Como o governo «quase» levou a bom porto o Novo Banco

À conversa com António de Macedo Vitorino

Ao falhar na solução de uma parte essencial do puzzle, terá o sucesso da resolução do Novo Banco ficado comprometido pela incapacidade dos decisores em cortarem de vez com a herança BES?

A injeção de 4,9 mil milhões de euros, em 2014, pelo Fundo de Resolução no Novo Banco, herdeiro do Banco Espírito Santo (BES), resultou da cisão de um dos maiores grupos bancários portugueses num “banco bom" – o Novo Banco – e num "banco mau", onde era suposto terem ficado os ativos tóxicos.

Esta divisão está, no entanto, a revelar-se mais uma separação de facto do que um divórcio definitivo, e o Novo Banco está agora à bica de receber uma nova injeção de capital após registar perdas superiores a 1,4 mil milhões de euros.

A raiz do problema, segundo António de Macedo Vitorino, não decorre da separação do chamado “banco bom” do “banco mau”, mas das decisões estratégicas tomadas pelos decisores políticos que deixaram brechas no contrato de venda do Novo Banco, verdadeiras borlas para o setor privado que provocaram danos colaterais incalculáveis.

“O que tem sido realmente 'mau' na situação do BES é a transferência inaceitável e irracional de dinheiro dos contribuintes para o setor privado sem qualquer consideração pelo interesse público”, explica. “Somados aos prejuízos causados ​​aos lesados do BES e aos contribuintes, temos ainda os custos ocultos para o sistema judicial, o qual enfrenta centenas de processos judiciais, e os danos provocados à reputação de Portugal junto de investidores internacionais”.

A resolução

Embora não haja dúvidas de que foram cometidos erros graves na resolução do BES e na criação do Novo Banco, António Vitorino entende que a medida de resolução tomada pelo Banco de Portugal custará menos aos contribuintes no longo prazo do que se o BES tivesse sido nacionalizado ou se o Estado tivesse dado ao BES os fundos necessários para a sua recuperação.

No cômputo geral, embora não isenta falhas, a resolução valeu a pena. "Quando se fazem leis e se tomam decisões no meio de uma crise, é difícil encontrar uma solução ideal, porque as questões ganham uma dimensão política e a discussão se baseia mais em ideologias do que na realidade", afirma. “O governo de então estava sob pressão para não afugentar os eleitores, as eleições estavam à porta, etc., Mas, ainda que tal não fosse o caso, não há dúvida de que o Estado e o contribuinte acabariam sempre por ter de arcar com alguns dos danos e prejuízos decorrentes da fraude perpetrada no processo BES / GES”.

O facto de o Novo Banco estar vivo já é uma vitória em si mesmo, acrescenta António de Macedo Vitorino. Poderíamos ter perdido muito mais. “Mas o verdadeiro problema é sabermos que poderíamos ter perdido menos se o governo e o Banco de Portugal tivessem agido de forma rápida e competente, assegurando que o Novo Banco ficasse liberto da herança BES. Sabíamos que os empréstimos do BES ao Grupo Espirito Santo não iriam ser recuperados; mas havia a expectativa de que esses empréstimos ‘maus’ ou ‘tóxicos’ ficariam no BES. Acreditámos que o Novo Banco começaria mesmo do ‘zero’”.

A «Irresolução»

O verdadeiro problema está na incapacidade do governo e dos reguladores para gerirem estes processos e tomar decisões com o mesmo grau de profissionalismo que as empresas privadas, afirma António Vitorino. “Eles andam de um lado para o outro sem tomar decisões, como se precisassem de alguém para decidir por eles. Se somarmos a isto as agendas políticas, os calendários e as condições económicas do momento, temos uma ineficiência em toda a linha que mostra o como a política e a realidade chocam uma com a outra“.

É claro que toda a gente erra, acrescenta, só que neste caso são os contribuintes a ter de pagar uma fatura muito mais alta do que seria necessário. “Se as coisas tivessem sido bem feitas, se o Governo e o Banco de Portugal não tivessem arrastado a situação até ao limite e tivessem tratado da resolução em alguns meses, garantindo que o contrato de venda do Novo Banco fosse ‘blindado’ e protegesse o sistema e os vários intervenientes e partes interessadas, não estaríamos na situação em que estamos agora.”

O Estado tem um poder extraordinário quando negoceia com entidades privadas, explica António Vitorino, e tem o hábito de dizer ‘não”, que não faz e que não aceita; quem está do outro lado não tem outro remédio senão engolir em seco.  "O problema é que o Estado não tem flexibilidade para perceber o que realmente preocupa o setor privado e, ao mesmo tempo, saber proteger adequadamente o interesse público. Por isso, quando o Estado cede e aceita as coisas, muitas vezes pressionado pelas exigências políticas, cede sempre demais. Vai do oito ao oitenta".

Na venda da participação de 75% no Novo Banco ao fundo americano, Lone Star, foram-nos dadas garantias de que a garantia de 3,9 mil milhões de euros seria usada apenas em último recurso. “Mas o Governo sabia que teria que enfrentar um problema sério ao permitir que a discussão com o comprador do Novo Banco se centrasse no valor dos ativos e empréstimos ‘maus’ do Novo Banco. Ao fazê-lo abriu uma brecha do contrato que ditou o destino da dita ‘garantia’”, sustenta António Vitorino. "Essa garantia não seria uma medida de 'último recurso’; sempre se soube que os € 3,9 mil milhões estão irremediável ou quase irremediavelmente perdidos".

Em qualquer contrato de compra e venda de uma empresa, especialmente quando se trata da venda de um banco, o vendedor dá determinadas garantias relativas ao negócio existente à data da celebração do contrato, mas essas garantias não podem refletir os “desejos” ou expectativas do comprador, explica António Vitorino­­. “Trata-se de uma distinção significativa; no caso do Novo Banco o Governo não se manteve firme quando recebeu e aceitou a oferta da Lone Star, nem definiu uma linha que, se ultrapassada, levaria ao fim da negociação. Os decisores políticos permitiram que a negociação se centrasse na “qualidade” dos ativos do Novo Banco e com isso mudou as regras do jogo e os termos da oferta.”

É importante notar que isto não é uma mera questão jurídica, acrescenta António Vitorino. Tem a ver com as decisões estratégicas que têm de ser tomadas ao longo do processo. “Ninguém se admira que qualquer banco, em qualquer parte do mundo, tenha crédito malparado e outros ativos problemáticos, principalmente no final de uma crise económica. Mas quando se tem uma proposta de compra em cima da mesa e se permite que o comprador queira negociar novamente o preço, escolher os ativos que verdadeiramente lhe interessam ou exigir novas injeções de capital, então qualquer advogado sabe, ou deveria saber, que se abriu uma brecha que o comprador irá usar no futuro”.

Por isso, ano após ano, o Novo Banco tem vindo a usar a garantia de capital dada pelo Governo. A recente injeção de capital no Novo Banco levou o Ministro das Finanças a pedir uma auditoria para esclarecer estas necessidades de capital no Novo Banco, mas nada de novo se irá descobrir. "Essa auditoria, diz António Vitorino, serve para salvar a face dos decisores políticos; é apenas para inglês ver."

Tudo isso foi completamente despropositado, afirma; ninguém esperaria que tantos problemas surgissem já depois da venda do banco.  Ao oferecer de mão beijada benefícios ao sector privado, em vez de salvaguardar o dinheiro dos contribuintes portugueses, o Governo enfraqueceu o que poderia ter sido uma resolução bem sucedida.

“Todos os principais bancos portugueses tiveram sérios problemas com o crédito malparado”, acrescenta. “Mas todos os bancos privados puderam devolver com juros o dinheiro emprestado pelo Estado. Não se perdeu nenhum dinheiro público no BCP nem no BPI, por exemplo. ”Só se perdeu o dinheiro dado aos bancos que acabaram sob o controlo do Estado, nomeadamente o BPN, o Novo Banco e o Banif. A CGD também era estatal. ”

Enquanto empresa, o Novo Banco está a preparar-se muitíssimo bem para gerar lucros para os seus acionistas, lucros esses que serão muito superiores às perdas agora sofridas, explica António Vitorino. “Mas, por causa da incapacidade do Governo para traçar uma linha que definisse onde termina o legado do BES e começa o Novo Banco, veremos um dia que esses lucros não serão usados para cobrir os prejuízos dos credores ou para compensar o dinheiro dos contribuintes que está agora a ser injetado no banco. Os custos de todas estas pontas soltas acabarão por ser pagos pelo fundo de resolução; em última instância, o contribuinte acabará mais uma vez a perder.”

 

 Nota: A Macedo Vitorino & Associados está a assessorar vários obrigacionistas do Novo Banco e também investidores em títulos do Espírito Santo em diversos processos relacionados com o colapso do BES / GES.

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