Muito recentemente, o Tribunal Constitucional (“TC”) declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (“CIRE”). Isto, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler – ainda que com as necessárias adaptações – à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência, e como disposto no artigo 28.º do CIRE. A decisão do TC fundamenta-se na violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
A norma declarada inconstitucional insere-se no âmbito do Processo Especial para Acordo de Pagamento (“PEAP”), instrumento de recuperação extrajudicial elegível a devedores não empresários que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente (artigos 222.º-A e 5.º, do CIRE).
Quando o devedor ou a maioria dos credores conclua pela inviabilidade de um acordo de pagamento, ou quando o acordo de pagamento aprovado não seja homologado pelo juiz, cabe ao Administrador Judicial Provisório emitir um parecer sobre a situação de solvência ou insolvência do devedor (artigos 222.º-G, n.ºs 1 e 4 e 222.º-F, n.º 6, do CIRE).
Atualmente, em virtude da declaração de inconstitucionalidade pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/2020, de 7 de julho de 2020, caso o Administrador Judicial Provisório do PEAP conclua pela situação de insolvência, o parecer emitido deixa de poder equivaler à apresentação à insolvência pelo devedor e ao reconhecimento da sua situação insolvencial, quando o devedor dela discorde.
E isto porque a interpretação anterior, vedando ao devedor a oposição à declaração de insolvência, violava o seu direito ao contraditório, nas vertentes da proibição da indefesa e do direito à participação efetiva no desenvolvimento do litígio. Essencialmente, o direito ao contraditório deve ser exercido perante o Tribunal e não perante o Administrador Judicial Provisório, sendo certo que a possibilidade de impugnação da decisão de insolvência já tomada não assegura o direito ao contraditório, mas sim o direito ao recurso, que com aquele não se confunde.
No Processo Especial de Revitalização (“PER”), instrumento de recuperação extrajudicial elegível a devedores empresários em situação económica difícil ou em insolvência iminente, o regime é similar: na hipótese de inviabilidade do plano de revitalização ou da sua não homologação pelo juiz, o Administrador Judicial Provisório emite parecer sobre a situação de solvência ou insolvência do devedor (artigos 17.º-G, n.º 4 e 7.º-F, n.º 8, do CIRE).
A norma constante do n.º 4 do artigo 17.º-G do CIRE também já foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 675/2018, de 23 de janeiro de 2019, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º – ainda que com as necessárias adaptações –, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
A declaração de inconstitucionalidade proferida pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/2020 veio, assim, harmonizar o sistema, corrigindo uma situação de desigualdade entre os devedores empresários e os devedores não empresários que não se justificava, uma vez que, no que respeita aos seus pressupostos objetivos e às consequências processuais da não aprovação do plano de revitalização ou do acordo de pagamento, não existe diferença juridicamente relevante entre o PER e o PEAP (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 388/2019).
No tempo que mediou entre o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 675/2018 e o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/2020, continuaram a poder ser proferidas decisões de insolvência automática do devedor não empresário por efeito do parecer do Administrador Judicial Provisório, o que já não sucedia com os devedores empresários.
Atualmente, expurgadas do sistema as normas gémeas em matéria de PER e de PEAP, interpretadas no sentido da equivalência do parecer do Administrador Judicial Provisório ao pedido de insolvência pelo devedor, garante-se que em caso de frustração das negociações com os credores ou de não homologação dos acordos pelo Tribunal, em ambos os processos pré-insolvenciais seja assegurado o direito ao contraditório prévio à declaração de insolvência, perante um órgão jurisdicional, em cumprimento das exigências de proteção ditadas pelo artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.