Foi recentemente alterado o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional. O mesmo diploma que alterou o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional criou ainda as condições para a implementação do Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). As alterações visam atrair uma nova vaga de imigração para o país, de forma regulada e integrada, que pode contribuir para o respetivo desenvolvimento e mitigar a falta de mão de obra que se sente em Portugal. Entre as principais medidas destacam-se as seguintes:
O novo visto para a procura de trabalho permite a entrada de estrangeiros em Portugal para procurarem novos postos de trabalho. O visto tem a duração máxima de 120 dias, prorrogável por mais 60 dias. Tendo em vista a simplificação de procedimentos, o visto integra o agendamento junto dos serviços competentes pela concessão de autorizações de residência, dentro dos 120 dias de duração do visto, conferindo o direito a requerer uma autorização de residência, após a constituição e formalização da relação de trabalho naquele período.
Nas situações em que o requerente de um visto seja nacional de um Estado em que esteja em vigor o Acordo sobre Mobilidade entre os Estados Membros da CPLP, o procedimento para emissão de vistos é facilitado. Para a maior agilização do processo contribuíram as seguintes alterações: (i) dispensa do parecer prévio do Serviço de Estrageiros e Fronteiras (“SEF”); (ii) Consulta direta e imediata das bases de dados do Sistema de Informação Schengen pelos serviços competentes; (iii) recusa da emissão de vistos limitada às situações nas quais exista indicação de proibição de entrada e permanência no Sistema de Informação Shengen.
O novo visto aplica-se ao trabalho remoto realizado por pessoas que trabalham em Portugal (v.g. nómadas digitais), em regime laboral ou independente, em benefício de entidades com domicílio ou sede fora do nosso país.
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Nesta terça-feira, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) decidiu, no âmbito dos processos C?793/19 e C?794/19, que uma legislação nacional que imponha aos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas uma conservação indiscriminada de dados de tráfego e de localização dos seus clientes é contrária ao direito da União Europeia (UE), salvo quando haja uma séria ameaça à segurança nacional. No caso em análise, foram apresentados dois pedidos de decisão prejudicial ao TJUE pelo Supremo Tribunal Administrativo Federal alemão, no âmbito dos litígios que opõem a República Federal da Alemanha, representada pela Bundesnetzagentur für Elektrizität, Gas, Telekommunikation, Post und Eisenbahnen (Agência Federal das Redes de Eletricidade, do Gás, das Telecomunicações, dos Correios e dos Caminhos de ferro, Alemanha), aos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas alemães, SpaceNet AG e Telekom Deutschland GmbH. Estas duas empresas alemães contestaram junto do Tribunal Administrativo de Colónia a obrigação que lhes é imposta pelas disposições conjugadas do § 113a, n.° 1, e do § 113b da Lei das Comunicações Eletrónicas alemã (TKG) de conservarem os dados de tráfego e os dados de localização relativos às telecomunicações dos seus clientes a partir de 1 de julho de 2017. Por acórdãos de 20 de abril de 2018, o Tribunal Administrativo de Colónia declarou que a SpaceNet e a Telekom Deutschland não eram obrigadas a conservar os dados de tráfego relativos às telecomunicações dos seus clientes. A República Federal da Alemanha interpôs recursos para o Supremo Tribunal Administrativo Federal que decidiu suspender a instância e submeter questão prejudicial ao TJUE. O Supremo Tribunal Administrativo Federal pretende saber se o artigo 15.° da Diretiva 2002/58/CE, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva Relativa à Privacidade e às Comunicações Eletrónicas), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que obriga os prestadores de serviços de comunicações eletrónicas a conservarem os dados de tráfego e de localização dos seus clientes. Em sede de decisão prejudicial, o TJUE considerou que o artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2002/58 deve ser interpretado no sentido de que: - Se opõe a medidas legislativas nacionais que preveem, a título preventivo, para efeitos da luta contra a criminalidade grave e da prevenção de ameaças graves contra a segurança pública, uma conservação generalizada e indiferenciada dos dados de tráfego e dos dados de localização; - Não se opõe a medidas legislativas nacionais que: |
Permitem, para efeitos da salvaguarda da segurança nacional, impor aos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas que procedam a uma conservação generalizada e
indiferenciada de dados de tráfego e de dados de localização, em situações em que o Estado?Membro em causa enfrenta uma ameaça grave para a segurança nacional que se revela real e atual ou previsível, desde que a decisão que prevê tal imposição possa ser objeto de fiscalização efetiva quer por um órgão jurisdicional quer por uma entidade administrativa independente, cuja decisão produza efeitos vinculativos, destinada a verificar a existência de uma dessas situações e o respeito pelos requisitos e pelas garantias que devem estar previstos, bem como da referida imposição apenas possa ser aplicada por um período temporalmente limitado ao estritamente necessário, mas renovável em caso de persistência dessa ameaça; Preveem, para efeitos da salvaguarda da segurança nacional, da luta contra a criminalidade grave e da prevenção de ameaças graves contra a segurança pública os seguintes: - uma conservação seletiva dos dados de tráfego e dos dados de localização que seja delimitada, com base em elementos objetivos e não discriminatórios, em função das categorias de pessoas em causa ou através de um critério geográfico, por um período temporalmente limitado ao estritamente necessário, mas renovável; - uma conservação generalizada e indiferenciada dos endereços IP atribuídos à fonte de uma ligação, por um período temporalmente limitado ao estritamente necessário; - uma conservação generalizada e indiferenciada de dados relativos à identidade civil dos utilizadores de meios de comunicações eletrónicos; e - permitem, para efeitos da luta contra a criminalidade grave e, a fortiori, da salvaguarda da segurança nacional, impor aos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas, através de uma decisão da autoridade competente sujeita a fiscalização jurisdicional efetiva, que procedam, por um determinado período, à conservação rápida dos dados de tráfego e dos dados de localização de que esses prestadores de serviços dispõem, desde que essas medidas assegurem, através de regras claras e precisas, que a conservação dos dados em causa está sujeita ao respeito das respetivas condições materiais e processuais e que as pessoas em causa dispõem de garantias efetivas contra os riscos de abuso. O TJUE confirma, assim, que o direito da União impede a retenção geral e indiscriminada de dados de tráfego e localização, salvo em casos excecionais de ameaça grave à segurança nacional. A fim de combater a criminalidade, os Estados-Membros podem, no estrito respeito pelo princípio da proporcionalidade, prever, inter alia, a retenção específica ou rápida de tais dados e a retenção geral e indiscriminada de endereços IP (Internet Protocol). Esta decisão poderá vir, assim, a constituir um revés para os Estados-membros que apostem em leis de retenção de dados em massa para combater o crime e salvaguardar a segurança nacional. |
Entrou em vigor a Lei n.º 17/2022 de 17 de agosto (“Lei n.º 17/2022” ou “Lei”), que transpõe a Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018 (“Diretiva ECN+” ou “Diretiva”), que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno. No quadro da transposição da Diretiva cujo prazo foi, aliás, largamente ultrapassado, o Governo apresentou um conjunto de alterações mais profundas quer ao Regime Jurídico da Concorrência (ou “RJC”), aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, quer aos Estatutos da Autoridade da Concorrência (“AdC”). O processo foi longo, participado e controvertido. O resultado, embora aquém do que havia sido inicialmente projetado pelos seus autores materiais (a AdC foi encarregue de apresentar um anteprojeto de Lei ao Governo), impacta de forma substancial na atividade das empresas. O diploma final beneficiou da reflexão e dos alertas da comunidade jurídica, tendo por isso sido substancialmente alterado face à proposta inicial, designadamente, foi retirada a possibilidade de a AdC apreender correspondência por meios eletrónicos para utilização como meio de prova em processo não criminal. Esta possibilidade suscitou forte oposição, com fundadas dúvidas de constitucionalidade, designadamente por eventual violação do artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa, embora não se ignorando que, nesta sede, se pode discutir se não se tratava de decorrência direta (e vinculativa) da Diretiva beneficiária do primado do Direito da União sobre o direito interno, incluindo Constitucional. O legislador deu respaldo às dúvidas sobre a constitucionalidade da solução preconizada, ficando vedado à AdC o acesso, com ou sem aviso prévio, a correspondência não lida ou apagada. Adiante, sumariza-se, sem exaustividade, as principais alterações introduzidas ao Regime Jurídico da Concorrência. 1. Reforço dos poderes da AdC Como já referido, a Lei, ao não prever a possibilidade de apreensão de correspondência por meios eletrónicos, para utilização como meio de prova, limitou o reforço de poderes pretendido pela AdC. Ainda assim, sublinham-se dois aspetos relevantes de reforço: |
Buscas, exame, recolha e apreensão:a Lei vem prever a possibilidade de a AdC, devidamente autorizada pela autoridade judiciária competente, aceder sem aviso prévio a todas as instalações, terrenos, meios de transporte, dispositivos ou equipamentos da empresa, ou à mesma afetos. A expressão “à mesma afetos” suscitará dúvidas e um
- risco de litigância significativos. A prudência e a certeza jurídica desaconselhariam a inclusão desta expressão; - Buscas domiciliárias: passaram também a ser possíveis para as situações relativas a abusos de dependência económica (a anterior lei permitia “apenas” para as práticas restritivas da concorrência e abusos de posição dominante). 2. Transação A Lei altera o paradigma da transação, afastando-o de uma decisão condenatória e aproximando-o de uma decisão compromissória.Com efeito, deixam de se considerar factos confessados para factos aceites pelo visado ou a que este renunciou contestar, deixando, consequentemente, de existir uma decisão condenatória para passar a ser uma decisão definitiva quanto à transação. 3. Prazos O RJC revisto veio proceder a alterações de prazos para um conjunto de situações, designadamente: - Regra geral: mantém-se a possibilidade de a prorrogação ocorrer por única vez, mas agora limita-se a 30 dias e já não por período igual, o que tem impacto nos casos em que por decisão da AdC o prazo prorrogado era superior; - Pronúncia à nota de ilicitude: passou de um mínimo de 20 para 30 dias úteis; - Recursos de decisões interlocutórias: fica claro que o prazo é de 20 dias úteis; - Recurso de decisões finais: passou de 30 dias úteis para 60 dias. Como nota final sobre esta matéria, desde já se refere que teria sido aconselhável que, não obstante as naturezas diversas das entidades envolvidas, tivesse sido harmonizado o critério para a contagem dos prazos. 4. Prescrição O legislador veio determinar a suspensão, sine die, da prescrição do procedimento por infração. Esta solução constitui, como bem referiu o Supremo Tribunal Administrativo, “um desvio ao regime da prescrição” previsto no diploma que institui o Ilícito de mera ordenação social que determina que a “prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, com o inerente sacrifício dos princípios da certeza e segurança jurídicas”. 5. Recursos No que concerne aos recursos das decisões da AdC, assinala-se, por um lado, que se mantém a regra geral do seu efeito meramente devolutivo. Por outro lado, nos casos em que ao visado sejam impostas coimas ou outras sanções, deixa de ser exigida a demonstração de que a execução da decisão final lhe causaria prejuízo considerável, para além da prestação da caução. No novo regime, o visado pode requerer a suspensão da decisão desde que preste caução no valor de metade da coima aplicada.
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A Autoridade da Concorrência (AdC) sancionou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) por ter realizado uma operação de concentração sem notificação prévia, ou seja, sem antes obter a necessária decisão de não oposição da AdC.
A operação de concentração consistiu na aquisição de 54,98% do capital social da CVP – Sociedade de Gestão Hospitalar, S.A. (SG CVP), sociedade gestora do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, pela SCML.
A Lei da Concorrência impõe a notificação prévia das operações de concentração quando esteja preenchida uma das seguintes condições:
- Critério da quota de mercado: Em consequência da sua realização se adquira, crie ou reforce uma quota igual ou superior a 50% no mercado nacional de determinado bem ou serviço, ou numa parte substancial deste;
- Critério do volume de negócios: O conjunto das empresas que participam na concentração tenha realizado em Portugal, no último exercício, um volume de negócios superior a 100 milhões de euros, líquidos dos impostos com este diretamente relacionados, desde que o volume de negócios realizado individualmente em Portugal por pelo menos duas dessas empresas seja superior a cinco milhões de euros; ou
- Critério combinado: Em consequência da sua realização se adquira, crie ou reforce uma quota igual ou superior a 30% e inferior a 50% no mercado nacional de determinado bem ou serviço, ou numa parte substancial deste, desde que o volume de negócios realizado individualmente em Portugal, no último exercício, por pelo menos duas das empresas que participam na operação de concentração seja superior a cinco milhões de euros, líquidos dos impostos com estes diretamente relacionados.
No caso concreto, a obrigatoriedade de notificação prévia por parte da SCML prende-se ao critério do volume de negócios, em particular, se a parcela afeta à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa decorrente dos resultados líquidos realizados com a exploração dos Jogos Sociais deve, ou não, ser contabilizada como volume de negócios consolidado.
Sobre este aspeto, o entendimento da SCML e da AdC é divergente. A SCML considerou que as receitas referidas resultantes da exploração dos jogos sociais não integravam o respetivo volume de negócios aquando da concretização da transação em causa, pelo que não estaria preenchido nenhum dos critérios de notificação prévia (volume de negócios ou quota de mercado).
Pelo contrário, a AdC considerou que o volume de negócios gerado pela atividade de exploração dos jogos sociais deveria ser imputado ao Departamento de Jogos e, numa perspetiva de grupo, à SCML, ainda que contabilizando apenas a parcela correspondente e afeta à atividade da SCML – em concreto, no que se refere ao ano de 2019, o montante de €[>100 milhões de euros], a que acrescia ainda o valor relativo a vendas e prestação de serviços da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (€ [100 milhões de euros].
As operações de concentração que preencham um dos critérios acima referidos – no caso, segundo a AdC, o critério do volume de negócios –, devem ser notificadas à AdC, o mais tardar, após a conclusão do acordo, mas ainda antes de realizadas. Desta forma, a AdC exerce um controlo efetivo de todas as operações de concentrações que sejam de notificação obrigatória. O sistema de notificação ex ante e a não realização de operações antes de aprovadas pela AdC (a denominada obrigação de “standstill”) constitui o pilar de todo o sistema e a garantia imprescindível para a sua eficácia.
No caso concreto, a operação de concentração (de aquisição de controlo exclusivo) realizou-se no dia 14 de dezembro de 2020, tendo a SCML procedido à respetiva notificação à AdC no dia 28 de maio de 2021, já depois de concretizada. O processo de notificação foi objeto de decisão de não oposição da AdC em 6 de julho de 2021.
Em consequência, a AdC entendeu que a SCML praticou duas infrações: (i) violação à obrigação de notificar a concentração antes da sua realização; e (ii) violação à obrigação de não realizar essa concentração antes de uma decisão de não oposição proferida pela AdC.
A AdC considerou que a SCML tinha à sua disposição todos os meios que lhe permitiriam cumprir a lei, uma vez que todas as questões sobre a operação poderiam ter sido colocadas à AdC antes de a operação ser realizada.
A SCML foi condenada ao pagamento de uma coima no valor total de €2.5 milhões de euros, mas poderá ainda recorrer desta decisão.
Este caso é, sem dúvida, um caso merecedor de nota, pois, não são raras as vezes que se colocam questões quanto ao preenchimento dos critérios de notificação prévia à AdC. Quando assim for, é recomendável fazer uso do mecanismo de avaliação prévia, o qual não deverá, à partida, ser excluído pelas partes a coberto de uma conclusão mais expedita da operação.
Se a operação estiver sujeita a notificação prévia e não for notificada, o risco de uma coima elevada (para além de outras consequências, como a suspensão dos direitos de voto), poderá ser bastante prejudicial, uma vez que, sendo desnecessária a notificação, a AdC poderá emitir decisão de inaplicabilidade.
O acórdão do STJ n.º 2/2022, no âmbito do processo n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, uniformizou jurisprudência quanto à prova da perda de chance processual como dano autónomo, num caso de violação de deveres profissionais por parte de mandatário forense, por falta de apresentação de recurso.
Quer o acórdão recorrido quer o acórdão fundamento sub judice no caso admitiram a ressarcibilidade autónoma do dano da perda de chance processual, reconduzível à perda da oportunidade/possibilidade de ganhar ou não perder uma determinada ação (e não ao dano final de obtenção de um resultado desfavorável na ação), em razão do comportamento lesivo do mandatário que omite a apresentação de peças processuais num determinado juízo (in casu,alegações de recurso e requerimento probatório, respetivamente).
A contradição jurisprudencial recaía sobre a questão do ónus e da própria possibilidade de prova da perda da oportunidade de ganhar a ação (ou de a não perder):
- O acórdão fundamento considerava não ser possível determinar o grau de probabilidade da amplitude do êxito da ação, não fosse a conduta lesiva do mandatário, pelo que impenderia sobre o réu o ónus de demonstrar que a não apresentação de certa peça processual seria absolutamente indiferente para o desfecho da ação, à luz do artigo 342.º, n.º 2, do CC. Na ausência dessa demonstração, deveria ser fixada uma indemnização a favor do lesado com recurso à equidade, artigo 566.º, n.º 3, do CC.
- O acórdão recorrido exigia ao autor a prova da elevada probabilidade de êxito da ação, à luz dos artigos 342.º, n.º 1 e 564.º, n.º 2, do CC, sem a qual não seria devida qualquer indemnização pela perda de chance processual por banda do réu.
O acórdão do STJ n.º 2/2022 considerou que seria sobre o autor que recairia o ónus da prova de uma probabilidade suficiente de verificação do resultado favorável, não fosse o comportamento lesivo do mandatário, e não ao réu que incumbiria provar a irrelevância da perda de chance.
Na tentativa de preenchimento do conceito de probabilidade do dano – tão indeterminado como o conceito normativo de previsibilidade do dano constante do artigo 564.º, n.º 2, do CC – o acórdão do STJ n.º 2/2022 avança a necessidade de consistência e seriedade da perda de chance.
Na ligação entre a consistência e seriedade e os pressupostos do dano e do nexo de causalidade, o STJ começa por equacionar uma distinção entre o standard probatório necessário à demonstração da existência de uma hipótese de ganhar a ação (que não é o dano em si) e o standard probatório para demonstração do nexo causal entre a perda da hipótese de ganhar a ação (o dano) e a conduta do lesante (in casu, a falta de apresentação de alegações de recurso).
Considera, de seguida, que não deve haver distinção entre a probabilidade exigida para considerar verificado o nexo causal e a probabilidade exigida para a demonstração da hipótese de ganhar a causa, não fosse o evento lesivo.
O STJ acaba por concluir, de forma confusa, que a probabilidade da verificação do nexo causal confere consistência – logo, probabilidade – à chance de ganhar a causa e essa consistência alicerça o standard probatório, i.e., que o próprio standard alicerça o standard…
A circularidade é aqui evidente, resultando também manifesto, da leitura da fundamentação do acórdão, que o STJ não logra tornar operativos os conceitos de consistência e seriedade que avança. Pelo que a exigência da prova da consistência e seriedade da perda de chance para atribuição do direito indemnizatório ao lesado acaba por abrir a porta à arbitrariedade da decisão e à sua insuficiente fundamentação.
Em rigor, o problema fundamental do acórdão do STJ n.º 2/2022 é que parece obnubilar que a probabilidade de um evento danoso não se ter verificado se não fosse determinado facto danoso é uma questão de interpretação de normas jurídicas – in casu, de preenchimento do conceito indeterminado previsibilidade do dano constante do artigo 564.º, n.º 2, do CC – e não de prova de factos.
Efetivamente, em primeiro lugar, é sabido que o conceito de dano, que é pressuposto normativo do artigo 564.º, n.º 2, do CC, tem um significado jurídico preciso (eliminação ou diminuição de uma vantagem conferida e tutelada pela Ordem Jurídica), pelo que a conclusão pela ocorrência de certos eventos danosos, originados em determinados factos dados como provados (nexo de causalidade) e a conclusão segundo a qual um certo evento danoso não se teria verificado se não fosse um determinado facto, são juízos que importam a aplicação de critérios normativos.
Em segundo lugar, é essa comparação entre a afirmada situação do lesado em consequência do evento lesivo e a afirmada situação hipotética que o lesado estaria futuramente se não fosse o evento lesivo que permite preencher a previsão normativa do artigo 564.º, n.º 2, do CC.
Em terceiro lugar, a aferição das hipóteses de ganhar uma determinada ação já perdida, não fosse um dado facto lesivo, depende da análise da defesa apresentada nessa ação e do possível sentido da decisão do tribunal em que a defesa foi preterida (o vulgarmente chamado julgamento sobre o julgamento). O que importa, pelo tribunal em que a indemnização é peticionada, a realização de um juízo sobre elementos de incerteza fáctica e elementos de incerteza jurídica, já que a possibilidade de procedência de uma determinada ação depende não apenas da prova apresentada no processo e dos factos depois dados como provados, como também dos potenciais regimes jurídicos aplicáveis ao caso.
Assim, a probabilidade da perda de chance, a que o acórdão do STJ n.º 2/2022 se refere para preencher o conceito normativo de previsibilidade constante do artigo 564.º, n.º 2, do CC não é um standard de prova, nem os standards de prova podem ser transpostos para o campo de interpretação de normas jurídicas, não sendo aptos a resolver questões de discricionariedade judicial no preenchimento de conceitos indeterminados.
A introdução da exigência de consistência ou seriedade da perda de oportunidade em nada faz avançar a resolução do problema, mantendo a inoperatividade dos conceitos no arbitramento concreto de indemnizações fundadas na perda de chance processual.
As mais recentes alterações ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) entram hoje em vigor.
O Decreto-Lei n.º 57/2022, de 25 de agosto, publicado ontem em Diário da República, vem alterar os artigos 129.º e 130.º do CIRE, no sentido de retirar ao juiz o ónus de proceder à graduação dos credores reconhecidos.
Assim, a graduação dos créditos passa a ser da responsabilidade do administrador de insolvência, que ao elaborar a lista de credores reconhecidos, apresentará simultaneamente a proposta de graduação dos créditos.
Não havendo impugnação da lista, e se estiver de acordo com a proposta graduação elaborada pelo administrador da insolvência, ao juiz caberá apenas a homologação de ambos os documentos.
Esta alteração visa simplificar, e em última análise, reduzir drasticamente – assim se espera – a duração do incidente processual de verificação do passivo e graduação de créditos, o que terá consequências na tramitação do próprio processo de insolvência, que vê assim encurtado um dos apensos que mais tempo consome à tramitação geral do processo.
Estas alterações aplicam-se aos processos cujas listas de credores reconhecidos não tenham sido ainda apresentadas.
As mais recentes alterações ao regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (Lei n.º 23/2007, de 4 de julho) entram hoje em vigor.
As alterações de primeira linha trazidas pela Lei n.º 18/2022, de 25 de agosto, prendem-se com a necessidade de criar condições para a implementação do Acordo sobre a Mobilidade entre os Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, cujo principal objetivo é aumentar a mobilidade para os cidadãos dos Estados-Membros no espaço da CPLP.
Nesse sentido, destaca-se a concessão de vistos de residência e de estada temporária a cidadãos nacionais de um Estado em que esteja em vigor o Acordo CPLP não depende de parecer prévio do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), sem prejuízo de a concessão de vistos ser comunicada ao SEF, para efeitos do exercício das suas competências em matéria de segurança.
De entre outras alterações, destacam-se as seguintes: i) simplificação de procedimentos internos do SEF e na coordenação com os serviços consulares; ii) criação de um título de duração limitada de 120 dias (prorrogável por mais 60) que permita a entrada legal de imigrantes em Portugal com o objetivo de procura de trabalho; iii) possibilidade de os vistos de estada temporária ou de residência terem também como finalidade a prestação de trabalho remoto (nómadas digitais), bem como o de acompanhamento dos familiares portadores de títulos de residência, permitindo que a família possa, de forma regular, entrar em território nacional; iv) aumento do limite de validade de documentos; v) passa a ser permitido o exercício de uma atividade profissional remunerada, subordinada ou independente, a todos os estudantes do ensino secundário, estagiários, voluntários e admitidos a frequentar cursos de formação ministrados por estabelecimentos de ensino ou de formação profissional, que sejam titulares de uma autorização de residência, complementarmente à atividade que deu origem ao visto.
Por outro lado, e no espírito do Brexit, cujos efeitos ainda se fazem sentir ao nível da pendência de emissão de títulos de residência - decorridos praticamente dois anos desde o fim do período de transição do Acordo de Saída do Reino Unido da União Europeia (“Acordo”) – além do SEF, passam a ser também competentes para a emissão e renovação do título de residência para cidadãos britânicos beneficiários do Acordo, o Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., e os Espaços Cidadão.
A Lei n.º 18/2022 procede ainda à execução na ordem jurídica interna dos Regulamentos (UE) n.os 2018/1860, 2018/1861 e 2018/1862, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de novembro de 2018, relativos ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do Sistema de Informação de Schengen (SIS).
As normas de execução do Orçamento do Estado para 2022 foram aprovadas recentemente. Neste artigo, analisamos as medidas de carácter laboral.
Eis as principais:
Valorizações remuneratórias dos trabalhadores das empresas do setor público empresarial e demais entidades
- Estas entidades devem dispor de instrumentos (v.g. IRCT, instrumentos legais ou contratuais, ou regulamento interno aprovado nos termos do Regime Jurídico do Setor Empresarial do Estado) que consagrem mecanismos de: (i) valorização dos trabalhadores, (ii) avaliação de desempenho com diferenciação do mérito e (iii) eventual atribuição de prémios de desempenho, sob pena de nulidade dos actos praticados;
- Os processos de promoções que não se encontrem abrangidos pelas alterações obrigatórias de posicionamento remuneratório, progressões e mudanças de nível de escalão, bem como os procedimentos internos de seleção para mudança de nível ou escalão ou outros de que possa resultar uma valorização remuneratória, não expressamente previstos em norma específica da Lei do Orçamento de Estado (LOE 2022), dependem de: (i) despacho prévio favorável do membro do Governo responsável pela área em que se integra o órgão ou serviço em causa; (ii) autorização dos membros do Governo responsáveis pela Administração Pública e Finanças, com exceção dos órgãos e serviços pertencentes às administrações regionais e locais, em que a emissão do despacho compete ao presidente do órgão e das autarquias locais ou empresas locais.
- Os dirigentes máximo dos órgãos e serviços podem, cumpridos os requisitos legais e as verbas orçamentais, autorizar dentro da dotação inicialmente aprovada: (i) alterações do posicionamento remuneratório por opção gestionária com o limite de 5% dos trabalhadores, até ao limite de uma posição remuneratória; (ii) atribuir prémios de desempenho, até ao montante legalmente estabelecido e equivalente e até uma remuneração base mensal do trabalhador, sem prejuízo do disposto em IRCT.
Novas contratações
- Os membros do Governo responsáveis pelas áreas da Administração Pública e das Finanças podem, desde que verificadas situações excecionais, devidamente fundamentadas, autorizar a abertura de procedimentos concursais para constituição e vínculos de emprego público por tempo indeterminado ou a termo, para carreiras geral ou especial ou que tenha sido objeto de extinção, revisão, destinados a candidatos que não possuam vínculo de emprego público por tempo indeterminado, ou que, caso o possuam, o novo concurso permita um aumento da remuneração base, desde que cumpridos um conjunto de requisitos cumulativos, nomeadamente: (i) relevante interesse público no recrutamento; (ii) declaração de cabimento orçamental emitida pelo órgão, serviço ou entidade requerente; e (iii) parecer prévio favorável do membro do Governo de que depende o serviço ou organismo que pretende efetuar o recrutamento.
- As pessoas coletivas de direito público e as empresas do setor público empresarial podem recrutar trabalhadores para constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado, ou a termo, desde que expressamente autorizados no acto de aprovação do PAO.
Gastos operacionais das empresas do setor empresarial do Estado
- O rácio dos gastos operacionais deve ser igual ou inferior ao verificado em 2019 ou em 2021, consoante o que registar volume superior, sob pena de situações excecionais devidamente consagradas na lei.
- Devem, em qualquer caso, ser iguais ou inferiores ao valor registado em 2021 os gastos operacionais: (i) com pessoal; e (ii) com deslocações, ajudas de custo e alojamento, bem como os associados à frota automóvel e com encargos referentes a contratação de estudos, pareceres, projetos e consultoria.
O Acordo Relativo à Cessação da Vigência de Tratados Bilaterais de Investimento entre os Estados-Membros da União Europeia (o “Acordo”) celebrado em Bruxelas, a 5 de maio de 2020, foi aprovado por Resolução da Assembleia da República e ratificado pelo Presidente da República, a 18 de agosto de 2022.
O Acordo tem origem em duas decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia (o “TJUE”). No Processo C-478/07 Bud?jovický Budvar e no Processo C-284/16 Achmea, o TJUE sustentou que as disposições de um acordo internacional celebrado entre dois Estados-Membros não podem ser aplicadas nas relações entre esses dois Estados se essas disposições forem consideradas contrárias aos Tratados da União Europeia.
Os efeitos do Acordo refletem-se, sobretudo, nos processos de arbitragem entre investidores e Estados com base em tratados bilaterais de investimento intra-UE ao abrigo de qualquer convenção ou conjunto de normas de arbitragem.
Através do Acordo, as Partes Contratantes confirmam que as cláusulas de arbitragem entre um investidor e um Estado-Membro, no âmbito de um tratado bilateral de investimento intra-UE, são contrárias aos Tratados da UE e, em consequência, não podem ser aplicadas a partir da data em que a última das partes de um tratado bilateral de investimento se tenha tornado um Estado-Membro da UE.
Assim, apesar de não se poderem iniciar novos processos de arbitragem com base em cláusulas de arbitragem de tratados de investimento bilaterais intra-UE, o Acordo não afeta as arbitragens já concluídas, nem qualquer acordo de resolução amigável de um litígio objeto de um processo de arbitragem iniciado antes de 6 de março de 2018.
Introdução
A nova Lei das Comunicações Eletrónicas (“LCE”), publicada no passado dia 16 de agosto de 2022, transpõe a Diretiva (UE) 2018/1972, que informa a mais recente reformulação do quadro regulamentar do setor estabelecendo o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (“CECE”).
Há 18 anos, Portugal optou pela condensação do essencial do então quadro regulamentar de 2002 num único diploma, o que facilitou a transposição do CECE mas não se traduziu num ganho de tempo nessa transposição. Podemos apontar como causa do atraso as convulsões do setor, e em particular o episódio da implementação da tecnologia 5G, mais do que a pandemia causada pelo vírus COVID-19, já que, quando esta foi declarada, já estava praticamente esgotado o prazo de transposição.
Tratando-se de um diploma totalmente novo, pode-se dizer que a nova LCE procurou manter (e bem) em grande parte o essencial da estrutura regulatória existente. No entanto, é importante sublinhar que não deixaram de ser introduzidas algumas alterações de relevo que terão certamente impacto no mercado.
Embora não esgote o elenco de alterações, a maior parte das novidades materiais mais relevantes estão concentradas em matérias relacionadas com os direitos dos consumidores, o regime sancionatório e o regime geral de privacidade nas comunicações eletrónicas. Em seguida, a título meramente exemplificativo, elencamos algumas.
Direitos dos consumidores
Relativamente às normas de proteção dos consumidores introduzidas pela nova lei, observamos algumas alterações:
- Período de retenção. De acordo com o novo n.º 3 do artigo 131.º, a disponibilidade de prestações com períodos de retenção mais curtos, 12 ou 6 meses, já não é obrigatória, contudo é definido um limite máximo de 24 meses.
- Indisponibilidade do serviço. A lei refere que qualquer situação reportada de indisponibilidade do serviço que se prolongue por mais do que 24 horas obriga ao crédito do valor equivalente por parte do operador. A devolução deste valor não se aplica somente aos casos em que há interrupções de mais de 24 horas consecutivas, mas também às situações em que as falhas somadas excedem esse tempo, por período de faturação. No entanto, para o consumidor poder rescindir o contrato sem custos, é necessário um período de 15 dias de persistência do problema, após este ser reportado.
- Situações em que não há cobrança de custos de rescisão antecipada. A nova LCE definiu um conjunto de situações perante as quais não podem ser cobrados custos de rescisão antecipada, como o desemprego (por facto não imputável ao consumidor), a incapacidade para o trabalho superior a 60 dias com quebras de rendimento ou a alteração de morada para um local onde o operador não possa disponibilizar um serviço equivalente.
Privacidade nas comunicações eletrónicas
- Alteração à Lei da Privacidade nas Comunicações Eletrónicas. No que diz respeito à Lei da Privacidade nas Comunicações Eletrónicas (Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto), alteram-se os artigos 7.° e 10.° da mencionada lei. No essencial, as alterações prendem-se com o alargamento do universo das organizações a quem podem ser comunicados os dados pessoais de localização de comunicações de emergência, passando a abranger não apenas as organizações que têm competência legal para receber tais comunicações, mas também as competentes para as tratar
- Faturação detalhada. O n.°5 do artigo 122.° da nova LCE prevê que nas faturas detalhadas não é exigível a identificação das chamadas facultadas a título gratuito, incluindo as chamadas para serviços de assistência.
- Prevenção da contratação. Pela leitura do artigo 126.° não fica resulta claro se, no caso dos serviços prestados a uma empresa, quem vai integrar a base de dados é a empresa que contrata os serviços de comunicações eletrónicas ou se são os trabalhadores enquanto efetivos utilizadores dos serviços.
Regime sancionatório
O artigo 176.º da LCE, e em parte também o artigo 164.º, definem um novo quadro sancionatório muito alargado das comunicações eletrónicas em Portugal.
Mais alguns detalhes
- “Serviço de comunicações eletrónicas”. Alarga-se a definição de “serviço de comunicações eletrónicas” pelo que passa a incluir um leque atividades tipicamente realizadas por aplicações de mensagens instantâneas, correio eletrónico, chamadas telefónicas pela Internet e mensagens pessoais fornecidas através de meios de comunicação social.
- Regime de autorização geral. Impõe um dever de comunicação, segundo o qual as empresas que pretendam oferecer redes públicas de comunicações eletrónicas e serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público devem comunicar previamente à Autoridade Reguladora Nacional (“ARN”) o início de atividade.