Chantagem, extorsão, corrupção, batalhas judiciais e futebol: a história ideal para a comunicação social. Mas será que os fins justificam os meios?

À conversa com António de Macedo Vitorino

O «Football leaks» – a maior fuga de dados até hoje  no mundo do futebol, que revelou alguns dos segredos mais bem guardados do desporto – provocou uma tempestade nos media portugueses. A luta de um homem só pela transparência no mundo do futebol e a descoberta de um sem-fim de actos ilícitos ou de legalidade duvidosa cometidos por alguns dos maiores clubes da europa e por jogadores de «top» mundial, está a ser feita à custa do direito de todos à nossa privacidade.

Embora Rui Pinto tenha aberto uma verdadeira caixa de Pandora de condutas criminosas, que levou a inúmeras investigações de autoridades em nove países da União Europeia, será isso suficiente para esquecer o pequeno detalhe de como essa informação foi obtida? Na opinião de António de Macedo Vitorino, a resposta é «não».

Denunciante (whistleblower) ou pirata informático (hacker)?

O advogado de Rui Pinto, William Bourdon, argumenta que Rui Pinto deve ser protegido em nome de princípios fundamentais, como resulta nomeadamente da legislação europeia de proteção dos denunciantes. O paradoxo, no entanto, é que outros princípios jurídicos fundamentais foram violados para obter a informação incriminatória.

António Vitorino acredita que tudo depende de onde traçamos a linha entre o que é denúncia e o que é pirataria: “um funda-se na lei, o outro é o seu oposto”.

Em termos muito simples, a denúncia (whistleblowing) é uma revelação feita por alguém que se depara com informação sobre delitos de índole criminal, tais como actos de corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico de seres humanos, etc., e apresenta às autoridades informações que desencadeiam investigações criminais; os denunciantes agem no interesse público e devem ser protegidos pela lei, como decorre da proposta de diretiva europeia sobre denunciantes.

A pirataria (hacking), pelo contrário, tem na base uma "intenção". António Vitorino diz que “o pirata é alguém que vai para além da denúncia e monta uma investigação privada própria, invadindo os computadores em busca da informação incriminatória. Na proposta de diretiva europeia, o “denunciante” é definido como “uma pessoa singular que comunica ou divulga informações sobre infrações legalmente adquiridas no contexto das suas atividades relacionadas com o trabalho”. Dificilmente será este o caso de Rui Pinto”.

A violação de princípios éticos

À medida que os criminosos vão evoluindo, também as armas de combate ao crime têm de evoluir. Mas será que, como sociedade - questiona António Vitorino - podemos aceitar a indefinição dos limites entre a obtenção legal e ilegal de informação sacrificando os nossos valores constitucionais fundamentais?

“A polícia não pode entrar nas nossas casas ou num computador sem ter um mandado de busca fundado numa séria suspeita da existência de condutas criminosas. O valor da liberdade é primordial na nossa sociedade e a privacidade de cada um de nós tem de ser protegida”, defende António Vitorino. "Se o nosso sistema legal e os poderes das nossas polícias não permitem proteger-nos contra os criminosos, alguma coisa tem de ser feita, mas não à custa da nossa privacidade."

No caso do «Football Leaks», a informação foi obtida através da invasão dos sistemas informáticos de vários clubes de futebol como o Sporting, o Futebol Clube do Porto, o Real Madrid e o Paris Saint Germain e depois entregue aos meios de comunicação social. Terá isso sido feito em prol do interesse público? António Vitorino entende que essas informações foram obtidas em violação de princípios fundamentais.

E que dizer da obtenção ilícita de mensagens de e-mail pessoais e de comunicações entre advogados e clientes sujeitos a sigilo profissional? Ou da entrega de informações confidenciais de um clube a um clube rival? Será que ultrapassar estes limites para obter as informações suscetíveis de revelar actos de corrupção ao mais alto nível do desporto deve ser considerado aceitável ou ser entendido como um ataque à privacidade?

A linha que separa a obtenção lícita ou ilícita de informação desempenha um papel crucial na determinação da legalidade de uma investigação posterior, acrescenta. "A violação de forma ilícita e intencional da privacidade não pode ser considerada uma prática aceitável."

Tomando os media como exemplo. “Os jornalistas têm o direito e o dever de proteger as suas fontes. Mas não devem também ter em conta a forma como as suas fontes obtiveram essas informações?”

Se os actos criminosos só puderem ser descobertos através de meios ilegais, então haverá algo de fundamentalmente errado na nossa sociedade.

Em última análise, defende António Vitorino, “não podemos aceitar que permitir o acesso ilimitado e sem controlo à nossa privacidade seja a única forma de descobrir os actos criminosos”.

"Como cidadãos, é nosso dever lutar contra todos aqueles que defendam que só podemos combater o crime se abdicarmos da nossa privacidade e da nossa liberdade."

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