O que a agricultura e a contabilidade têm em comum com o networking?

Este é o primeiro artigo de uma mini-estrutura de dez textos que escreverei mensalmente durante o ano de 2017 para o Dinheiro Vivo sobre o tema do Networking.

A ideia é tentar aqui, de forma resumida e compactada, transmitir ao longo dos próximos meses algum do conhecimento e trabalho desenvolvido na Universidade sobre este tema ainda tão pouco trabalhado de forma científica, mas com tão grande impacto na nossa vida pessoal e principalmente profissional nos dias que hoje correm.

Ao leitor, tentaremos que a presente rubrica ao longo do corrente ano o possa fazer reflectir, conhecer e dominar (e até discordar) alguns princípios de networking, assim como possa ajudá-lo a idealizar, construir, alimentar, expandir e utilizar rede de contactos, transformá-los em “relacionamentos”, adaptando as características pessoais e profissionais de cada um, através de uma estratégia personalizada, com o objectivo de obter ganhos de sinergias de escala, descoberta de melhores soluções de negócio e oportunidades profissionais.

Com efeito esta será a primeira ideia transversal a todos os artigos que se escreverão - A criação de uma (boa) rede de networking tem como implícita uma boa rede de relacionamentos e não (apenas) uma boa rede de contactos.

Ora, a pergunta inerente ao título do presente artigo é em si não só uma pequena provocação, mas também e principalmente, uma tentativa de simplificação do conceito e daquilo que entendo como fundamental no networking e na criação de uma “rede de relacionamentos”.

Claro está que outros conceitos, fundamentos e analogias poderão ser feitas ao tratamento do tema em curso, mas acredito que na génese de todos os (bons) resultados que qualquer um de nós pretende obter do seu networking alguns dos fundamentos básicos da Agricultura e da Contabilidade são indispensáveis para o objectivo em causa.

Isto porque nada mais simples e terreno para ilustrar a necessidade de saber tratar da nossa rede do que a agricultura, na medida em que qualquer lavrador ou engenheiro agrónomo (por mais ciência e químicos que o ajudem ao aproveitamento da terra e sua cultura intensiva) sabe que para “colher” há primeiro que semear, cultivar, tratar e cuidar.

Se pretendemos criar uma verdadeira rede de networking que possa criar valor para o sujeito e/ou para as organizações de que fazemos parte, é necessário saber investir o nosso precioso tempo em cada uma das relações em causa.

Contudo ao investir esse tempo há que fazê-lo de forma sincera e com equilíbrio… e daqui a referência à contabilidade.

Isto porque qualquer contabilista sabe que qualquer empresa, actividade ou organização para ser saudável tem que ter um balanço em que o crédito é maior que o débito, em que o deve é inferior ao haver, em que temos superavit e não deficit…e os mesmos princípios devem ser aplicados à criação de uma rede de relacionamentos.

Não é possível criar uma boa e verdadeira rede de networking em que as pessoas com quem nos relacionamos ou pretendemos relacionar estejam sempre e constantemente a ser alvos dos nossos pedidos, propostas e/ou solicitações. No fundo, em que o sinal positivo desse relacionamento apenas tenha um só sentido, um só fluxo. 

Direi mesmo, mais do que um balanço “nulo” o ideal é que entre aquilo que possamos “dever” aqueles com quem nos relacionamos possamos estar sempre numa posição confortável em que o valor do “haver” seja superior. Desde que tal seja feito de forma sincera e interessada deixar-nos-á sempre numa posição privilegiada e confortável na activação da nossa rede de relacionamentos.   

2017-01-06
Estela Guerra

O boom das startups e a incerteza sobre o sucesso do negócio tornam hoje atual o regime jurídico das sociedades irregulares previsto no Código das Sociedade Comerciais. Imaginemos que dois ou mais colegas, com a intenção de constituir uma sociedade, começam a desenvolver uma atividade comercial (é o caso de muitas startups nas suas “early and seed stages”). Para estes casos, existe a sociedade irregular, com um regime próprio para aquelas sociedades que ainda não se encontram plenamente constituídas.

Desde logo, o nome da sociedade irregular pode ser composto pelo nome dos seus sócios, sendo, no entanto, possível optar por um nome distinto, requerendo um certificado de admissibilidade de denominação social, e assim proteger temporariamente o nome escolhido.

Nesta fase, os sócios poderão ainda celebrar um acordo de fundadores (do inglês founders agreement mas que corresponde a um acordo parassocial), visando regular alguns aspetos das suas relações internas e ainda acordarem os termos da constituição da futura sociedade (p. ex. a percentagem de um futuro capital que há de pertencer a cada um dos fundadores e que poderá ser distribuída por futuros investidores ou colaboradores). 

Na falta de qualquer acordo de fundadores: (i) todos os sócios são administradores da sociedade irregular, podendo qualquer um deles se opor ao ato que outro pretenda realizar; (ii) é necessária autorização expressa dos sócios para o exercício de atividade concorrente ou para usar bens da sociedade para fins que lhe sejam alheios; e (iii) cada sócio participa nos lucros e perdas da sociedade na proporção da sua entrada para o património da sociedade.

Por outro lado, os sócios podem celebrar negócios em nome da sociedade irregular (p. ex. contratos de arrendamento, contratos de fornecimento e de aquisição de bens e serviços, e ainda contratos de trabalho). É, no entanto, necessário lembrarmo-nos que, ao contrário do que acontece com as sociedades anónimas e por quotas, os sócios podem responder por dívidas da sociedade irregular, sempre que o património desta seja insuficiente para cumprir as suas obrigações.

Para o desenvolvimento da atividade de uma startup, é ainda necessário que alguém trabalhe na implementação da ideia. Os fundadores são, por regra, os primeiros a entrar com a “mão de obra”, pois não constituem encargos financeiros para o projeto.  A par dos fundadores, a sociedade irregular pode ainda chamar ao projeto outros empreendedores, que contribuem com o seu know-how, em troca de uma participação social na futura sociedade (o chamado negócio participativo); contratar determinados serviços a terceiros ou ainda contratar trabalhadores.

Para a realização de tarefas de natureza temporária e para as situações em que não se pretende, entre outras, a fixação de obrigações de exclusividade e de fixação de horário, a figura do contrato de prestação de serviços é a mais adequada. A opção por este regime legal tornará a relação contratual mais “leve”, libertando a sociedade de uma série de obrigações e custos resultantes de um contrato de trabalho (p. ex. pagamento do subsídio de Natal e de férias; seguro de acidentes de trabalho; contribuições para a Segurança Social; e a liberdade de revogação do contrato de prestação de serviços sem o pagamento de qualquer indemnização).

Caso se pretenda que a pessoa contratada fique sujeita à disciplina da sociedade e cumpra instruções e ordens dos fundadores, dentro de um horário predefinido, deverá optar-se pela celebração de contratos de trabalho que, nesta fase, deverão ser celebrados a prazo certo sempre que as tarefas sejam elas também temporárias. Em termos fiscais, as sociedades irregulares podem ser reconhecidas como sujeitos passivos pela Autoridade Tributária. Para tal, é necessário que os sócios solicitem a atribuição de um número próprio para a sociedade (Número de Identificação da Pessoa Coletiva) e que declarem o início da atividade da sociedade nas Finanças.

Os sócios poderão, assim, imputar os custos em que incorram no exercício da atividade à sociedade, não os suportando a título pessoal. Porém, é essencial que as despesas sejam realizadas em nome da sociedade, sob pena de não se conseguir imputar a totalidade dos custos suportados.

Importa, também, não esquecer que a sociedade irregular está sujeita às obrigações fiscais de uma sociedade regularmente constituída, o que implicará a sua tributação em sede de IRC e demais obrigações declarativas, respondendo os seus sócios diretamente perante a Autoridade Tributária.

A sociedade irregular surge, assim, como um instituto que permite aos sócios verificarem a viabilidade dos seus projetos numa fase em que já tiveram de praticar atos jurídicos, como a compra de bens e a constatação de serviços. A partir do momento em que esses atos impliquem incorrer em encargos de custo e risco elevados ou quando for necessário o recurso a financiamentos públicos e privados, os sócios deverão ponderar completar o processo de constituir formalmente uma sociedade com os benefícios da limitação da responsabilidade que ela implica.

Muito se disse e escreveu sobre a eleição de Trump, a vitória do Brexit, a ascensão dos extremismos e dos populismos por essa Europa fora. Em Portugal, porque somos um povo de brandos costumes, temos a nossa “geringonça” que tem a sua quota de extrema esquerda com a anunciada agenda marxista. O que todos estes extremismos têm em comum é a aversão à mudança e o desejo de regressar a um passado, cuja recordação parece ser como uma daquelas nossas memórias de infância, sempre dourada e doce. É o horror à globalização, à perda de direitos e regalias dados como adquiridos, o pavor do que é estranho ou estrangeiro, o ódio aos ricos, a ameaça de um mundo novo que advém do acelerar do desenvolvimento tecnológico e que nos obriga a fazer coisas novas e diferentes e nos retira o conforto e a confiança nas receitas do passado.

O pasto para as demagogias está viçoso: são os desempregados, os jovens sem esperança de um futuro melhor, os aposentados que perdem direitos, os funcionários públicos que sentem os seus lugares e modo de vida ameaçados. Mesmo aqueles que trabalham e fazem coisas novas vivem vergados sob o peso dos impostos e das ameaças de ajuste de contas que paira sobre eles.

Estes são os sintomas da doença que se apoderou das democracias ocidentais. De repente, sem darmos por isso ou sem darmos importância, regressámos a um discurso de ódio e confronto e às irrealizáveis promessas de prosperidade e bem-estar sem fim. A demagogia sempre viveu paredes meias com a democracia porque sempre houve quem prometesse mais do que pudesse dar e porque só em casos muito excecionais quem disse toda a verdade triunfou pelo voto. No passado os partidos faziam equilibrismo, procurando cumprir os seus programas políticos sem arruinar o Estado, sem subverter os valores fundamentais da democracia. Entretanto a política profissionalizou-se. É hoje uma carreira, onde o único objetivo é tomar o poder e viver à conta do Estado, satisfazendo as suas longas clientelas. Os melhores fogem da política onde são perseguidos e vilipendiados nas redes sociais e nos comentários anónimos e sem sanção às noticias publicadas pela comunicação social. Hoje vale tudo em política. Os extremistas são os únicos que se mantêm fiéis à sua ideologia, sejam ela de esquerda ou de direita.

A democracia está doente. Os demagogos eleitos tomam o poder em vários lugares do mundo. Para onde nos levam não sabemos, mas podemos adivinhar. Todas as demagogias começam o seu trabalho por reescrever a história para que os anteriores governantes sejam vistos como abomináveis e os novos chefes endeusados para assim se perpetuarem no poder. As dificuldades e as adversidades são atribuídas a maléficas maquinações dos opositores, a democracia é redefinida para só eles poderem lá caber; os outros são ostracizados e perseguidos. Entretanto, naqueles países onde ainda mandam os políticos de antigamente, temos os Renzi, os Hollande, os Rajoy. De pouco consolo nos servem quando a hora é de resistir, é de fazer ver. Em Inglaterra vota-se a saída da União Europeia e o que nos propõe o poder instalado é “mais Europa”, ou seja, menos democracia e o federalismo tecnocrata de Augusto Comte. Os governantes “moderados” ou “tradicionais” de hoje querem viver no reino da tecnocracia onde só têm de decidir onde gastar mais dinheiro para contentar as massas e impor uma agenda de valores novos, uma nova moral asséptica, politicamente correta. Os povos revoltam-se, querem mais. Os campos extremam-se e, de repente, não sabemos de que lado devemos estar. De um lado estão os populistas de direita, como Trump, Farrage e Le Pen, do outro a extrema esquerda, Siriza, Podemos e Chaves. No meio há um deserto.

Escrevo estas palavras no dia 2 de dezembro de 2016. Como estes tempos são parecidos com o início dos anos 30 do século XX.

Resta-nos não nos resignarmos, lembrar o passado, lutar pela democracia e pelos valores democráticos, principalmente pela Liberdade, a liberdade de pensamento, a liberdade de opinião e a liberdade económica.

2016-12-26
Guilherme Dray

Desde a Antiguidade que o “número de ouro”, representado pelas iniciais de Phideas (ϕ), escultor e arquiteto encarregado da construção do Parthenon, em Atenas, é visto como um número irracional e misterioso, que confere harmonia e equilíbrio a uma infinidade de elementos da natureza. Os Clássicos diziam, aliás, que não há harmonia sem a referida “proporção áurea”, que tem sido a chave para a explicação de obras magníficas da natureza, no campo da arquitetura e das artes. A “proporção áurea” pode também, em sentido figurado, representar construções jurídicas ou sociais emblemáticas, integradoras de dois ou mais princípios autónomos. A segurança social assume, precisamente, no Estado Moderno, essa função congregadora, integrando os conceitos de Justiça Social, Igualdade de Oportunidades e Estado Social de Direito.

O sistema público de segurança social surge com o Estado Social de Direito, sendo um dos seus pilares. Insere-se na ideia de que o Estado deve promover não apenas as liberdades individuais e os direitos negativos do cidadão, próprios do liberalismo, mas também os direitos sociais e a igualdade de oportunidades. Atua como um instrumento de promoção da Justiça Social e marca a transição da igualdade em sentido formal para a igualdade em sentido material, numa evolução paulatina, mas segura.

Numa primeira fase, as revoluções americana e francesa, respetivamente de 1776 e 1789, trouxeram a ideia de que todos os homens nascem livres e iguais, sendo proibidas as discriminações. É a fase da igualdade em sentido formal e da “Rule of Law”: ao Estado competia, apenas, criar leis gerais e abstratas, cabendo a cada cidadão desenvolver livremente as suas capacidades, sem qualquer interferência estatal.

Mais tarde, a industrialização das sociedades, o desemprego generalizado, o agravamento das desigualdades e a ocorrência de acidentes de trabalho sem cobertura jurídica fizeram com que a habitual neutralidade do Estado fosse questionada. A igualdade formal começa a dar lugar à igualdade substantiva, em que o Estado admite intervir de forma a proteger aqueles que se encontram numa posição de maior inferioridade. Surge, então, o conceito de conceito de igualdade de oportunidades, que vê e concebe a igualdade não como um mero ponto de partida, mas sim como um ponto de chegada. E é neste contexto que surge, também, em nome da Justiça Social, a ideia de que o Estado deve proteger os seus cidadãos em momentos de particular vulnerabilidade, nomeadamente em caso de desemprego involuntário, doença, acidente ou maternidade. As Constituições novecentistas, que haviam herdado a igualdade formal das revoluções liberais, deram então lugar às Constituições do século XX, que consagraram o Estado Social de Direito. E este, por sua vez, proporcionou a criação de um sistema público de segurança social.

A primeira Constituição do Estado Moderno a inscrever direitos sociais foi a Constituição mexicana de 1917, nomeadamente o direito à edução, à saúde e à habitação, bem como diversos direitos em matéria laboral. Estavam, pois, lançadas as bases para o movimento de “socialização” das leis fundamentais, que foi definitivamente impulsionado pela Constituição de Weimar de 1919. Esta consolidou o conceito de constitucionalismo social e assegurou, nomeadamente, o direito à aposentadoria e à proteção na velhice, na maternidade e nos demais acasos da vida.

Criou-se, por esta via, o primeiro sistema de previdência social da história contemporânea e desde então os sistemas públicos de segurança social vieram para ficar, tendo sido objeto de ampla consagração em diversos textos jurídicos, quer a nível internacional, quer a nível nacional.

A nível internacional, a Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece que “Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social” (artigo 22.º). A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, por sua vez, reconhece “o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais que concedem proteção em casos como a maternidade, doença, acidentes de trabalho, dependência ou velhice, bem como em caso de perda de emprego” (artigo 34.º).

Por fim, para fechar o ciclo, as diversas constituições do século XX dos Estados ocidentais avançaram no mesmo sentido – entre nós, a Constituição garante que todos têm direito à segurança social, incumbindo ao Estado organizar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, que proteja os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho (no artigo 63.º).

O sistema público de segurança social não é, portanto, uma invenção de hoje –  ele tem raízes histórico-culturais e surge na sequência de uma longa e sólida evolução, associada ao advento do Estado Social do Direito. O sistema público da segurança social não é, também, uma realidade doméstica ou nacional – ele resulta de um amplo movimento internacional, iniciado com a Constituição de Weimar (1919) e que culminou com a sua consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). O sistema público de segurança social, tem, enfim, um substrato e uma filosofia subjacentes – ele insere-se nos propósitos de promoção da igualdade de oportunidades, do bem comum e da Justiça Social. A segurança social harmoniza e equilibra estes três vetores. Ela atua, pois, como o “número de ouro” do Estado Social de Direito e do Modelo Social Europeu. Quase um século após o aparecimento as primeiras intervenções legislativas, em Portugal, relativas à criação de um sistema de seguros sociais obrigatórios, importa assinalar a importância deste sistema e recordar que a sua existência é um garante das democracias modernas. Importa, por isso, saber preservar o sistema público de segurança social, garantindo a sua sustentabilidade.

O anúncio de que Oliver Hart e Bengt Holmström venceram o prémio Nobel da Economia de 2016 passou largamente despercebido à intelligentsia portuguesa, mais preocupada em glosar e gabar Picketti, esse prodígio de vendas, que em O Capital no Século XXI dá roupa nova às velhas falácias marxistas sobre o capital que reinaram em grande parte do mundo até finais do século XX.

Nisto, Oliver Hart e Bengt Holmström, dois ilustres desconhecidos da nossa intelectualidade, foram galardoados com o prémio Nobel pela sua “teoria dos contratos”, em que nos mostram que as motivações e os interesses em contraposição nos contratos podem ser medidos, logo previstos e, por isso, moldados para melhor satisfazerem as necessidades das partes. Dito assim parece que nada de revolucionário foi descoberto, mas as implicações são imensas.

A teoria dos contratos permite definir com rigor a justa medida dos salários e prémios atribuídos a trabalhadores e gestores, permite verificar se a privatização de um determinado serviço público serve ou não o interesse público, permite descobrir esquemas fiscais de evasão ao fisco, tudo coisas de grande importância e com mais relevância para a economia e para o Direito do que preocupar-nos em redistribuir a riqueza que outros criaram.

Quando se discute a gritante divergência dos salários em Portugal ou os magníficos salários dos gestores da Caixa, a “teoria dos contratos” ensina que, primeiro, devemos perguntar-nos o que contribuem gestores e trabalhadores para a produção e resultados de uma empresa; só depois de respondida essa pergunta podemos saber se as respetivas remunerações são justas ou injustas. Palpita-me, embora não tenha dados empíricos que o comprovem, que em Portugal remuneramos como deuses homens de pés de barro.

Fugindo de Portugal; reza a lenda que Steve Jobs, fundador da Apple, quando voltou à liderança da empresa recebia um salário anual de 1 dólar e muitas opções de compra de ações. Em 2011, o seu salário era de 365 milhões de dólares e as suas ações na empresa valiam mais 2.000 milhões de dólares. Jobs deu à Apple e ao mundo o iPod, o iPhone e o iPad, que transformaram a Apple numa das maiores empresas de sempre. Segundo a imprensa Tim Cook, o sucessor de Jobs, recebeu em 2015 uma remuneração de 65,2 milhões de dólares. Cook limitou-se a gerir o império de Jobs sem criar nada de novo. Estou em crer que se aplicarmos a teoria dos contratos para medir o contributo de um e outro para a Apple veremos que Jobs fez bem mais por merecer o que recebeu do que Cook.

As implicações da “teoria dos contratos” no mundo do Direito são também avassaladoras porque obrigarão os juristas, sempre avessos às matemáticas, a compreender os números e obrigarão os advogados a perguntar aos seus clientes os objetivos que verdadeiramente pretendem atingir com aquele contrato em vez de esgrimirem argumentos do alto das suas torres de marfim. O clausulado de um contrato poderá, num futuro não muito distante, nascer de um conjunto de fórmulas matemáticas ou mesmo de algoritmos que respondam ao que as partes querem, em vez de um rol de frases de estilo, muitas sem significado e valor real.

Interessante ainda notar que, desde que Oliver Hart e Bengt Holmström desenvolveram as suas teorias nos anos 70 e 80 do século passado, as nossas universidades, em particular as faculdades de Economia e Direito, não se têm preocupado em investigá-las e aprofundá-las.

Obrigado Oliver Hart e Bengt Holmström por nos mostrarem este novo caminho. Percorrê-lo-emos com agrado e determinação.

2016-12-13

O Código Civil faz 50 anos mas não parece. Do alto dos seus 2334 artigos o Código Civil demonstrou até hoje uma notável capacidade de adaptação. Descontando a reforma de 1977, relacionada com a adequação à Constituição da República Portuguesa de 1976, e as sucessivas alterações do regime do arrendamento urbano, a verdade é que o Código Civil tem sofrido apenas meros retoques. De 1966 a 2016 as mudanças políticas, sociais e económicas foram tantas e tão profundas que só um Código Civil elaborado com bom senso e elevado apuro técnico é que poderia vigorar sem apelos sérios para uma revisão alargada. 

No entanto, nenhum Código pode ter a pretensão de vigorar eternamente. Mesmo os práticos (onde me incluo) e os cientistas do Direito, por natureza tão embrenhados no estudo e na aplicação da lei vigente, devem ter noção que a qualidade de uma lei não depende somente da sua precisão e alcance, mas também, e até em maior medida, da sua capacidade de regular novas realidades. Em 2016 há realidades tão diversas das realidades de 1966 que, em algumas áreas, é mesmo necessário ponderar uma mudança. Daí que o recente anúncio feito pela Ministra da Justiça de que está a ser preparada uma revisão do Código Civil seja de aplaudir.

Essa revisão encontra-se a ser estudada e versará (pelo menos) sobre as incapacidades, nos seus pressupostos e efeitos, as pessoas coletivas, o regime de prova e as novas realidades digitais, e procurará ainda recodificar o Direito da Família, atualmente algo disperso por legislação avulsa. Deste elenco, destacaria a revisão do regime das incapacidades das pessoas que, devido a anomalia psíquica, surdez-mudez, cegueira, prodigalidade, consumo de bebidas alcoólicas ou drogas, não são capazes de governar o seu património. Tal como está consagrado, este regime tem pouca utilidade e não é capaz de proteger da melhor forma os direitos e interesses destas pessoas.

Os institutos da interdição e da inabilitação estão desenhados para, em primeira linha, através da limitação de direitos, garantirem a preservação do património para os próprios, mas também para os herdeiros do interdito e do inabilitado. Esta abordagem não tem em conta as necessidades destas pessoas, que acabam por ser tratadas de forma puramente patrimonial, quando deveriam ser tratadas de forma humana, procurando, quando é possível, salvaguardar a sua integridade e autonomia.

Em segundo lugar, a própria intervenção dos Tribunais na declaração da interdição e da inabilitação é inapropriada. Não só o tratamento das incapacidades destas pessoas não se compadece com a demora de uma ação judicial, como não parece que deva ser um Tribunal a verificar e a comprovar o que, muitas vezes, é um estado clínico. Deveria privilegiar-se uma intervenção administrativa mais ágil e expedita que estivesse sujeita a controlo judicial.

Finalmente, em terceiro lugar, este regime assente no binómio interdição-inabilitação é, simplesmente, demasiado drástico e não permite tratar com humanidade muitas situações em que há somente algumas dificuldades de entendimento. É o que se verifica, por exemplo, com pessoas de idade muito avançada, que cada vez mais são em maior número. Deveria ser criada uma terceira figura que permitisse que estas pessoas fossem devidamente protegidas e acompanhadas. A melhor forma de comemorar os 50 anos do Código Civil é mesmo homenagear a sua longevidade e apuro técnico e fazer esta anunciada revisão de forma ponderada, cuidada, crítica e participada. Aguardemos pelos próximos passos do Ministério da Justiça.

2016-12-02
Guilherme Dray

O Direito do Trabalho desenvolveu-se na sequência da industrialização e da crise gerada com a famosa Questão Social do século XIX, com o propósito de proteger a parte mais fraca. Esta marca distintiva nunca deixou de existir e sempre que ocorre uma crise económica e social de grandes proporções o Direito do Trabalho é chamado a intervir. Nem sempre, porém, é utilizado da melhor forma.

A resposta que tem sido dada perante graves crises económicas tem variado. As respostas que foram dadas, respetivamente, nos Estados Unidos da América (EUA), após a Grande Depressão de 1929, e na União Europeia (UE), na sequência da crise das dívidas soberanas de 2008, são distintas e refletem duas abordagens quase opostas. Paradoxalmente, foi nos EUA, país tradicionalmente associado ao capitalismo, que foi dada mais importância à negociação coletiva e ao compromisso, ao passo que na UE se enveredou pela subalternização da contratação coletiva. Os resultados foram distintos: enquanto na UE o desemprego aumentou e as economias estagnaram, nos EUA iniciou-se na altura um caminho de progresso económico e social muito impressivo.

Na sequência da crise de 1929, que lançou os EUA numa tremenda recessão, com mais de 1/4 da população ativa desempregada, com falências de bancos e de empresas, o novo Presidente então eleito, Franklin Roosevelt, lançou o New Deal, programa político destinado a recuperar a economia que implicou um conjunto significativo de reformas. É nesta fase, nomeadamente, que são aprovados, o National Industrial Recovery Act, destinado a promover a recuperação da indústria; o Emergency Banking Act, que procurou garantir o saneamento do setor bancário; o Agricultural Adjustment Act, que teve em vista regular a produção agrícola; e o Home Owner’s Refinancing Act, que teve como objetivo evitar a perda de casas próprias hipotecadas. Neste ambiente social e político tornou-se claro, também, que importava apostar na negociação coletiva e pôr termo à agressividade que grassava nas indústrias, que opunha sindicatos e empregadores e que travava o crescimento económico.

Surge, então, em 1935, o Wagner Act, que atribui pela primeira vez aos trabalhadores legitimidade para atuar de forma coletiva. O diploma criou, por outro lado, duas agências administrativas: a National Labor Relations Board, incumbida de garantir a aplicação da lei laboral, e a Works Progress Administration, encarregue de combater o desemprego através da contratação de desempregados de longa duração. O Supreme Court, por sua vez, reconheceu o direito de associação dos trabalhadores como um direito fundamental. A partir de então, a negociação coletiva passa a ter um papel predominante e iniciou-se uma espécie de golden age da economia americana, alicerçada no compromisso responsável entre os parceiros sociais. De um problema, fez-se uma oportunidade; o confronto nas fábricas deu lugar à concertação e a sociedade americana apostou, finalmente, na mobilidade social e na igualdade de oportunidades. Criou-se um desígnio nacional. O Direito do Trabalho, centrado na proteção das minorias e na negociação coletiva foi determinante. Os sindicatos perceberam, de forma responsável, que acima dos seus interesses de classe estavam os interesses da nação. Os empregadores aperceberem-se também que o aumento da produtividade não se consegue sem negociação e sem a dignificação do trabalho. A liderança inspiradora do Presidente Franklin Roosevelt fez o resto: foi decisiva para a criação do American Dream e para a restauração de um clima de confiança.

A resposta dada pela UE à crise das dívidas soberanas de 2008 foi oposta. Ao invés de se apostar na negociação coletiva, enveredou-se pela sua desvalorização. As reformas laborais dos países do Sul da Europa entre 2011 e 2012 foram paradigmáticas: promoveu-se a gestão do tempo de trabalho por acordos individuais, facilitou-se o despedimento por razões económicas, diminuiu-se o número de dias de férias e de feriados e reduziu-se de forma legalmente imperativa o valor da retribuição em caso de trabalho suplementar. Os resultados, todavia, não foram os desejados: a economia não progrediu e o desemprego aumentou. É ainda no rescaldo deste quadro que nos encontramos.

E é nesta conjuntura que a aposta na negociação coletiva, através concertação social, é cada vez mais decisiva. A negociação coletiva potencia a criação de um clima de confiança, permite a adaptação da lei geral à especificidade do setor de atividade ou da empresa, é essencial para dinamizar a economia e é certamente decisiva para a promoção do emprego. O papel dos parceiros sociais é, por isso, determinante.

Sabendo-se, como se sabe hoje, que o país padece de um problema crónico de falta de crescimento económico, importa, mais do que nunca, apostar na negociação coletiva.

É igualmente neste contexto que é de congratular a recente publicação, no Boletim do Trabalho e do Emprego n.º 37, de 8 de outubro de 2016, do contrato coletivo de trabalho celebrado entre a Associação de Operadores do Porto de Lisboa e o Sindicato dos Estivadores, do Centro e Sul de Portugal, que pôs termo a meses de disputas laborais destrutivas de um dos mais importantes portos do país. Este exemplo é paradigmático: o contrato coletivo ora publicado deixou para trás meses de destruição e abre a porta à recuperação do Porto de Lisboa. O crescimento económico do país passa também, pelo reforço da negociação coletiva. Há que seguir o exemplo.  

 

É sabido que a economia está a migrar para plataformas digitais onde a oferta e a procura de bens e serviços se encontram online. A procura com sucesso de fórmulas para essa migração, específicas para o comércio de cada bem ou serviço, fez entrar em jogo novas empresas com uma dimensão global e chamou a atenção das indústrias tradicionais para o valor dessas fórmulas.

Fórmulas que mais não são do que a concretização de ideias. Para que estas ideias surjam não é preciso mais que o conhecimento dos princípios da economia digital e do sector do comércio em que se pretende aplicá-las. Para alguém vender roupa, por exemplo, deixa ser preciso ser um industrial do sector, deixa de ser preciso investir numa operação tradicional de distribuição. Basta uma boa ideia de como o fazer online.

Mas a ideia tem de ser boa, ou seja, tem de funcionar quando aplicada. Pode não ser economicamente viável lançar para o mercado todas as ideias para determinar se funcionam ou não. No entanto, o fenómeno das startups nasceu assim nos Estados Unidos, onde as pessoas parecem naturalmente mais inclinadas para correr riscos e aceitar o veredicto do mercado.

Mas não foram só os que tiveram ideias que entraram no jogo das startups. Entraram os que acharam que se poderia ganhar dinheiro com o comércio destas boas ideias investindo naquelas com maior probabilidade de sucesso. Aparecem os fundos de capital de risco em startups que investem em incubadoras, cujo sucesso depende da capacidade de selecionar apenas os melhores projetos. São peças fundamentais pois fornecem as condições físicas e financeiras para que o sucesso de uma startup dependa apenas com uma condição: a de que o projeto tenha por base um bom conceito, capaz de atrair mercado para si. Se esta condição está satisfeita o “ecossistema” deve ser capaz de lhe proporcionar os meios para que se possa lançar e viver segundo as regras do mercado.

Em dias de Web Summit, é impossível não nos sentimos atraídos para uma realidade onde são as ideias que geram os negócios e em que o financiamento depende da qualidade dessas mesmas ideias. Mas não nos enganemos, as regras do jogo não mudaram: continua a ser o mercado a decidir quem sobrevive na economia digital e a determinar a eficiência de todas as estruturas que fazem o “ecossistema” que gira à volta dos produtores de ideias. Temos assistido, sobretudo na Europa e mais na Europa do Sul, ao surgimento de políticas públicas (que se me perdoe a redundância, mas é força de tanto ouvir a expressão) de incentivo à criação de startups. Portugal não é exceção. É verdade…

 

2016-10-20
Estela Guerra

Os últimos tempos têm sido marcados pela vaga de franceses que têm escolhido Portugal para viver, conduzindo a um boom no investimento imobiliário nacional. Esta invasão francesa levou-nos à descoberta do que se fazia por lá, no ramo imobiliário, e guiou-nos ao encontro da venda contra renda vitalícia, uma modalidade de venda de imóveis com vasta adesão em França, mas praticamente desconhecida no nosso país e cuja celebração é possível em moldes semelhantes ao que sucede em terras gaulesas.

Basicamente, a venda contra renda vitalícia consiste na venda de um imóvel contra o pagamento da totalidade ou de parte do preço sob forma de renda vitalícia. Esta figura assume duas modalidades: com ocupação e livre.

Na nossa opinião, é a modalidade com ocupação que revela maior interesse, permitindo ao vendedor alienar o seu imóvel, mas continuar a habitá-lo até falecer, ao abrigo do direito de usufruto ou do direito de uso e habitação e receber o pagamento do preço sob a forma de renda vitalícia como contrapartida da venda. Assumindo esta modalidade, a venda contra renda vitalícia torna-se especialmente atrativa para pessoas de idade avançada que precisam ou desejam obter um complemento de reforma, sem terem de abandonar a sua casa. Por outro lado, existe a chamada modalidade livre que permite ao comprador dispor, de imediato, do imóvel como se tratasse de uma compra “normal”, beneficiando o vendedor do pagamento do preço sob a forma de renda vitalícia.

A principal caraterística da venda contra renda vitalícia é, sem dúvida, o facto de o comprador pagar ao vendedor o preço sob forma de renda até ao falecimento do vendedor. Assim, esta figura contratual revela-se algo “soturna” pois tem por base uma “aposta” sobre a longevidade do vendedor: o comprador tem interesse em que o vendedor não viva durante mais anos do que aqueles que tiver previsto aquando da celebração do contrato, porque se tal acontecer, o negócio acarreta um prejuízo para o comprador que se obrigou a pagar uma renda vitalícia ao vendedor.

Saliente-se que a concessão de benefícios ao vendedor, no âmbito do imposto sobre o rendimento, é das principais razões, se não a principal, que conduz à grande adesão a esta figura em França. Uma pessoa que decida vender a sua casa contra a renda vitalícia vê as suas rendas tributadas após uma dedução fiscal que varia consoante a sua idade no momento da venda. À medida que a idade do vendedor é mais avançada no momento da venda, a renda vitalícia a receber é menos tributada, o que potencia, uma vez mais, que esta seja um negócio muito atrativo para pessoas reformadas.

Por cá, apesar de não existir qualquer dedução específica, parece defensável, embora dependendo da interpretação que a Autoridade Tributária venha a fazer das normas gerais aplicáveis, que se possa abater ao valor das rendas a parte correspondente à parte do preço paga inicialmente. Por outras palavras, apenas seria tributada a parte relativa ao pagamento inicial, se houver, e a parte da renda vitalícia no valor que exceda o preço acordado pela venda do imóvel; não sendo tributado o valor pago como renda vitalícia até ao montante acordado como preço de venda do imóvel. Veja-se, a título de exemplo, a seguinte hipótese: um casal com 68 anos vende o seu apartamento com valor patrimonial tributário de €150.000,00, ao seu neto. Como contrapartida, o neto pagará €100.000,00 na data da escritura e uma renda vitalícia de €500,00 por mês. Na nossa opinião, o valor de rendas vitalícias de €50,000,00 recebidas pelos vendedores não serão tributadas, sendo somente o excedente deste valor tributado em sede IRS (categoria H).

Em face do exposto e na sequência da invasão francesa no imobiliário português, acreditamos que a chegada da venda contra renda vitalícia a Portugal está para breve, assumindo-se como um novo desafio para o investimento imobiliário nacional.

A UE está numa encruzilhada, todos sabemos, entre dois caminhos: o de uma Europa de livre circulação de pessoas, bens e capitais que confia que dessa liberdade pode sair uma melhor distribuição da riqueza entre os Estados europeus, com respeito pela identidade cultural e política de cada um; ou o de uma Europa política, centralizadora da governação dos Estados que a integram, forçando através das chamadas políticas comuns à sua progressiva integração numa só. Apenas um destes caminhos é verdadeiramente inclusivo e assegura que a Europa se manterá fiel ao maior dos valores: a liberdade. A Europa social que as esquerdas e as direitas europeias desejam acabaria, se não se desintegrasse antes, por sacrificar a liberdade dos cidadãos e dos povos a uma ideia de bem comum sobre a qual manifestamente não há consenso entre os Estados europeus. Haverá sempre quem diga que ver apenas dois caminhos é redutor, que há soluções ditas intermédias - do apreço de tantos que acusam de dogmáticas as visões de quem distingue ideias e conceitos – que permitirão um correto equilíbrio entre a liberdade e o bem-estar social dos povos da Europa. Não nos vamos perder nessa discussão. Admitamos que a divisão em dois caminhos se refere à escolha entre aqueles que dão predominância à liberdade dos povos e aqueles caminhos que dão preponderância à integração política e à integração económica entre Estados. Admitamos também, para afastar os fantasmas maniqueístas que esquerda e direita usam para afastar quem lhes é contrário no pensamento, que todos queremos uma mais justa distribuição da riqueza e o fim das assimetrias entre os Estados ricos do Norte e os pobres do Sul. Assim como todos desejamos que todos os povos tenham acesso a saúde, educação e habitação que lhes permitam uma verdadeira igualdade de oportunidades.

Estando à vista os resultados da governação europeia, sobretudo dos últimos 20 anos, a indignação é geral. As novas esquerdas populistas só aceitam uma UE que aplique o socialismo de forma integral, o que no estado atual das coisas se lhe afigura com algo plausível. As novas direitas nacionalistas gritam que a Europa os rouba e nada querem ter a ver com ela. E depois há os que nos indignamos com a insensatez dos políticos. E ficamos duplamente indignados por não compreendermos como se continua a dizer que os males da UE resultam do dito “modelo neoliberal do mercado interno” quando vemos que os políticos europeus nos empurram para uma Europa cada vez mais intervencionista e centralizadora, que dirige, com resultados desastrosas, um mercado, o qual nunca chegará a ser verdadeiramente comum dado o excesso de intervencionismo das instituições europeias e a sua manifesta incapacidade de regular nas matérias (basta pensar na regulação do setor financeiro) das quais depende o seu funcionamento.

Apesar das dúbias razões que levaram os ingleses e os galeses a votar no Brexit, tradicionalmente, sempre vimos o Reino Unido como um defensor de uma Europa como espaço de liberdade. Uma vez consumado o Brexit, ou mesmo antes disso, pois o RU já nem sempre se faz representar nas cimeiras europeias, parece que vai ficar um vazio no debate europeu, uma falta de contraponto às tendências centralistas europeias. O Presidente da Comissão Europeia já grita a plenos pulmões que vai duplicar o orçamento da UE, que devemos ter um ministro dos negócios estrangeiros da UE e até, pasme-se, uma defesa comum europeia gerida de um quartel general europeu em Bruxelas. É verdade que a palavra do presidente da Comissão Europeia vale o que vale, cada vez menos, mas estas ideias não deixam de assustar. Sobretudo, se forem vistas como são apresentadas: como a forma de evitar os populismos de esquerda e de direita que estão a por em perigo as democracias europeias e que estão a questionar a própria existência da UE. As palavras de Juncker soam a desespero, a fuga para frente, por incapacidade de compreender as causas do atual estado de coisas na UE. É verdade que as causas próximas são complexas e difíceis de explicar. Ao contrário, é fácil dizer que os problemas se resolvem com mais fundos estruturais, maiores orçamentos europeus. A UE apresentada como uma espécie de paladino dos pobres - sejam só os produtores de gado da Normandia, sejam países inteiros como a Grécia e Portugal - é mais apelativa… sobretudo para os pobres que estão ainda e sempre em maioria. Ora, ao discurso de quem manda dirigido ao coração dos pobres e não à sua razão chamamos hoje populismo. Os filósofos antigos chamavam-lhe demagogia, mas falta hoje coragem para usar a palavra porque implica reconhecer a degradação a que chegaram democracias europeias ou reconhecer que a democracia ainda é, tal como a definiu Platão, o governo daqueles cuja pobreza lhes impede de decidir em conformidade com a razão.

O populismo do presidente da Comissão Europeia, que não vemos contestado nas suas linhas orientadoras pelos nossos politólogos, mostra até que ponto a Europa não compreendeu que o caminho de integração que segue, e quer seguir com mais afinco, o está a afastar dos seus objetivos: o da sobrevivência das instituições europeias (aquele que o aparelho burocrático europeu mais preza) e o bem-estar social dos povos europeus. O impacto das políticas económicas europeias através dos chamados fundos estruturais tem sido dramático, sobretudo para países do sul da Europa, levados a investimentos públicos desproporcionados em relação à sua capacidade de investimento em grandes projetos comunitários, sob ameaça de perderem o “comboio europeu”. E levados também a desenvolver setores da economia, as mais das vezes os menos relevantes, que se traduziram apenas em aumentos temporários da riqueza de quem recebeu os fundos. É mais disto que o discurso do presidente da

Comissão Europeia promete: embriagar os eleitores dos países mais pobres com a promessa de fundos europeus, agora com a promessa de uma paz duradoura sob os auspícios de Bruxelas saída, certamente, da imaginação do próprio Juncker.