Introdução
Com o avanço das tecnologias e a adoção de modelos económicos globalizados e compartilhados, surgiram novas formas de prestação de trabalho, que trazem novos desafios quanto à regulação e enquadramento dessas relações.
O trabalho prestado em plataformas digitais é uma dessas novas realidades. Caracteriza-se pela descentralização de atividades e de atores, pela gestão algorítmica do trabalho e pela flexibilidade nas relações laborais. Em regra, envolve três partes: o provedor de plataforma, o fornecedor e o demandante.
Perante estes novos modelos de trabalho, assentes nas tecnologias de informação e comunicação e no recurso a plataformas digitais, o Direito procura dar novas respostas, de forma a regular esta nova forma de trabalhar.
O Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, que foi elaborado pelo Governo português e publicado em março de 2022, é um exemplo de como essas inquietações estão a merecer a atenção dos decisores políticos.
Nesta newsletter, os especialistas dos escritórios MACEDO VITORINO (Lisboa, Portugal) e DENISE FINCATO (Porto Alegre, Brasil) apresentam, de forma sintética, as recentes iniciativas legislativas e decisões judiciais relativos à regulação e ao enquadramento dado ao trabalho prestado em plataformas digitais, sob uma ótica comparada, envolvendo os sistemas jurídicos de Portugal, Brasil e Itália.
Proposta de Diretiva da União Europeia
Há muito que era aguardada uma Proposta de Diretiva que regulasse as condições de trabalho dos trabalhadores das plataformas digitais e que clarificasse o estatuto destes trabalhadores. Essa Proposta chegou em 9 de dezembro de 2021, devendo agora ser negociada entre Conselho (Estados-membros) e Parlamento Europeu. Se aprovada, deverá ser transposta no prazo máximo de 2 anos.
A Diretiva cria uma lista de critérios de controlo para determinar se a plataforma é (ou não) um empregador, sendo que caso se verifique a existência de pelo menos 2 critérios, presume-se juridicamente que a plataforma é uma entidade empregadora. Os critérios a ter em conta são, designadamente, os seguintes: (i) supervisão da execução do trabalho pela plataforma; (ii) restrição da liberdade de escolha do horário de trabalho e/ou dos períodos de ausência; (iii) impedimentos à realização de trabalhos para terceiros; (iv) imposição de regras de conduta e aparência aos funcionários que trabalham nas plataformas; e (v) fixação dos níveis de remuneração (artigo 4.º). Nos termos do artigo 5.º da Proposta, a plataforma pode afastar a presunção legal de vínculo laboral, cabendo-lhe fazer prova de que não existe uma relação de trabalho.
A Proposta pretende ainda aumentar a transparência na utilização de algoritmos pelas plataformas, assegurando a monitorização humana e o direito de contestar decisões automatizadas (artigo 6.º).
A par do mencionado, a Proposta reforça os poderes das autoridades inspetivas e obriga as plataformas a cumprirem um conjunto de deveres de informação sobre a forma como o trabalho é prestado, o número de trabalhadores e as condições contratuais aplicáveis (artigos 11.º e 12.º).
Por fim, no artigo 18.º, estabelece-se a proteção dos trabalhadores das plataformas contra despedimentos ilícitos. Com este passo, podemos afirmar que em breve teremos uma Europa totalmente preparada para a Era Digital.
Portugal
Recentemente o Governo Português, no âmbito da “Agenda do Trabalho Digno", aprovou uma proposta de lei que altera o Código do Trabalho e que vai de encontro ao previsto na Proposta de Diretiva acima referida, isto é, cria uma presunção de vínculo laboral para o trabalho desenvolvido nas plataformas digitais (artigo 12.º-A).
A presunção assenta na existência de um conjunto de indícios, que passam, nomeadamente, pelos seguintes: (i) o operador de plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na mesma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela; (ii) o operador de plataforma digital processa o pagamento entre os utilizadores e o prestador da atividade das plataformas; (iii) o prestador da atividade não atua em nome próprio, antes presta a sua atividade inserido na organização do operador de plataforma digital; (iv) a comunicação entre os utilizadores e prestador da atividade é realizada e gerida pelo operador de plataforma digital; (v) o operador de plataforma digital controla a qualidade dos resultados atingidos pelo prestador da atividade fornecendo aos seus utilizadores a avaliação ou o rating dos mesmos; (vi) o operador de plataforma digital controla em tempo real a atividade realizada pelo prestador da atividade, nomeadamente através de um sistema de geolocalização contínuo e de uma gestão algorítmica; (vii) o operador de plataformas digitais exerce poderes sobre o prestador da atividade, nomeadamente o disciplinar, podendo excluí-lo de futuras atividades através da desativação da conta quando têm uma avaliação considerada como insuficiente. A presunção pode ser ilidida pelo operador da plataforma.
A proposta de lei, que ainda não foi aprovada, salvaguarda regimes especiais que já têm regras próprias, como é o caso dos TVDE, mantendo-se, neste caso, a figura do operador, que limita o reconhecimento do vínculo laboral entre motoristas e plataformas.
Em Portugal, a Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, prevê o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaraterizados a partir de plataforma eletrónica. De forma inovadora, a lei portuguesa introduziu um quarto interveniente no processo. Para além da plataforma eletrónica, do motorista e do passageiro, surge o operador TVDE, que é quem presta o serviço remunerado de passageiros e que, por sua vez, celebra o contrato com os motoristas.
Esta lei acabou com o “vazio regulatório” existente no ordenamento português, estabelecendo um conjunto de requisitos para o exercício das atividades económicas em causa. O início da atividade, quer do operador de TVDE, quer do operador de plataformas, está sujeito ao licenciamento do IMT. No que diz respeito aos motoristas, a lei define um sistema de pré-qualificação obrigatória, a qual inclui um contrato escrito que titula a sua relação e o operador de TVDE, ao qual se aplica a presunção de contrato de trabalho consagrada no artigo 12.º do Código do Trabalho.
Brasil
No Brasil, não há nenhuma norma específica que regule as relações de trabalho mediadas por plataformas digitais. Existem diversos projetos de lei em andamento, alguns estabelecendo e outros excluindo a presunção do vínculo laboral (conforme os artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT), que possui como elementos essenciais à sua caracterização: a subordinação, a pessoalidade, a habitualidade e a onerosidade.
O reconhecimento do vínculo de emprego envolvendo os recentes modelos de contratação acordados entre motoristas das aplicações e empresas provedoras de plataformas de tecnologia é ainda um tema novo no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST) brasileiro. Embora algumas “Turmas” do TST já tenham proferido decisões que reconhecem o vínculo laboral entre o motorista e a Uber, outras proferiram decisões em sentido diverso, demonstrando que não há entendimento consolidado acerca do tema na Justiça Laboral Brasileira.
Durante a pandemia causada pela COVID-19, em 2020, os prestadores de serviço de plataformas digitais no país organizaram o “Breque dos Apps”, uma espécie de greve nacional dos prestadores de serviço, que contou com grupos organizados em várias cidades do Brasil. As manifestações tiveram a participação dos prestadores de serviço que desligaram as suas aplicações durante algumas horas como forma de protesto. De entre as reivindicações que pautaram essa mobilização, destacava-se o aumento do valor mínimo por viagem, a solicitação de benefícios como vale-refeição e seguros (de vida, contra acidentes e roubos), o fim dos bloqueios nas aplicações e o fornecimento de equipamentos de proteção contra o vírus, tais como máscaras e álcool-gel.
Em janeiro de 2022 foi aprovada a Lei n.º 14.297, que trata especificamente da proteção de prestadores que prestam seus serviços por intermédio das plataformas digitais, durante período pré-fixado e qualificado como “estado de emergência em saúde pública”. Entre as medidas, a lei prevê que as plataformas devem ter seguro contra acidentes com previsão de indemnização ao trabalhador, assim como a obrigação de os prestadores de serviço diagnosticados com Covid-19 receberem auxílio financeiro da plataforma por um período inicial de 15 dias. O incumprimento das regras de proteção pelas empresas pode resultar em sanções que vão desde advertências até o pagamento de multas.
Contudo, no dia 22 de abril de 2022, o Ministério da Saúde brasileiro publicou uma portaria em que declarou o fim do estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin). A entrada em vigor da referida portaria afetará diretamente algumas regras laborais, modificadas temporariamente em razão da situação excecional enfrentada nos últimos dois anos. Entre elas estão obrigações impostas a empresas e direitos de trabalhadores que foram flexibilizados e, nesse mesmo sentido, a cessação da referida Lei n.º 14.297/22.
O desafio da regulação do trabalho mediado por plataformas passa por encontrar um equilíbrio: por um lado, importa proteger quem exerce sua atividade laboral através de meios telemáticos; por outro, importa estimular as empresas que, alicerçadas na livre iniciativa e no avanço tecnológico, procuram desenvolver a sua atividade com base na digitalização.
Em suma, o cenário brasileiro ainda se apresenta juridicamente inseguro face ao desenvolvimento de relações de trabalho em plataformas, quer por inexistência de legislação específica, quer por divergência jurisprudencial, facto que gera insegurança jurídica aos trabalhadores da nova economia.
Itália
Em 2015, o Tribunale di Milano pronunciou-se relativamente a um litígio entre várias entidades representativas da categoria de taxistas e a UBER POP (procedimento cautelare n.º 16612). Tendo em conta que o serviço disponibilizado por meio da plataforma digital da Uber concede a possibilidade, a quem não tem carteira de motorista de táxi, de realizar um serviço de transporte pago, usando a aplicação da empresa (que funciona como intermediário entre motoristas e clientes), o Tribunal de Milão considerou que a atividade da UBER POP era um caso de concorrência desleal, nos termos do art. 2598 n. 3 do Código Civil italiano.
Recorde-se que o Codice Civile, no parágrafo terceiro do art. 2598.º, estabelece que quem fizer uso, direta ou indiretamente, de qualquer outro meio que não cumpra os princípios da idoneidade profissional e que possa causar prejuízo a empresa alheia, pratica actos de concorrência desleal.
Por outro lado, o artigo 82.º do Código da Estrada Italiano define os limites da utilização do veículo a favor de terceiros, sancionando a proibição de utilização do veículo para fins diversos dos indicados nos documentos de matrícula.
Recentemente, o Decreto-Legge n.º 143, de 29 de dezembro de 2018, que regula, para além do setor dos táxis, o do noleggio con conducente (NCC), criou novas regras para o sistema de transporte público não regular, como por exemplo, o facto de os NCC serem obrigados a regressar à sua sede após cada viagem. Ao contrário dos táxis, que param em zonas públicas especialmente marcadas, o NCC pode operar em todo o território nacional, sem dispor de zonas de estacionamento assinaladas.
O diploma, todavia, nada previu sobre o fenómeno Uber e, em geral, sobre o trabalho desenvolvido nas plataformas digitais.
Essa previsão caberá agora ao legislador que terá de tomar em consideração a muito recente diretiva da UE.