Este artigo foi publicado no Jornal de Negócios no dia de hoje, 20-10-2022. 

Depois de um prolongado e complexo processo legislativo, a Diretiva (UE) 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018[1], também conhecida por “Diretiva ECN+”, foi (tardiamente) transposta pela Lei n.º 17/2022, de 17 de agosto.

A Lei n.º 17/2022 introduz significativas alterações à Lei da Concorrência (aprovada pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio), assim como aos Estatutos da Autoridade da Concorrência (“AdC”). Essas alterações são aplicáveis aos procedimentos desencadeados a partir de 16 de setembro de 2022, data da sua entrada em vigor.

Para uma melhor perceção do contexto da Diretiva ECN+ e da (tão) aguardada lei nacional de transposição, deve salientar-se que a Diretiva ECN+ apenas se aplica aos artigos 101.º (práticas restritivas da concorrência) e 102.º (abusos de posição dominante) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), que são suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados-Membros.

A aplicação destas regras de concorrência é assegurada pelas autoridades nacionais da concorrência (“ANC”), como é o caso da AdC, em paralelo com a Comissão Europeia, ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 1/2003[2], integrando a designada “Rede Europeia da Concorrência”.

A Diretiva ECN+ visa assegurar que as ANC dispõem de garantias de independência, de meios e de competência de execução e aplicação das coimas necessárias de modo a conseguirem aplicar, de forma eficaz, os artigos 101.º e 102.º do TFUE, mas acabará necessariamente por influenciar o Direito nacional da concorrência, em particular, quando este seja aplicado em paralelo, o que ocorre na maioria dos casos.

O objetivo fundamental da Diretiva ECN+ é a harmonização processual e procedimental, fruto do modelo descentralizado trazido pelo Regulamento (CE) n.º 1/2003 e de uma crescente integração (não isenta de críticas) do “public enforcement” das regras de Direito da concorrência entre os 27 Estados-membros.

De entre as alterações introduzidas à Lei da Concorrência, destacam-se as alterações relativas:

(i)  Ao reforço dos poderes de investigação da AdC, em particular no âmbito dos poderes de busca, exame, recolha e apreensão, incluindo buscas domiciliárias;

(ii) Aos prazos de recurso de decisões finais, que passam de 30 dias úteis para 60 dias, e ao efeito dos recursos de decisões sancionatórias, que terão efeito suspensivo quando o visado efetue o pagamento do valor total da coima ou de uma caução no valor de 50% da coima;

(iii) À prescrição do procedimento por infração, que passa a suspender-se pelo prazo que a decisão da AdC for objeto de recurso judicial, sem que exista uma limitação temporal, o que constitui uma alteração, no mínimo, discutível, por excessiva e desproporcional, e em violação dos princípios de segurança e certeza jurídica; e

(iv) Às coimas, passando a aplicar-se um limite máximo de 10% do volume de negócios total, a nível mundial (e não nacional), das empresas infratoras.

Nem todas as alterações introduzidas resultam da transposição da Diretiva ECN+, verificando-se, em alguns aspetos, um extravasar do previsto na Diretiva.

Assiste-se a uma reforma do regime de concorrência vigente, que surge, quase como despercebida (pelo menos, para já), suscitando diversas dúvidas ao nível da sua certeza e segurança jurídica. Antecipa-se assim um aumento da litigância, com um efeito contraproducente em relação ao objetivo último de integração do “public enforcement” das regras de concorrência nos diversos Estados-membros.

É, por isso, muito importante que as empresas se preparem para fazer face a estas novas alterações, com a adoção de programas de compliance no âmbito do Direito da concorrência, que devem consciencializar e sensibilizar os seus colaboradores para as práticas permitidas e proibidas, com uma enumeração de “To-Do and To-Don’t” e realçar as possíveis consequências de uma infração, nomeadamente, sanções financeiras, danos reputacionais, perda de clientela e de mercado, responsabilidade contraordenacional e criminal, incluindo dos seus órgãos de direção. Mas não só!

As empresas devem estar preparadas para reagir em casos de inspeções (dawn raids) da AdC, conhecendo quais são os seus direitos e deveres, que meios de tutela têm à sua disposição, que informação deve e pode ser transmitida à AdC.

Só um programa de compliance robusto, mas simultaneamente simples, direto e acessível, conseguirá responder eficazmente a estas exigências e às novas alterações, que terão repercussões, quer, na parte de deteção, bem como na parte de repressão de infrações, com um reforço dos poderes da AdC e um previsível aumento das coimas aplicáveis. 

Poderá, assim, ser caso para dizer que, a coberto da transposição da Diretiva ECN+, a Lei da Concorrência tornar-se-á uma “Lei da Concorrência +”.

 
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