2020-11-25
Guilherme Dray

Publicado na Advocatus.

A descoberta da vacina contra a Covid-19 pode ser um fator decisivo para proteger a saúde pública. E pode ser importante, também, para recuperarmos a nossa liberdade de trabalho e de circulação. Mas é legítimo colocar-se a seguinte questão: Pode a vacina ser obrigatória? E pode uma empresa, por exemplo, recusar trabalho a quem não se vacine?

As questões acima enunciadas lidam com diferentes normas previstas na nossa Constituição: por um lado, o direito à proteção da saúde e o dever de a defender, cabendo ao Estado a incumbência de garantir a saúde pública (64.º); por outro lado, o direito da pessoa à integridade pessoal (25.º), ao livre desenvolvimento da personalidade (26.º) e à liberdade de trabalho (47.º).

A obrigatoriedade da vacina pode ser um imperativo de saúde pública, mas também pode atentar contra as pessoas que não querem ser vacinadas. Por um lado, ela joga a favor do bem comum. Por outro lado, pode ser atentatória das liberdades individuais.

É aqui que entra o Direito. Sempre que há necessidade de articulação de dois princípios tendencialmente opostos, importa promover a sua conjugação, segundo princípios de proporcionalidade, necessidade e adequação.

Havendo colisão de direitos, o Código Civil determina que os seus titulares devem ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (artigo 335.º). Estando em causa a compressão de direitos fundamentais, a Constituição determina que as restrições devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos (artigo 18.º).

É neste justo equilíbrio que se deve tratar este assunto.

Na medida que haja evidência científica de que as vacinas são realmente necessárias e seguras para conter a pandemia, ela pode ser obrigatória. Mas estando em causa uma limitação à liberdade individual, há que ser-se particularmente exigente na fundamentação e na forma de aprovação. Por um lado, a obrigatoriedade deve ser suportada na ciência e na saúde pública. Por outro lado, a sua aprovação deve ser levada a efeito por lei da Assembleia da República.

A obrigatoriedade da vacina e a sua admissibilidade foi, de resto, acolhida, no país das liberdades individuais, em 1905, pelo Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América, no caso Jacobson v. Massachusetts.

Na altura, face a um surto de varíola na cidade de Cambridge, o Estado do Massachusetts autorizou a vacinação obrigatória. Jacobson, Pastor de uma Igreja, recusou-se a ser vacinado, alegando que havia sido vacinado na sua própria infância (na Suécia) e que a vacina lhe tinha provocado graves problemas de saúde ao longo da sua vida. Por se ter recusado, foi-lhe aplicada a pena prescrita na lei: o pagamento de 5$USD. Jacobson recorreu desta decisão, invocado a sua liberdade individual e a 14ª Emenda Constitucional.

O Supremo Tribunal, numa decisão que passou a constituir um importante precedente judicial, concluiu que “a liberdade consagrada na Constituição não importa o direito absoluto de cada pessoa de estar, em todos os momentos e em todas as circunstâncias, totalmente livre de restrições”, e que “em toda a sociedade encarregada do dever de conservar a segurança de seus membros, os direitos do indivíduo em relação à sua liberdade podem, às vezes, sob a pressão de grandes perigos, estar sujeitos a restrições”.

Desde então, desde que ancoradas em motivos científicos e em leis razoáveis e proporcionais, as vacinas obrigatórias passaram a ser admitidas, em nome da saúde pública.

Seja como for, há duas notas finais a registar: a primeira, é a de que o incumprimento da obrigatoriedade nunca pode ter como consequência a vacinação compulsiva, contra a integridade física da pessoa. A consequência, ou passa pela aplicação de uma multa, ou por uma sanção indireta, como seja a restrição de acesso a serviços ou funções públicas. A segunda, é que sem uma lei que determine a obrigatoriedade da vacinação, as empresas não podem recusar o acesso ou a prestação de trabalho por quem não esteja vacinado.

Os “anti-vaccination movements” já começaram uma campanha nas redes sociais contra a vacinação obrigatória, na maior parte das vezes com recurso a teorias conspirativas e a fake news.

Também por esta razão, se o Estado quiser impor a vacinação obrigatória, convém que o faça de forma particularmente fundamentada e com muita pedagogia, sob pena de dar azo (ainda mais) ao crescimento de movimentos populistas.

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