2022-06-24
Susana Vieira

O Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”) decidiu, em acórdão uniformizador de jurisprudência publicado no passado dia 10 de maio de 2022 que a indicação, no título constitutivo de uma propriedade horizontal, “de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”.

Este acórdão surge na sequência de outras decisões, quer do próprio STJ, quer dos Tribunais da Relação de Lisboa e do Porto, de sentido contraditório quanto à admissibilidade de, numa fração autónoma destinada a habitação, ser desenvolvida a atividade de alojamento local.

Mais do que analisar a bondade dos argumentos e da decisão adotada, o objetivo deste artigo é abordar alguns dos efeitos práticos desta decisão.

Em termos objetivos, a questão central pode colocar-se nestes termos: caso uma fração autónoma tenha como fim, estabelecido no respetivo título constitutivo de propriedade horizontal, habitação e seja usada para alojamento local, qualquer proprietário de outra fração autónoma poderá opor-se a esse uso, ainda que o alojamento local tenha sido instalado e registado corretamente do ponto de vista administrativo.

Caso, após o exercício deste “direito de oposição”, a atividade de alojamento local não cesse voluntariamente, o proprietário que se tenha oposto terá de recorrer a uma ação judicial para, por essa via, fazer valer o seu direito.

Quem desenvolve atualmente uma atividade de alojamento local em fração autónoma que, de acordo com o respetivo título constitutivo, se destine a habitação, passa, deste modo, a correr um risco acrescido de cessação dessa atividade, ainda que esteja registado para o efeito e independentemente da forma como exerce essa atividade em concreto.

Trata-se de um risco que se situa no no plano das relações privadas entre proprietários / condóminos e que que não está sujeito a controlo pelas câmaras municipais no âmbito do registo do alojamento local.

Com efeito, nos termos do regime jurídico do alojamento local aprovado pelo Decreto-lei n.º 128/2014, de 29 de agosto, com a redação dada pela Lei n.º 62/2018, de 22 de agosto (“RJAL”), o registo de um alojamento local pode ser efetuado com base numa autorização de utilização para habitação – não sendo exigido que a autorização de utilização indique um fim específico – e não é exigida a apresentação do título constitutivo da propriedade horizontal ou nem de certidão de registo predial da fração. Apenas no caso dos hostels é exigida autorização da assembleia de condomínio.

Por outro lado, este “direito de oposição” não deve confundir-se com a possibilidade de, nos termos do RJAL, a assembleia de condóminos se opor ao exercício da atividade de alojamento local em frações autónomas com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos e disso dar conhecimento ao Presidente da Câmara Municipal competente, que pode decidir pelo cancelamento do registo do alojamento local em questão.

Embora seja prática comum incluir no titulo constitutivo da propriedade horizontal a menção ao fim das frações autónomas – em conformidade com o atestado na respetiva autorização de utilização – essa menção não é legalmente obrigatória. Uma das formas de reduzir o risco indicado poderá ser, por exemplo, a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal.

Em regra, a modificação do título constitutivo exige o acordo de todos os condóminos pelo que a sua adoção deve ser bem ponderada – até por ser possível deliberar, para o alojamento local, o pagamento de uma contribuição adicional pelas despesas decorrentes da utilização acrescida das partes comuns, com um limite de 30% do valor anual da quota correspondente à fração em causa.

Quem pretenda, no futuro, iniciar a atividade de alojamento local ou investir em frações autónomas para que outros operadores aí desenvolvam essa atividade fica, do mesmo modo, sujeito ao risco de o proprietário de uma outra fração autónoma poder (e querer) este “direito de oposição” . Neste caso, previamente à realização do investimento, será aconselhável efetuar uma análise cuidada da situação jurídica da fração, de modo a assegurar as condições adequadas para a realização do investimento pretendido.

Do ponto de vista dos promotores de novos empreendimentos, o acórdão do STJ poderá, também fazer repensar a prática de especificar o fim das frações autónomas no título constitutivo de uma propriedade horizontal de forma tão “fechada” como tem sido comum até agora.

Por último, mas não menos importantes, os efeitos no plano administrativo. O RJAL, na redação em vigor, não permite à câmara municipal o controlo da finalidade prevista no título constitutivo da propriedade horizontal para a fração para a qual se pretende registar o alojamento local nem ao seu Presidente cancelar um registo de alojamento local na sequência de sentença judicial que condene o titular de um alojamento local a cessar a sua atividade na sequência de ação judicial instaurada para exercer o “direito de oposição”.

Porém, estas questões irão seguramente colocar-se muito em breve e é desejável uma resposta a nível legislativo que as clarifique e dê a todos os envolvidos - quem exerce a atividade, quem pretende investir, proprietários de frações e câmaras municipais - a segurança necessária à tomada de decisões.

Este artigo foi publicado em duas partes no Jornal de Negócios no dia 05-05-2022 e no dia 12-05-2022

A Comissão Europeia aprovou recentemente uma proposta de Diretiva relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade. A Diretiva visa a implementação harmonizada pelos Estados-membros da União Europeia (UE) de novas obrigações pelas empresas em matéria de efeitos negativos (potencias ou reais) resultantes das suas próprias operações, das operações das suas filiais e da sua cadeia de valor, a nível dos direitos humanos e impacto climático e ambiental.

“Sustentabilidade”, “dever de diligência” e “cadeia de valor” são os três conceitos-chave da proposta de Diretiva, cujo texto final terá ainda de ser aprovado pelo Parlamento Europeu e Conselho.

Começando pela sustentabilidade, o conceito de desenvolvimento sustentável foi definido pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1987, no célebre relatório “Our Common Future”, da autoria da Comissão Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento (World Commission on Environment and Development – WCED) liderada pela então primeira-ministra da Noruega Gro Brundtland. De acordo com a WCED, o desenvolvimento sustentável é aquele que “atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades”.

No contexto empresarial, a sustentabilidade aparece associada aos conceitos de responsabilidade social empresarial e aos fatores de ESG (Environmental, Social and Governance). Ou seja, a utilização de indicadores puramente financeiros, como o lucro, deixa de ser suficiente para medir o desempenho das empresas.

Para além do fator económico, devem ser tidos em conta outros fatores, nomeadamente, sob a égide do ESG, de ordem ambiental, social e de governação. A estes fatores remonta o conceito de Triple bottom line (“3BL”) do norte-americano John Elkington, que previa a adoção conjunta de três dimensões (ou dos três “P”) para avaliar os resultados de um negócio: a económica, do lucro (profit) ou da prosperidade (prosperity); a social, ou das pessoas (people); e a ambiental, ou do planeta (planet).

Torna-se, assim, necessário integrar a sustentabilidade nos sistemas de governação e de gestão empresariais e enquadrar as decisões empresariais em matéria de direitos humanos, impacto climático e ambiental. É isto que a proposta de Diretiva nos vem dizer e impor aos Estados-membros.

Isto implica a adoção pelas empresas de processos abrangentes de atenuação dos efeitos negativos ao nível dos direitos humanos, impacto climático e ambiental. E é aí que surge o dever de diligência (due diligence) das empresas, que não se pode limitar ao âmbito das próprias operações da empresa e das suas filiais, mas é crucial que também inclua a sua cadeia de valor.

Quando falamos em cadeia de valor, referimo-nos às relações empresariais (diretas e indiretas) estabelecidas por uma empresa, não apenas “a montante” (nomeadamente, extração, fabrico, transporte, armazenamento e fornecimento de matérias-primas, produtos ou serviços), mas também “a jusante” (nomeadamente, distribuição, transporte e armazenamento de produtos, o seu desmantelamento, reciclagem, compostagem ou deposição em aterro).

Ao nível da cadeia de valor podem ocorrer efeitos negativos, com repercussões para a própria empresa, os seus stakeholders (partes interessadas) e terceiros. Por exemplo, ao nível do aprovisionamento de matérias-primas, do fabrico ou da eliminação de produtos ou resíduos, podem ocorrer efeitos negativos a nível dos direitos humanos, como o trabalho forçado, o trabalho infantil, situações inadequadas de saúde e segurança no local de trabalho, a exploração dos trabalhadores, bem como podem ocorrer efeitos negativos a nível ambiental, como as emissões de gases com efeito de estufa, a poluição ou a perda de biodiversidade e a degradação dos ecossistemas. Estes efeitos devem ser acautelados, mitigados e, se possível, eliminados.

As empresas (leia-se, grandes empresas) têm vindo a recorrer ao domínio da soft law, ou seja, à aplicação de normas internacionais voluntárias em matéria de dever de diligência empresarial, para identificar os riscos na sua cadeia de valor, de que se destacam, entre outros instrumentos, os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos e as Linhas Diretrizes da OCDE para as Empresas Multinacionais e para uma conduta empresarial responsável.

O domínio da soft law para regular a sustentabilidade, sob a égide dos fatores de ESG, não se revela, porém, viável (ou se se preferir “sustentável”) a médio e longo prazo, antecipando-se dificuldades várias, em particular, quanto à falta de clareza jurídica das obrigações em matéria de dever de diligência das empresas e que se adensará quanto mais complexa for a cadeia de valor, com obstáculos à livre circulação e distorções da concorrência e com pertinência a nível da responsabilidade civil em caso de danos causados na cadeia de valor de uma empresa.

A fim de permitir que as empresas identifiquem adequadamente os efeitos negativos para a sua cadeia de valor e possam obter um efeito de alavanca adequado, a Comissão Europeia aprovou a referida proposta de Diretiva, que impõe às empresas abrangidas pelo seu âmbito de aplicação: (i) integrar o dever de diligência em todas as suas políticas empresariais e dispor de uma política em matéria de dever de diligência, incluindo um código de conduta que descreva as regras e os princípios a seguir pelos trabalhadores e filiais da empresa, bem como os processos instaurados para aplicar o dever de diligência, incluindo as medidas tomadas para verificar o cumprimento do código de conduta e alargar a sua aplicação às relações empresariais estabelecidas; (ii) identificar impactos negativos reais ou potenciais nos direitos humanos e no ambiente das suas próprias operações ou das operações das suas filiais e, quando relacionados com as suas cadeias de valor, das suas relações empresariais estabelecidas (duradouras); (iii) evitar ou atenuar potenciais impactos; (iv) eliminar ou minimizar os impactos reais, nomeadamente, suspender temporariamente as relações comerciais com o parceiro ou pôr termo à relação empresarial no que diz respeito às atividades em causa se o efeito negativo for grave; (v) estabelecer e manter um procedimento de reclamação; (vi) controlar a eficácia da estratégia e das medidas em matéria de dever de diligência; (vii) comunicar publicamente informações sobre o dever de diligência, o que se revela de extrema importância e exigirá um cuidado acrescido por parte das empresas em cumprirem o que se propõem fazer, evitando-se uma sustentabilidade de fachada, sob pena de responsabilidade.

Considerando a redação proposta, a Diretiva deverá ser transposta pelos Estados-membros dois anos após a sua publicação no Jornal Oficial (que não se sabe ainda quando ocorrerá), aplicando-se a grandes empresas – a empresas com mais de 500 trabalhadores e um volume de negócios líquido superior a € 150 milhões a nível mundial. Quatro anos depois, a aplicação das novas regras será alargada a empresas com mais de 250 trabalhadores e um volume de negócios líquido superior a € 40 milhões, a nível mundial, em setores onde exista um elevado risco de violação dos direitos humanos ou de danos para o ambiente, como, por exemplo, na agricultura, nos têxteis ou nos minerais. A aplicação da Diretiva não se restringirá, todavia, a empresas sedeadas na UE, sendo igualmente aplicável a empresas de países terceiros que operem na UE, com um limiar de volume de negócios equivalente aos indicados acima, desde que gerado na UE.

Embora as PME não estejam incluídas no âmbito de aplicação da proposta de Diretiva, acabarão por ser afetadas no âmbito das operações da cadeia de valor de uma empresa, nas quais participem como parceiro empresarial e com a qual mantenham uma relação empresarial estabelecida, isto é, uma relação de natureza duradoura. Como tal, também as PME acabarão, ainda que indiretamente, por ser incentivadas ao cumprimento das medidas relativas ao dever de diligência. Certamente, as grandes empresas terão a capacidade de persuadir um parceiro empresarial a tomar medidas para fazer cessar ou prevenir efeitos negativos, para já não referir do grau de influência ou de alavanca que uma grande empresa poderá exercer sobre um parceiro empresarial, em especial quando seja uma PME.

A violação da legislação nacional adotada em cumprimento da Diretiva dará lugar à aplicação de sanções pelas autoridades de supervisão a designar por cada Estado-membro e que em conjunto integrarão a rede de supervisão. As sanções serão estabelecidas pela legislação de cada Estado-membro, referindo apenas a Diretiva que deverão ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

Em Portugal, antecipamos que a violação da legislação nacional possa vir a dar lugar à aplicação de coimas calculadas de acordo com o volume de negócios da empresa infratora, bem como outras sanções, como, por exemplo, a apreensão de mercadorias, exclusão da empresa de forma temporária ou indefinida de procedimentos de contratação pública, de auxílios estatais e de regimes de apoio público.

Além do mais, poderá haver lugar a responsabilidade civil das empresas por danos causados. Neste âmbito, a proposta de Diretiva utiliza uma abordagem distinta no que diz respeito às próprias atividades da empresa e das suas filiais e, por outro, quanto às suas relações empresariais. Quanto à cadeia de valor, a Diretiva prevê que a responsabilidade civil da empresa engloba relações empresariais estabelecidas, ou seja, com as quais uma empresa espera ter uma relação duradoura, tendo em conta a sua intensidade ou duração, e que não representem uma parte negligenciável ou meramente acessória da cadeia de valor da empresa.

No contexto empresarial, esperam-se, assim, deveres de diligência acrescidos para as empresas, sobretudo, numa primeira fase, para grandes empresas, mas desenganem-se as PME quando pensam que não serão “atingidas”, em particular quando integrem a cadeia de valor de grandes empresas. Obviamente, o legislador não procura exigir o mesmo a uma grande empresa ou a uma PME, mas o mesmo não se pode dizer de uma grande empresa em relação aos seus parceiros de negócio, até por uma questão de salvaguarda da própria empresa ou grupo.

Cada vez mais se caminhará para que a sustentabilidade, sob a égide dos fatores ESG, se traduza num objetivo-fim de cada empresa. A questão não será tanto de dimensão, mas de competitividade, pois como dizia Pablo Isla (anterior CEO do Grupo Inditex): “Eu hoje vendo camisas. No futuro, vendo camisas sustentáveis… ou não vendo!”

Questão diferente será, porém, a de quantificar os resultados dos diferentes fatores de ESG, em particular, quando não sejam mensuráveis, mas isso daria um outro artigo.

Este artigo foi publicado no Jornal Dinheiro Vivo no dia 03/05/2022. Poderá lê-lo aqui

Desde o início da pandemia, em finais de 2019/ inícios de 2020, testemunhámos um crescimento exponencial da importância do regime de teletrabalho nas relações laborais, apesar de este existir no nosso ordenamento jurídico desde 2003.

Naturalmente o teletrabalho que apresenta vantagens, não só para as partes da relação laboral, como também para a sociedade.

Ao empregador, garante a diminuição dos custos com instalações e energia, bem como a otimização dos espaços disponíveis.

Ao trabalhador, possibilita uma melhor conciliação entre a vida profissional e familiar e a redução das despesas (e tempo) de transporte com deslocações para o local de trabalho.

Por seu turno, a sociedade beneficia, nomeadamente, na redução dos níveis de poluição e descongestionamento do centro das cidades.

Mas o regime de teletrabalho não se limita a vantagens.

É importante não esquecer que o mobbing, como o assédio moral que ocorre no local de trabalho, pode também verificar-se no novo local de trabalho do teletrabalhador, normalmente, o seu domicílio.

O assédio em teletrabalho pode ocorrer “em direto” ou em diferido, em reunião por videochamada, mediante humilhação do trabalhador ou através de uma “chamada de atenção” pública. Em teletrabalho, estas situações acontecem não só perante o teletrabalhador e outros elementos da empresa, mas também perante familiares, tendo em conta que nem todos os teletrabalhadores têm condições para ter um espaço próprio para trabalhar em casa.

Para minimizar e permitir, caso aconteça, a resolução rápida de uma situação de assédio em teletrabalho, é importante as empresas implementarem instrumentos de compliance laboral, nomeadamente um Código para a Prevenção e Combate ao Assédio no Trabalho.

O código de conduta é um dos instrumentos de compliance laboral obrigatório para todas as empresas, independentemente da sua natureza pública ou privada, com número igual a sete trabalhadores, e visa dar a conhecer, evitar, identificar, eliminar e punir situações e comportamentos suscetíveis de substanciar assédio no trabalho.

Deve garantir que: (a) os trabalhadores e os órgãos de topo são responsáveis pelo cumprimento de uma política de tolerância zero relativamente a práticas de assédio; e (b) a Entidade Empregadora define uma política interna de tolerância zero, que consagre, nomeadamente: (i) o representante da empresa que o trabalhador deve contactar, (ii) o dever de qualquer pessoa denunciar um incidente de assédio; (iii) a proteção dos trabalhadores que denunciem uma situação de assédio, relativamente a formas de retaliação; (iv) a definição de um processo de averiguação e resolução conduzido por trabalhadores com conhecimentos especializados na prática da prevenção e resolução de assédio; (v) as sanções a aplicar.

As empresas não devem, por isso, preocupar-se apenas em ter um documento escrito que cumpra formalmente com a obrigação legal. É exigível a adoção de medidas concretas e regulares que permitam a sua efetivação, nomeadamente ao nível do teletrabalho. Apenas adotando um código simples, de fácil perceção e que cumpra com as orientações das entidades competentes, as empresas conseguirão alcançar o tão desejado objetivo: evitar e denunciar situações de assédio laboral, em geral, e no contexto de teletrabalho, em particular.

Este artigo foi publicado no dia 1 de abril no Expresso Caderno de Economia, página 29

Não cabe dúvida estar o Mundo num virar de página, na História, na Economia e na vida de todos nós. Na História, cai agora o véu que nos impediu tanto tempo de reconhecer uma das maiores tirarias sobre a Terra (e não se pense que a Rússia é a única que nos faltava admitir como tal, pois temos ainda a China e países como a Arábia Saudita, que continuamos a tratar como iguais nos valores quando não o são). Na Economia, entrámos num ciclo inflacionista, que já era inevitável como consequência das políticas monetárias seguidas na luta contra os efeitos da pandemia da Covid-19, e que, com a invasão russa da Ucrânia, ninguém sabe dizer onde nos vai levar. Nas vidas de nós ocidentais, bafejados pela sorte de vivermos longe da guerra e da pobreza de tantos locais no Mundo, sentimo-nos encurralados com a subida dos preços de tudo o que consumimos, e perplexos na nossa incompreensão dos mecanismos de fixação dos preços. Alguns pedem a tributação das mais-valias que adjetivam como injustificadas, imorais e causadoras da carestia que afeta a maioria. Outros, mais moderados, questionam-se sobre a universalidade das regras do mercado, perguntam-se se não será tempo aqui também de virar uma página.

É neste contexto que a Comissão Europeia propôs recentemente um plano, ao qual deu o nome de REPowerEU, para eliminar a dependência de combustíveis fósseis russos antes de 2030, dar resposta ao aumento dos preços de energia na Europa e reconstituir as reservas europeias de gás. Esta iniciativa pode, para além de mexer no mercado do gás, vir a ter um impacto significativo no sector das renováveis, pois permite aos Estados-Membros tomarem medidas de regulação dos preços; tributações temporárias dos lucros inesperados a utilização das receitas do comércio de licenças de emissão e auxílios estatais. No mercado ibérico (MBEL) temos também assistido à discussão sobre os mecanismos de fixação dos preços da eletricidade. Os preços grossistas da eletricidade no OMIE (onde se negoceia o preço diário e o preço intra-diário da eletricidade na Península Ibérica) são calculados com base num critério de preços marginais que procura espelhar o encontro de forças entre a oferta e a procura de eletricidade. Existe um algoritmo para estes cálculos chamado EUPHEMIA – quem sabe se batizado em homenagem à santa grega torturada até à morte por não aceitar participar em sacrifícios pagãos na Constantinopla romana do sec. III – e podemos dizer que a este respeito as coisas são deveras complexas; mas, tentando simplificar, podemos explicá-lo da forma que se segue:

No OMIE encontram-se a procura indicada pelos operadores das redes espanhola (REE) e portuguesa (REN) e as ofertas que os produtores fazem para corresponder a essa procura. O preço que se estabelece para compra da eletricidade será o preço da última oferta a ser inserida no sistema (normalmente, a de quem tem menos incentivo a vender, quem obtém um lucro menor com a venda). Se essa oferta for de uma central de ciclo combinado a gás, refletirá os custos desse produtor e não, por exemplo, a média dos custos de produção de todas as ofertas feitas nesse dia. Um produtor com uma central fotovoltaica vai vender a sua eletricidade no OMIE ao preço de venda do produtor da central de ciclo combinado a gás, o que, no atual contexto, significa ter uma margem significativamente superior à que estaria disposto a aceitar caso todas as ofertas ao mercado fossem de produção fotovoltaica.

É aqui que se pode perguntar se, ao agregar diferentes tipos de ofertas e ao escolher um critério de fixação de preços que parece ser incapaz de refletir diferentes custos de produção, o mercado não estaria impedido de funcionar corretamente como se estaria no caso de o confronto direto entre ofertas comparáveis e a procura fosse possível. Claro que a escolha do critério dos preços marginais tem uma explicação técnica, um racional que nos pode parecer mais adaptado a um contexto de oferta abundante e custos homogéneos (onde a pressão para vender seja semelhante em todos os produtores) mas que aparentemente é necessário, uma vez que o sistema precisa da energia produzida pelos produtores que queimam gás e outros combustíveis fósseis.

A criação de um imposto especial sobre as fontes de produção renováveis para igualar os chamados windfall profits (ao estilo do famigerado clawback criado pelo Governo da geringonça para eliminar os lucros injustificado dos produtores portugueses no MIBEL face aos espanhóis, vítimas de um imposto especial de 7%) implica um desincentivo àquilo que andamos todos a dizer que queremos incentivar. Um desincentivo com impacto não apenas imediato, mas também para o futuro do investimento em energias renováveis, que precisa de previsibilidade fiscal. Interessa reter que o mercado funciona com base numa perceção de risco, que inclui fatores do próprio mercado, tais como a evolução tecnológica ou, em sentido contrário, a evolução negativa do custo dos fatores de produção. Se lhes acrescentamos riscos não oriundos do mercado, como sejam uma intervenção administrativa nos preços ou a imposição de impostos (a cacofonia é propositada), o mercado deixa de funcionar, afetando, indiscriminadamente, a oferta (que pode ter de fechar portas) e a procura (que irá suportar ou preços mais altos ou a escassez, neste caso de eletricidade).

Por isso, uma intervenção administrativa nos preços, com a fixação de um máximo, por exemplo em 180 euros por MWh, como sugerido pelos Governos Português e Espanhol à Comissão Europeia, terá como consequência a produção deficitária em centrais a gás. O que fazer então, se precisamos dela? Certamente, os produtores com custos mais altos retirarão a sua oferta do mercado, a não ser que sejam subvencionados (o que tornaria a medida inútil), gerando escassez de oferta. Por outras palavras, não haveria eletricidade para todos, porque neste momento em que vivemos a oferta não é elástica (muito dizem que por se ter precipitado o Governo português em antecipar o fecho das centrais a carvão).

E, porque todos os resultados de preços acima que seguem as leis naturais não têm ideologia, qualquer regulação dos preços da eletricidade é de evitar. E a tributação dos windfall profits irá naturalmente fazer com que os preços subam ou que falte eletricidade a todos.A forma de intervenção estatal menos nociva será o apoio direto aos consumidores menos capazes de suportar os aumentos dos preços de mercado da eletricidade: os indivíduos e pequenas empresas com menos recursos e as empresas consumidoras electro-intensivas cuja atividade seja imprescindível ao tecido económico do país. Os mecanismos mais eficientes para dar esse apoio serão sempre o bom do cheque (e nunca a linha de crédito, que é como oferecer água a quem se está a afogar); ou, melhor ainda, o simples desconto nos impostos.

Consequentemente, a Comissão Europeia e os Estados-Membros devem, antes de mais, dar prioridade a uma reavaliação consensual dos métodos de fixação de preços da eletricidade e, se possível, ajustá-los de modo que permitam ao mercado funcionar melhor, pois não é o mercado que está a falhar, mas eventualmente as regras a que as plataformas de negociação como o OMIE estão sujeitas.

Este artigo foi publicado pelo jornal Dinheiro Vivo no dia 09-03-2022. Poderá lê-lo aqui

 

Muitas empresas ainda limitam o âmbito da sua responsabilidade e ética empresarial ao mero cumprimento de obrigações de fonte legal. A rentabilidade continua a ser o critério principal, se não o único (em muitos casos), pelo qual pautam as suas decisões de negócio.

Mudanças sociais, legais e regulamentares estão, porém, a forçar as empresas a adotar uma abordagem diferente. A título de exemplo, as empresas devem agora fornecer uma divulgação clara não apenas da sua posição financeira, mas também não financeira, nomeadamente dos seus princípios e práticas de bom governo, e de responsabilidade social. Devem também contribuir para o respeito pelos direitos humanos, proibir qualquer discriminação no emprego e agir de uma forma social e ambientalmente responsável, aparecendo a sustentabilidade e o ESG (Environment, Social and Governance), como um “mote” agregador desta atual tendência, que veio (e bem) para ficar e com a visibilidade devida. 

No mundo de hoje, a governação societária, a responsabilidade social das empresas/sustentabilidade e o compliance devem funcionar em uníssono. Os pontos de vista tradicionais sobre competitividade e rentabilidade estão a mudar. E a mudança vai ser vertiginosa.

Algumas destas questões há muito que são reguladas, mas o controlo das práticas empresariais por outros intervenientes só agora tem vindo a crescer. Clientes, fornecedores, colaboradores e a sociedade em geral estão a prestar cada vez mais atenção à forma como as empresas se comportam socialmente e a exigir que satisfaçam determinados critérios, que as colocam em um diferente patamar da competitividade. Disto também dependerá a competitividade da empresa e o seu posicionamento no mercado face aos demais concorrentes.

Com efeito, é essencial que as empresas decidam rever as suas práticas de governação, não só para cumprir com as suas obrigações estatutárias, mas também para definir o seu posicionamento interno e no mercado, assim como assegurar a sua responsabilização perante os seus stakeholders (partes interessadas).

Desafios e mudanças no compliance

As empresas enfrentam também novos desafios em áreas como a gestão da diversidade e a igualdade de oportunidades, com o objetivo de aumentar proporcionalmente posições ocupadas por minorias e mulheres em cargos superiores.

A gestão da diversidade centra-se na valorização da "diferença" e na não discriminação, bem como no respeito por cada indivíduo no local de trabalho, independentemente da sua raça, género ou orientação sexual. O anti assédio, que recentemente ganhou força com o movimento "#MeToo", é outra preocupação que está a impulsionar a introdução de novas políticas e procedimentos no local de trabalho.

Assistimos também a um surto de novas leis e regulamentos em relação à responsabilidade social, sustentabilidade, prevenção do branqueamento de capitais, anticorrupção, proteção de dados pessoais, entre outros.

A responsabilidade social e a sustentabilidade - reconhecendo o papel de uma empresa na sociedade - através, por exemplo, de apoio mecenático e responsabilidade ambiental - não devem ser vistas como uma ferramenta de marketing para maximizar os lucros futuros, mas como um contributo para o bem-estar de todos os interessados: colaboradores, acionistas, fornecedores, clientes e sociedade.

A ética é uma parte essencial e complementar do compliance

Os investidores estão a mudar a forma como analisam o desempenho de uma empresa e tomam decisões com base em critérios que incluem considerações éticas. Há provas de que o comportamento ético empresarial está a ter um impacto crescente nas perceções de mercado das partes interessadas e nas decisões dos investidores e clientes relativamente à escolha das empresas da sua cadeia de fornecimento.

Em organizações com uma fraca cultura e ética empresarial, os colaboradores tendem a comportar-se de uma forma que pode levar a comportamentos pouco éticos e prejudiciais, aumentando o risco de violações e danos subsequentes.

Ora, as empresas serão obrigadas a assumir a responsabilidade pela sua gestão e pelos actos dos seus colaboradores, a menos que possam provar que realizaram todos os esforços para dissuadir ou aconselhar contra comportamentos ilegais e/ou fraudulentos. 

Por isso, é essencial que todos os colaboradores recebam formação relevante e que sejam desenvolvidos controlos em toda a empresa envolvendo todos os departamentos, especialmente os jurídicos e de compliance. As políticas, procedimentos ou controlos não serão eficazes se não forem preparados, implementados e aplicados de uma forma muito mais inclusiva dentro da empresa.

A chave não é apenas seguir a lei, mas ensinar aqueles dentro da empresa que o que deve ser feito não é uma escolha. A empresa deve compreender o "porquê" daquilo que deve ser seguido e o "porquê" de dever ser seguido enquanto prioridade empresarial.

O compliance não é uma tendência passageira

O compliance não pode ser reduzido a um conjunto de listas de controlo. Não existe uma solução de conformidade de tamanho único. 

Os departamentos jurídico e de compliance devem tomar medidas para desenvolver um quadro de promoção de ética empresarial e de compliance jurídico dentro da empresa e sobretudo à medida da sua organização. Estas medidas devem incluir:

  • Implementação de auditorias jurídicas internas;
  • Disponibilização regular de informação dentro da empresa sobre responsabilidade social empresarial e compliance jurídico;
  • Transmitir internamente informações relevantes sobre legislação local e outra legislação relacionada com a empresa;
  • Proporcionar cursos/workshops de formação sobre ética empresarial e compliance jurídico para cada colaborador e discutir a prevenção de condutas incorretas em toda a empresa; e,
  • Criação de uma linha de apoio à ética empresarial e ao compliance jurídico, ou seja, um sistema interno de denúncias.

As empresas devem compreender que a governação societária, responsabilidade social e compliance afetam toda a empresa, incluindo o conselho de administração, a direção, os acionistas, os colaboradores e outras partes interessadas. Está a tornar-se um exercício quotidiano para o qual devem estar totalmente preparadas.

É tempo de as empresas repensarem o compliance jurídico para além da tradicional gestão de risco e vê-lo como um activo empresarial estratégico. Responsabilidade, transparência e diálogo podem ajudar a tornar uma empresa mais fiável e a impulsionar os padrões de outras empresas ao mesmo nível. Todos ganham, mas não já necessariamente no sentido tradicional do lucro!

Este artigo foi publicado na Revista Advocatus no dia 8 de Março de 2022, poderá lê-lo através deste link

 

Depois de quase dois anos de constante publicação de novas leis com impactos laborais, o novo ano começou com mais uma alteração à legislação laboral.

 Motivada pela pandemia COVID-19, a mais recente alteração ao Código do Trabalho entrou em vigor no passado dia 1 de janeiro de 2022, modificando significativamente o regime de teletrabalho.

No âmbito das alterações, passou a ser possível a definir, por Regulamento Interno, as atividades e as condições em que a adoção do teletrabalho pode ser admissível, bem como, no caso de os equipamentos e sistemas utilizados no teletrabalho serem fornecidos pelo empregador, as respetivas condições de uso para além das necessidades do serviço. Este Regulamento, que decorre do poder regulamentar previsto no artigo 99.º do Código do Trabalho, deve ser, publicitado com observância do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, aprovado pelo Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016.

A regulamentação introduzida pela nova lei é “escassa” o que, naturalmente, dificulta a sua aplicação e conhecimento, quer pelas entidades empregadoras, quer pelos trabalhadores. Por isso, apesar de não ser obrigatória a elaboração deste Regulamento, todas as empresas, independentemente da sua dimensão, devem adotá-lo, por uma questão de transparência e uniformização de procedimentos.

O Regulamento em causa é um instrumento “complementar” às novas disposições normativas.

É importante para os trabalhadores saberem quais as condições em que é possível beneficiarem do regime de teletrabalho, através de regras concisas e claras, para que não surjam dúvidas. Estas regras devem ser cumpridas pela entidade empregadora e trabalhadores, e constituem um conjunto de medidas que contribuem para o sucesso da relação laboral, pois é a partir delas que todos sabem até onde podem ir e como devem agir.

O Regulamento permite que os trabalhadores tenham conhecimento de quais os seus direitos e deveres em matéria de teletrabalho, diminuindo os potenciais conflitos na empresa.

O regulamento interno de teletrabalho permite também que as regras sejam aplicadas de forma igual para todos os teletrabalhadores, não criando sentimentos de injustiça entre os mesmos.

Para que seja atingido o objetivo da sua elaboração, o regulamento deve conter, entre outros elementos, os seguintes: (i)  regime de teletrabalho; (ii) duração do acordo de teletrabalho; (iii) procedimento para denúncia e cessação do acordo de teletrabalho; (iv) procedimento para aplicação do regime (v.g. forma de requerer a sua aplicação; critérios aplicáveis pela entidade empregadora para decidir relativamente à sua aplicação, situações de recusa pela entidade empregadora) (v) forma e conteúdo do acordo; (vi) direitos e deveres das partes;  (vii) mecanismos de controlo da assiduidade do teletrabalhador; (viii) procedimento e formalidades a cumprir para comprovação de despesas adicionais em que o trabalhador incorra com o novo regime; (ix) regras de utilização dos instrumentos de trabalho e (x) medidas de prevenção de isolamento do trabalhador (v.g periodicidade de realização de reuniões presenciais na empresa; indicação da pessoa com quem o teletrabalhador deve ter contacto na empresa com determinada regularidade).

Em suma: o Regulamento Interno mencionado nas mais recentes alterações ao Código do Trabalho permite regulamentar o regime de teletrabalho nalguns dos seus aspetos essenciais, contribuindo para a aplicação de regras claras e uniformes entre todos, o que é especialmente relevante numa situação de contacto “à distância” entre empregador e trabalhador.

Este artigo foi publicado no Jornal Dinheiro Vivo, no dia 19-02-2022. Poderá encontrar essa versão aqui

Em 1996, Nick Szabo criou o termo smart contract num artigo revolucionário sobre a introdução da tecnologia digital no domínio dos contratos. Nesse artigo, Nick Szabo afirmou: "[n]ovas instituições, e novas formas de formalizar as relações que compõem estas instituições, são agora possíveis graças à revolução digital. Chamo a estes novos contratos "inteligentes" porque são muito mais funcionais do que os seus antepassados inanimados inscritos em papel. Não está implícito o uso de inteligência artificial. Um contrato inteligente é um conjunto de promessas, definidas digitalmente, incluindo protocolos dentro dos quais as partes executam estas promessas"[1].

Após 1996, o surgimento da tecnologia da blockchain permitiu a criação de novos sistemas de registo descentralizado de direitos, contratos e outros actos e factos jurídicos.

Existem várias classificações de smart contracts e smart legal contracts, consoante sejam total ou parcialmente automatizados e registados num sistema de blockchain ou não[2]. Neste artigo usamos a expressão smart contract, que se pode traduzir como “contrato inteligente”, na sua formulação mais simples e abrangente, ou seja, como as instruções informáticas que representam a intenção das partes em criar uma obrigação, mandar fazer um pagamento, adquirir um bem ou serviço ou desencadear um outro evento que tenha uma consequência jurídica.  

Os primeiros exemplos de contratos inteligentes foram as máquinas de venda automática. Ao inserir uma moeda numa máquina de venda automática, a pessoa que inseriu a moeda compra um snack ou uma bebida ao proprietário ou ao operador da máquina. As máquinas de venda de bilhetes são também antigos contratos automáticos, ou seja, auto-executáveis, através dos quais uma pessoa adquire o direito a usar um serviço de transporte, entrar num cinema, etc.

Mais recentemente, os contratos online com a Amazon e outros distribuidores online são também formas de contratos de compra automatizados que se enquadram no conceito de contrato inteligente porque permitem aos clientes adquirir bens e serviços ao dar instruções automatizadas através de uma máquina.

Em qualquer dos exemplos acima, existe um contrato com "linguagem natural" subjacente, ou seja, numa linguagem usada por pessoas e não instruções codificadas dadas a um computador. Muitas vezes, quando celebramos um contrato online, somos obrigados a aceitar um contrato padrão, por vezes numa língua estrangeira que podemos não compreender totalmente. Isto levanta questões sobre a validade dessas cláusulas face às leis de proteção dos consumidores. Não nos preocuparemos com estas implicações neste artigo. Neste artigo procuraremos estabelecer de que forma os "contratos codificados informaticamente", na sua definição mais ampla, podem ser usados na generalidade dos contratos.

As smart clauses ou "cláusulas inteligentes", se assim as quisermos designar, são instruções informáticas que usam linguagem informática e que podem, como vimos acima, traduzir-se no cumprimento de uma obrigação ou desencadear a verificação das condições contratuais. As obrigações codificadas informaticamente podem ser auto-executáveis na medida em que não necessitam de intervenção humana. As disposições contratuais codificadas informaticamente são agora usadas em todos os contratos online porque cada serviço ou produto adquirido online desencadeia consequências jurídicas, tais como a obrigação de pagar e a obrigação de fornecer um serviço ou bem.

A entrada em vigor e execução de contratos online têm ocorrido sem perturbações para os sistemas jurídicos. As leis de muitos países aceitam a validade dos contratos online. Os litígios que emergem desses contratos têm sido resolvidos de uma forma razoavelmente satisfatória porque os fornecedores que valorizam os seus clientes estão dispostos a resolver as reclamações de forma amigável e os clientes insatisfeitos com os fornecedores deixam pura e simplesmente de comprar a esses fornecedores. A lei da oferta e da procura que rege os mercados desenvolvidos e justos acaba por retirar a pressão do sistema, embora algumas cláusulas contratuais impostas aos consumidores e a conduta de alguns fornecedores online sejam por vezes ilegais e abusivas.

O entusiasmo em relação aos contratos inteligentes vai muito para além dos simples contratos entre empresas (ditos contratos B2B) e consumidores particulares (contratos B2C), onde a informação codificada informaticamente se traduz em ordens de serviço e de compra e/ou instruções de pagamento.

As cláusulas inteligentes codificadas em linguagem informática auto-executável podem incluir termos e fórmulas de pagamento complexas, definir condições suspensivas ou resolutivas e situações de incumprimento e ainda criar garantias reais ou pessoais. As cláusulas inteligentes podem ser usadas em todos os tipos de contratos, incluindo contratos complexos entre empresas, nomeadamente contratos de financiamento, compra e venda de ações, emissão, aquisição e alienação de valores mobiliários e outros títulos, ofertas em bolsas de valores, derivados financeiros, mercados de futuros, acordos de reestruturação, contratos de empreitada, etc.

Além disso, alguns aspetos de natureza técnica podem ser ligados a cláusulas inteligentes de modo a atribuir efeitos jurídicos a parâmetros técnicos definidos no contrato, nomeadamente em contratos de gestão e manutenção de redes de telecomunicações, redes elétricas, produção de energia, requisitos de software, etc. Atualmente, muitas dessas questões técnicas são deixadas à margem do contrato e colocadas em termos contratuais propositadamente vagos, que se traduzem no uso de expressões como "melhores esforços" e na submissão de decisões contratuais a juízos de razoabilidade. Em outros casos, quando esses assuntos se tornam irresolúveis pelas pessoas que gerem o dia-a-dia do contrato, as partes recorrem a mecanismos de mediação de conflitos ou mesmo a arbitragem ou aos tribunais.

Para poder desenvolver com sucesso contratos inteligentes, existem cinco regras práticas básicas que visam assegurar que as cláusulas inteligentes não vêm levantar questões mais difíceis do que aquelas que surgem nos contratos tradicionais.

Primeiro, as cláusulas inteligentes devem ser traduzidas em linguagem natural. Isto significa que qualquer cláusula inteligente deve ter uma cláusula equivalente em linguagem natural. A cláusula de linguagem natural deve ser tão objetiva e precisa quanto a cláusula inteligente e não incluir conceitos abertos que não possam ser traduzidos para a cláusula codificada informaticamente.

A necessidade desta regra não resulta de qualquer imposição legal, serve antes uma necessidade prática: as cláusulas devem ser compreensíveis por pessoas sem um conhecimento muito profundo da lei e dos aspetos técnicos do contrato. Os juízes e os decisores empresariais devem ser capazes de compreender as obrigações essenciais do contrato.

Se as cláusulas principais do contrato, que afetam o cumprimento do contrato, dependerem de uma cláusula codificada (que careça de uma equivalente em linguagem natural), será difícil compreender porque é que as partes escolheram essa solução em vez de outra. Obviamente, há contratos que tratam de assuntos técnicos complexos e difíceis de compreender, seja na sua formulação jurídica ou na sua envolvente comercial e técnica. Contudo, na maioria dos casos, os principais termos comerciais e técnicos são formulados em "linguagem natural" nos contratos e são compreendidos pelas pessoas presentes à mesa da negociação, mesmo quando incluem anexos técnicos complexos.

Em segundo lugar, o conteúdo das cláusulas inteligentes deve ser aberto e passível de auditoria. Isto significa que a aceitação do código deve ser feita por quadros técnicos ou assessores contratados por cada uma das partes. Este requisito visa garantir a igualdade das partes. As cláusulas inteligentes devem ser compreendidas e controladas por ambas as partes.

Não deve haver uma parte a controlar o código informático e as consequências da instrução gerada por esse código. Nos atuais contratos em linguagem natural, onde os aspetos técnicos, jurídicos e comerciais podem ser geralmente compreendidos pelas partes, cada parte deve ser assessorada pelos seus próprios advogados internos ou externos. Nos contratos em linguagem codificada, uma assimetria no conhecimento pode ser mais prejudicial do que não ter advogado. É necessário ter uma assessoria técnica especializada e procedimentos de verificação das cláusulas codificadas.

Em terceiro lugar, as cláusulas inteligentes devem ser protegidas. A integridade é um elemento-chave de qualquer contrato. Nos contratos em linguagem natural, a redação das cláusulas não pode ser alterada por uma das partes. Isto é assegurado na redação do contrato e através de outros requisitos formais impostos por lei ou acordados pelas partes. A adulteração das palavras de um contrato significa falsificar o conteúdo do contrato. As mesmas regras aplicam-se às cláusulas inteligentes e aos contratos inteligentes.

No entanto, como as cláusulas inteligentes são geralmente auto-executáveis, as consequências de uma possível adulteração do código do software contratual são mais diretas e podem originar um efeito “bola de neve” impossível de parar. Por esta razão, a integridade das cláusulas inteligentes deve ser assegurada.

Os sistemas de blockchain são uma forma adequada de garantir a integridade dos contratos porque os blocos de um blockchain não podem ser alterados sem o acordo dos nós do sistema (todos ou um número significativo de participantes no sistema, dependendo do tipo de algoritmo de consenso que é usado). Isto assegura a integridade do contrato de uma forma tão eficiente, se não mais eficiente, que os atuais serviços de registo de propriedade e registos civis e comerciais administrados pelos Estados ou outros sistemas centralizados, como é o caso das bolsas de valores. Contudo, a blockchain não é a única forma de garantir a integridade de um contrato inteligente. As partes podem nomear uma entidade independente para guardar o código ou mesmo controlar a sua aplicação.

Quatro, as cláusulas inteligentes que desencadeiam consequências jurídicas que exijam a intervenção humana não devem ser deixadas ao critério de uma das partes. Embora muitas cláusulas inteligentes estabeleçam mecanismos de auto-execução controlados por máquinas, há casos em que a intervenção humana é necessária para preencher lacunas ou interpretar os dados. Esta decisão não deve ser tomada por uma das partes.

Por exemplo, se o contrato estipula que uma das partes deve fazer um pagamento à outra se a temperatura atingir 45 graus e dois registos informáticos oficiais indicarem temperaturas diferentes, enquanto um assinala 44,9 graus o outro 45 graus, terá de ser tomada uma decisão sobre se a condição de pagamento foi ou não cumprida.

Este exemplo sustenta o facto de pequenas discrepâncias nos registos digitais ou a inexistência de um registo digital independente poderem exigir a intervenção humana para verificar ou certificar a verificação de condições contratuais auto-executáveis. Nesses casos, a pessoa responsável por essa decisão deve ser independente das partes.

Na Ethereum, as partes contratantes podem nomear pessoas, denominados “oráculos”, para tomar decisões que irão desencadear ou não a verificação de uma condição do contrato. Esta solução é adequada para contratos inteligentes registados na Ehtereum. Para contratos inteligentes fora de uma blockchain, as partes podem contratar entidades independentes e atribuir-lhes a função de preencher os dados em falta ou resolver inconsistências em registos digitais ou registos oficiais.

Cinco, os contratos com cláusulas inteligentes devem incluir mecanismos de resolução de litígios eficazes e rápidos. Como as cláusulas inteligentes podem aumentar o nível de complexidade do contrato e os tribunais não estão ainda preparados para lidar com estes problemas, os contratos inteligentes deveriam conter mecanismos de resolução de litígios.

Nos contratos online B2C existentes, muito poucas disputas são resolvidas nos tribunais porque o seu valor é baixo. Muitas vezes, o consumidor abstém-se simplesmente de comprar ao fornecedor que não cumpriu a sua obrigação de entrega. Esta não é a forma ideal de resolver os litígios que hoje em dia ficam por resolver, pelo que deveria ser criado um sistema transnacional de resolução dos litígios mais eficaz.

Em contratos mais valiosos, os litígios podem ser levados aos tribunais, mas o tempo de resolução pode ser demasiado longo para reparar os danos sofridos. As partes confiarão mais nos contratos inteligentes que contiverem mecanismos de resolução seguros e expeditos, como sejam os mecanismos de mediação e arbitragem que permitam assumir o controlo do código, parar ou corrigir o seu uso indevido, e reparar ou corrigir o código que se revelou não alcançar os objetivos pretendidos pelas partes.

Os contratos inteligentes são uma das maiores invenções da viragem do século. Melhoram a eficiência, aumentam a velocidade e a qualidade na entrega de bens e serviços.

Incluir cláusulas inteligentes em contratos de linguagem natural e criar sistemas adequados de resolução de litígios apoiados por mecanismos robustos de controlo e verificação serão os primeiros passos para criar contratos inteligentes.

A ideia de que robôs e máquinas poderão um dia substituir os seres humanos fascina e assusta muitas pessoas. A literatura, o cinema e os desenhos animados dão-nos imagens de robôs que assumem o controlo da humanidade num futuro não muito distante. Até ao início do século XXI, o tema da inteligência artificial estava confinado ao mundo académico, à ficção científica e a algumas indústrias. No final do século passado, a Google trouxe a inteligência artificial para vida de todos nós de uma forma palpável.

A inteligência artificial está em todo o lado, nas redes sociais, na publicidade, na investigação científica, no desenvolvimento industrial, entre tantas outras coisas. Muitos programas informáticos são alimentados por motores de inteligência artificial. Os telemóveis, computadores e outros aparelhos eletrónicos incorporam sistemas de inteligência artificial.

Mas a revolução da inteligência artificial parece não ter chegado ao mundo do Direito. Obviamente, muitos advogados e escritórios de advogados usam sistemas de inteligência artificial, alguns deles concebidos especificamente para advogados. Mas a inteligência artificial não transformou a advocacia da mesma forma que transformou outras atividades.

As mudanças provocadas pelas tecnologias de inteligência artificial, tornam necessário discutir o papel da inteligência artificial no futuro da advocacia e do Direito.

Comecemos por definir “inteligência artificial”. Segundo a Enciclopédia Britânica “a inteligência artificial (IA) é a capacidade de um computador digital ou robô controlado por computador para executar tarefas normalmente associadas a seres inteligentes”. “Inteligência artificial” designa a capacidade de uma máquina simular a lógica de um algoritmo. Um algoritmo é uma sequência finita de instruções determinadas que são utilizadas para executar uma operação. Os algoritmos são utilizados como especificações para efetuar cálculos, processar dados, elaborar raciocínios ou tomar decisões de forma automatizada e outras tarefas. A inteligência artificial dá às máquinas a capacidade de perceber um determinado ambiente e de tomar medidas para alcançar os objetivos estabelecidos por um programa informático.

Para alguns advogados, é impossível que a inteligência artificial seja aplicável ao mundo do Direito, pelo menos no que respeita aos assuntos jurídicos mais complexos, porque a atividade jurídica, independentemente da sua forma, trabalha com “palavras”. A retórica e a gramática sempre estiveram no cerne de todas as profissões jurídicas. As palavras podem ser ambíguas, ter múltiplos significados dependendo do contexto e da sua ordem na frase. A interpretação das palavras parece ser uma atividade puramente humana.

Contudo, devido à sua natureza “prescritiva”, o Direito e a lei dependem de simples processos de raciocínio dedutivo, o que torna o Direito numa atividade apta para “codificação” através de inteligência artificial. Em termos mais simples, o Direito não é imune à inteligência artificial; pelo contrário, o Direito é um campo ideal para a inteligência artificial. Para que isso aconteça, é preciso “codificar o pensamento jurídico”.

Para “codificar o pensamento jurídico” é necessário criar os processos que permitirão às máquinas interpretar leis, contratos e decisões judiciais, o que parece estar ainda longe porque as “palavras”, as “decisões judiciais”, as questões jurídicas, em geral, assumem diversos significados, muitas vezes ambíguos e abertos à manipulação. A diferença entre o “certo” e o “errado” pode não ser clara, nem sempre se reduz a “sim” ou “não”, branco e preto, não é uma série de 0s e 1s.

No entanto, o pensamento jurídico pode e será “codificado” num futuro não muito distante.

Os sistemas de revisão de documentos utilizam já tecnologias de aprendizagem automática e tecnologia de reconhecimento de padrões para identificar conceitos chave de contratos, classificar cláusulas, padrões nas decisões judiciais, assinalar discrepâncias e similitudes na aplicação e interpretação de leis e contratos, etc.

No futuro, a inteligência artificial permitirá aos juízes identificar os elementos-chave das suas decisões e oferecer-lhes um roteiro para o processo de tomada de decisão. Tomemos o exemplo de uma simples decisão judicial sobre a competência do tribunal sobre determinada matéria que lhe é apresentada. Todos os países do mundo têm regras claramente definidas para determinar a jurisdição dos seus tribunais, regras essas que podem ser codificadas em linguagem informática, ou seja, num algoritmo.

Os futuros algoritmos jurídicos ajudarão juízes e advogados a determinar se um assunto se enquadra numa ou noutra categoria jurídica e como a lei será aplicada em casos específicos. Tal estará apenas a um passo do poder de determinar a aplicação de normas jurídicas. A integração de uma conduta na previsão de uma norma é uma tarefa que no futuro será realizada por sistemas informáticos, com um grau crescente de complexidade, eliminando falsos positivos, aplicando regras de conflitos de direitos, identificando a existência de causas de justificação ou de exculpação, etc.

Muitos argumentarão que o Direito tem características específicas, nomeadamente a interferência de sentimentos e convicções, o que torna impossível a sua redução a algoritmos.

É errado analisar a inteligência artificial através desse prisma. Há duas áreas em que a inteligência artificial terá dificuldades em dominar: primeiro, na camada exterior das leis atuais, onde prevalecem elementos culturais, sentimentais e políticos que encobrem o núcleo das leis. Com o tempo, estes elementos serão depurados por algoritmos mais poderosos. A força da racionalidade desses algoritmos levará à descoberta de regras mais simples e, portanto, mais justas, livres de muitas das incoerências e conflitos que hoje se verificam.

A inteligência artificial criará formas mais rápidas e eficientes de desempenhar todas as tarefas jurídicas, como é o caso da gestão de conhecimento, análise de documentos, redação de contratos, análise de contenciosos, preparação de peças processuais.

Todas as profissões jurídicas beneficiarão com a inteligência artificial. Os legisladores farão melhores leis; os juízes darão sentenças mais justas; os advogados poderão aperfeiçoar as suas peças processuais com maior eficiência e qualidade. Muitos conflitos serão resolvidos antes de chegarem aos tribunais porque se a probabilidade de sucesso for baixa, essa parte procurará chegar a acordo ou desistirá de ir a tribunal.

A inteligência artificial não substituirá os advogados, mas mudará radicalmente a forma como os advogados prestam serviços.

No fim de contas, o pensamento jurídico deverá permanecer na esfera das atividades humanas porque dentro do núcleo de todas as normas jurídicas vivem valores e os valores não são “computáveis”. Os valores não podem ser reduzidos às formulações matemáticas de algoritmos. A criação e a aplicação da lei devem, no final, ser feitas por seres humanos e para os seres humanos.

O Direito é uma ciência e uma técnica, mas é também uma arte e, portanto, não pode ser reduzido a algoritmos. Este é o limite da aplicação da inteligência artificial ao Direito e o limite para qualquer tecnologia alimentada por inteligência artificial.

Este artigo foi publicado na revista física da Advocatus de Novembro/ Dezembro de 2021. 

No contexto vivido nos últimos meses, no qual o teletrabalho se tornou obrigatório durante mais de 360 dias para a grande maioria dos trabalhadores, surgiu a questão de saber se o pagamento do subsídio de refeição continuaria a ser devido, visto que os trabalhadores passariam a desempenhar as suas funções fora do local de trabalho habitual para passarem a desempenhar no seu domicílio.

Destacaram-se duas opiniões contrapostas: por um lado, uma parte da doutrina e da jurisprudência entendia que o subsídio de alimentação apenas seria devido para fazer face a despesas que o trabalhador tem fora do seu domicílio, e, portanto, não se justificava o pagamento; por outro lado, outra parte da doutrina e da jurisprudência entendia que mesmo prestando a atividade em teletrabalho, as despesas com refeições se mantinham, e consequentemente, deveria manter-se o respetivo pagamento.

A Direção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho e a Autoridade para as Condições de Trabalho, no contexto da obrigatoriedade do teletrabalho, pronunciaram-se no sentido do pagamento do subsídio de refeição. Apenas, em casos excecionais, designadamente disposição contratual ou por via de instrumento de regulamentação coletiva que dispensassem a não obrigatoriedade de tal pagamento, era possível a sua não aplicação aos teletrabalhadores.

Nos dias de hoje o teletrabalho, salvo situações excecionadas determinadas na lei, deixou de ser, numa primeira fase, obrigatório e, mais recentemente, recomendado.

Pergunta-se: as empresas podem, por acordo, estabelecer o não pagamento do subsídio de refeição aos trabalhadores que prestam a sua atividade em teletrabalho?

Pensemos no seguinte: o subsídio de refeição não está abrangido pelas normas constitucionais que “protegem” o direito à retribuição dos trabalhadores, o que nos leva a crer que não é devido em todos as situações. Mas, outros argumentos podem ser apontados no mesmo sentido.

A razão pela qual consideramos ser possível a elaboração de um acordo no qual não se incluam o pagamento do subsídio de refeição é simples: o teletrabalho carateriza-se pela prestação, na sua maioria, fora da empresa, através de meios tecnológicos, motivo pelo que o trabalhador presta a sua refeição como se num dia de descanso se encontrasse. Consequentemente, o teletrabalhador não incorre em despesas adicionais, comparativamente com a situação que aconteceria se estivesse no local de trabalho.

Julgamos que de forma diametralmente oposta ao que se verificou nos meses anteriores, a obrigatoriedade de pagamento deixou de ser uma realidade. O teletrabalho aplica-se apenas perante a vontade das partes, regendo-se pelas normas do Código do Trabalho, pelo que na falta de acordo entre a empresa e o trabalhador o regime não pode ser imposto pela entidade empregadora.

Ainda assim, admitimos que, existindo nos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho aplicáveis disposições que determinem a obrigatoriedade de pagamento deste subsídio aos trabalhadores nas situações de teletrabalho, este será sempre devido e não pode ser afastado, sequer, por contrato de em sentido contrário. O conteúdo do artigo 476.º do Código do Trabalho não deixa margem para qualquer dúvida interpretativa: apenas seria possível a consagração de uma disposição no contrato de trabalho mais favorável ao trabalhador; acontecendo precisamente o contrário, pelo facto de ser “eliminado” um direito consagrado no instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, é notória uma violação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador.

Ainda assim, perante determinadas exceções relativamente às quais a lei continua a determina a obrigatoriedade de teletrabalho, uma vez reunidos todos os pressupostos legais para a sua aplicação, o pagamento do subsídio de refeição continua a ser devido, não havendo qualquer possibilidade de disposição convencional em contrário.

Este artigo foi publicado no Dinheiro Vivo no dia 23.10.2021. Pode consultá-lo aqui

 

Poucos agentes do setor económico nacional terão sido tão afetados pela pandemia da Covid-19 como os lojistas a operar em centros comerciais. Talvez por isso, ainda hoje, correm nos tribunais portugueses centenas de litígios que opõem estes lojistas aos proprietários e entidades gestoras dos centros comerciais.

A batalha jurídica começou em meados do ano de 2020, com a discussão em torno do início da aplicação da medida de defesa dos lojistas, prevista no artigo 168.º-A, n.º 5 da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, e da inconstitucionalidade da respetiva norma, que isentava os lojistas de centros comerciais do pagamento das rendas fixas devidas entre março e dezembro desse ano.

Já em 2021, quando essa medida deixou de se aplicar, mas, mais do que nunca, os efeitos da pandemia, as medidas restritivas e as perdas económicas dos lojistas se fizeram sentir, a batalha jurídica prosseguiu em torno do direito a obter uma diminuição das rendas a pagar aos centros comerciais.

Aqui, mais uma vez, quando acordos não foram alcançados, os argumentos e as teses jurídicas multiplicaram-se, envolvendo o preenchimento de conceitos indeterminados, a aplicação de regimes legais pouco utilizados nas últimas décadas – como os da impossibilidade em caso de eventos de força maior e da alteração das circunstâncias – e prova quase diabólica.

Enquanto em Portugal os Tribunais ainda não têm uma posição clara quanto a este aspeto, em Espanha começam a surgir sinais de que o “rei vai nu”, apesar de no ordenamento jurídico espanhol não existir sequer um regime legal semelhante ao da alteração das circunstâncias.

O caso espanhol mais relevante opôs um arrendatário comercial ao seu senhorio, num processo que decorreu no Tribunal de Primeira Instância n.º 81 de Madrid.

Numa decisão de 25 de setembro, o Tribunal considerou ser evidente que a crise sanitária e pandémica consubstancia uma alteração das circunstâncias, que as rendas definidas pelas partes tinham sido acordadas num contexto muito diferente daquele que se viveu durante essa crise, que o seu surgimento foi absolutamente imprevisível e que, em consequência, houve um grave desequilíbrio entre o esforço económico que se exigia a cada uma das partes, com prejuízo muito superior para o arrendatário.

Em conclusão, o Tribunal de Madrid decidiu pela suspensão da obrigação de pagamento da renda até à reabertura do estabelecimento comercial e pela redução da renda em 50% a partir desse momento.

O Tribunal de Madrid colocou a tónica no facto de os efeitos da pandemia se terem feito sentir de modo muito diferente entre as partes, tendo uma delas – o arrendatário – sido lesado numa escala desproporcionalmente maior e, por isso, as condições inicialmente contratualizadas terem deixado de fazer sentido.

O mesmo acontece com os lojistas em Portugal e, muito em particular, com aqueles que estão estabelecidos em centros comerciais. É por demais evidente que, proporcionalmente, os lojistas foram a parte mais sacrificada pela pandemia do Covid-
19 na relação contratual com os centros comerciais: não beneficiaram de medidas de apoio na época em que as medidas sanitárias foram mais restritivas e nunca deixaram de ter de pagar uma componente remuneratória, apesar de, durante vários meses, terem sido impossibilitados de operar.

Por agora, estamos ainda absortos na teoria – em discutir a letra da lei, a jurisprudência anterior mais ou menos certeira e as várias teses doutrinárias na matéria –, em vez de colocarmos o foco nos factos e na assimetria dos efeitos provocados pela pandemia nas esferas jurídicas das partes.

É desejável que os Tribunais Portugueses venham rapidamente a dizer que “o rei vai nu”, apontando ser óbvio que a pandemia prejudicou a maioria dos agentes do mercado do comércio e retalho, mas, acima de tudo e desproporcionalmente, prejudicou os lojistas em centros comerciais, decidindo pela justa divisão desse sacrifício, reequilibrando os contratos com os gestores dos centros comerciais e quebrando este estado de “transe jurídico” generalizado que se tem vivido no último ano e meio.