrojados, aceitando o risco de ter projetos não financiáveis. Entendemos que o aumento dos benefícios para as energias renováveis não é politicamente fácil de vender quando as energias renováveis estão no centro das atenções e a receber "benefícios de excecionais" do mercado da eletricidade. Mas, ao resgatar alguns desses projetos que não cumprem as suas obrigações de leilão devido aos preços anormalmente baixos oferecidos pelos seus promotores, o governo português está a absorver o risco de inflação para alguns, mas não para todos os projetos fotovoltaicos adjudicados nesses leilões.
Por isso, a primeira questão que se põe é a seguinte: "Onde é que vamos traçar a linha para este resgate?". Parece que a linha será traçada abaixo de um determinado preço para permitir poupar 700MWh em projetos. Qual é o preço e quais são os critérios para defini-lo? Sabemos que a viabilidade não depende apenas do preço, mas também, entre outros, dos custos de desenvolvimento que são diferentes de um projeto para o outro. Se a ideia é resgatar todos os projetos, independentemente de outros aspetos (incluindo a própria “bancabilidade” do promotor), estamos a distorcer o mercado e, mais do que isso, estamos a distorcer as condições do leilão, bem como as regras de contratação pública. Nestes casos, os termos e condições de um leilão só podem ser alterados se essas alterações não afetarem a concorrência entre todos os proponentes.
Pela mesmo motivo, podemos questionar por que razão excluímos qualquer ajustamento àqueles que optaram por pagar uma indemnização ao sistema elétrico e pagaram um montante elevado para corresponder às ofertas equivalentes da FiT. Em regra, especialmente depois de terem sido adjudicados os projetos, não deve ser permitido à entidade adjudicante favorecer os proponentes que fizeram ofertas mais baixas contra aqueles que prudentemente ofereceram preços mais elevados ou escolheram o mecanismo de compensação (que supostamente tem um peso financeiro idêntico ao correspondente das ofertas de preços fixos). Outros licitadores, se pudessem ter antecipado esta correção da inflação, poderiam ter feito ofertas FiT mais baixas.
Parece, portanto, claro que, a menos que as bases para esta medida sejam explicadas muito claramente, aqueles que ficarão de fora podem sentir-se tentados a contestar a legalidade do aumento da tarifa que o governo português está a oferecer uns excluindo outros.
Mas, pondo de lado as questões jurídicas, perguntamo-nos até que ponto esta medida será bem-sucedida. Será que um ajustamento à inflação de 2022 e 2023 (algo como 9% e 5% respetivamente) será suficiente para salvar projetos com o compromisso de vender cada MWh a 11 euros ou outro valor similar? Para alguns, provavelmente não. E para a maioria provavelmente não será um impulso tão significativo. Perguntamo-nos porque é que o governo português apenas considerou a atualização inflacionista da FIT e não teve em conta outras medidas como a redução dos 15 anos de compromisso com sistema para 12 ou mesmo para 10 anos. Isto seria mais eficaz a facilitar o financiamento dos projetos, sem custos imediatos para os consumidores. Naturalmente, esta redução da duração do compromisso deveria aplicar-se a todos do mesmo modo, incluindo os proponentes que optaram por pagar uma compensação ao sistema.
André Vasques Dias, sócio da MACEDO VITORINO, partilha a sua opinião na revista "Comunicações" da APDC, publicada no dia 20 de setembro de 2022 sobre o Cripto Crash e a fragilidade do dinheiro digital.
André Vasques Dias, não tem dúvidas de que a hecatombe de maio foi apenas uma crise de crescimento: “O ecossistema vai arrefecer um pouco, mas não é o fim, muito pelo contrário. Na verdade, ainda estamos no início de tudo isto e estou convicto de que o fenómeno das criptomoedas é irreversível. Há muitas empresas que já dependem da bitcoin e vão tentar preservar este valor”. Neste momento, os pequenos investidores receiam voltar a confiar em ativos que se revelaram tão voláteis, mas não é esse o caso dos fundos de investimento: “Acredito que, agora, quem está a comprar criptomoeda são os grandes fundos”, partilha.
O CRIPTO VALLEY DA EUROPA
A criatividade e complexidade deste novo universo financeiro levantou, desde logo, grandes questões às autoridades no âmbito fiscal, tanto relativamente à compra e venda de criptomoedas, como de outros criptoativos. O que existe até hoje são medidas avulsas destinadas a controlar este tipo de rendimentos. Mas Portugal não se encontra entre os países que as decretaram. Quando, em 2016, a administração fiscal comunicou que as criptomoedas não estavam sujeitas a tributação, a não ser que a sua transação fosse fonte de negócio (nesses casos seria exigida apenas a tributação que se cobra a qualquer outro empresário), houve muitos investidores financeiros e empreendedores com projetos na área dos ativos virtuais que se mudaram, ou transferiram a sua residência fiscal, para Portugal. Sem cobrar IRS sobre as mais-valias e com o enquadramento fiscal de um conjunto de atividades relacionadas com negócios virtuais em aberto, o país ganhou fama de paraíso fiscal para os criptonegócios.
À acusação que muitos têm feito às autoridades portuguesas de inação, André Vasques Dias responde com cautela: “A tecnologia que está subjacente a estes ativos – a blockchain – tem algumas vantagens e terá muitas aplicações no futuro, portanto houve receio de, numa fase em que ainda se estava a desenvolver essa tecnologia, introduzir regulamentação que parasse esse progresso”. Sublinhando que, pelos mesmos motivos, as autoridades a nível europeu também não foram muito incisivas, compreende que Portugal tenha decidido esperar que houvesse uma abordagem europeia ao tema. Algo que está em curso e de que já resultou uma proposta de enquadramento regulatório, a MiCA (Markets in Crypto-Assets), que foi apresentada pela Comissão Europeia em setembro de 2020 e após negociações entre as instituições comunitárias foi objeto de um acordo provisório no final de junho deste ano, estimando-se que entre em vigor em 2024. Por norma, um vazio fiscal afasta investidores, mas no universo cripto, criado para viver sem regras, essa notícia soou a música celestial a muita gente. Nos anos que antecederam o crash, sobretudo a partir do início da pandemia, Portugal foi o el dorado europeu dos investidores em criptonegócios. A um regime fiscal favorável aos não residentes somava boas infraestruturas de comunicações, boa publicidade trazida pela Web Summit, bom ecossistema digital para incubação de novos negócios e, sobretudo, a ausência de taxação de mais-valias nas transações feitas com criptomoedas. melhor era difícil. Entre julho de 2020 e junho de 2021, trocaram de mãos em Portugal cerca de 27 mil milhões de euros em criptomoedas, segundo dados da Chainalysis. Foi o nono maior volume de negócios entre 30 países europeus. De acordo com a mesma fonte, estimava-se que os investidores localizados em Portugal teriam realizado ganhos, nas suas transações em moedas digitais, de 1,3 mil milhões de euros.
O entusiasmo foi de tal ordem que em fevereiro deste ano espalhou-se a notícia de que o holandês Didi Taihuttu, um dos maiores embaixadores mundiais da bitcoin, estava a criar a primeira criptoaldeia da Europa no Algarve. Já instalado no país, Taihuttu dizia, nas entrevistas que deu aos media sobre o projeto, que Portugal tinha “os ingredientes perfeitos para ser o país da bitcoin”.
Com a legislação europeia a caminho, há, porém, quem receie que mais do que o crash, seja a regulação a arrefecer o clima que se gerou no país em torno destes negócios. António Ferrão teme que por arrasto a política fiscal portuguesa se modifique: “Claro que nenhuma atividade económica deve estar isenta de impostos, mas acho que Portugal vai cometer um erro grave se tentar alinhar pela Europa”, começa por dizer. “Portugal foi capaz de atrair um volume significativo de investidores que se mudaram para cá, em busca de vantagens fiscais, mas que irão reagir se o panorama se alterar. Na minha opinião existe uma oportunidade que não deve ser desperdiçada de diferenciar e reter este capital no nosso país”, defende, sem esconder a preocupação. A sua experiência à frente da Portugal Fintech Association permite-lhe antever os problemas que a legislação vai causar às fintechs: “Três meses para uma startup é muito tempo e o regulador europeu está a regular a três e a quatro anos. O desafio vai ser perceber como é que a regulação vai acompanhar as evoluções seguintes das startups”.
António Ferrão reconhece, contudo, que “neste processo têm sido ouvidas as startups e associações do setor e que haver regras a nível europeu permite trazer estabilidade e transparência”. Algo que “num momento como o que passamos atualmente, é positivo e alavancador de crescimento.
Mesmo num contexto em que a regulação possa não responder a todos os desejos das startups e seus stakeholders”.
Idênticas preocupações levaram, recentemente, à união de três associações de cripto – a Aliança Portuguesa de Blockchain, a Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas e o instituto New Economy. O seu objetivo é trabalhar com as autoridades portuguesas na criação de um enquadramento legal para o desenvolvimento do ecossistema da Web 3 que seja bem acolhido pelos empreendedores e investidores. Designada por FACE, a federação sustenta que “o problema não é pagar impostos, é garantir que são justos, competitivos e claros, sem criar medo de serem retroativos”.
Em contrapartida, a chegada do MiCA não provoca quaisquer apreensões ao advogado André Vasques Dias, para quem a necessidade de regular estas atividades não tem sequer discussão: “O MiCA vai, entre outras coisas, assegurar que quem está envolvido nestas transações são só entidades consideradas credíveis, ou seja, que têm know-how, boas práticas e experiência de mercado. Isso implicará mais transparência, que é aquilo de que precisamos para proteger as pessoas que investem em criptoativos”.
Uma das reservas que se colocam à aplicação de regras a este novo mundo é que, de alguma forma, isso vai descaracterizá-lo, mas André Vasques Dias não tem dificuldade em desmontar este argumento: “As pessoas dizem que, por ser descentralizado, este sistema não pode ser controlado e manipulado por ninguém, mas a realidade veio demonstrar que isso não é verdade. Porque com uma das moedas mais populares, verificou-se que podia haver manipulação. Aquilo que veio a descobrir-se é que era possível, à pessoa que estava a fazer o processamento das transações, aperceber-se no caso de haver uma proposta de compra ou venda muito avultada (com impacto no preço das moedas), a tempo de introduzir a sua ordem de transação de forma a beneficiar da oscilação de preços. Ora isto é grave! Se um banco fizesse isto, seria considerado crime, mas como este mercado não está regulado, nada se fez. É o faroeste!”
Daí que o advogado da MACEDO VITORINO veja com naturalidade a urgência de dar um passo em direção à regulação: “Claro que a regulação vai fazer com que a evolução desta tecnologia seja mais lenta, mas as pessoas que querem investir neste mercado vão ser mais protegidas, ou pelo menos vão ter mais informação para tomarem as suas decisões de investimento, o que é muito importante”.
António Ferrão admite que as fraudes são mais fáceis de cometer num meio desregulado. A criação de esquemas de Ponzi a partir de initial coin offering (iCO), é um exemplo de como finanças descentralizadas podem ser mal utilizadas, mas recusa que coloquem a este meio o epíteto de caótico: “Não acho que este meio seja caótico, pelo contrário é organizado, transparente, e até certo ponto mais colaborativo que o ecossistema tradicional. Penso que esse é até um ponto que o torna mais atrativo. Uma transferência internacional não é ainda um processo simples e instantâneo e na prática é igual há dezenas de anos. Graças a este novo ecossistema, o sistema financeiro mundial mudou mais nos últimos 20 anos do que nos anteriores 500”.
Olhando o futuro, o diretor da Fintech Solutions vê a normalização do cripto universo: “Esta fase dos grandes lucros vai acabar, a tecnologia vai estabilizar. Se se olhar para as cripto de forma menos aventureira, o conceito do euro digital, de que se fala agora, vai parecer mais natural”.
Sim, o euro digital vem aí porque, como diz o ditado, “se não podes eliminá-los, junta-te a eles” e o sistema tradicional já assumiu que as moedas virtuais vieram para ficar e talvez, a prazo, acabar com as outras.
Será que, com o tempo, o modelo financeiro que nasceu rebelde criará as adiposidades típicas dos que se acomodam ao sistema? Talvez. Mas não é assim que acabam todos os que um dia foram jovens e rebeldes?
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