Este artigo foi publicado no dia 1 de abril no Expresso Caderno de Economia, página 29

Não cabe dúvida estar o Mundo num virar de página, na História, na Economia e na vida de todos nós. Na História, cai agora o véu que nos impediu tanto tempo de reconhecer uma das maiores tirarias sobre a Terra (e não se pense que a Rússia é a única que nos faltava admitir como tal, pois temos ainda a China e países como a Arábia Saudita, que continuamos a tratar como iguais nos valores quando não o são). Na Economia, entrámos num ciclo inflacionista, que já era inevitável como consequência das políticas monetárias seguidas na luta contra os efeitos da pandemia da Covid-19, e que, com a invasão russa da Ucrânia, ninguém sabe dizer onde nos vai levar. Nas vidas de nós ocidentais, bafejados pela sorte de vivermos longe da guerra e da pobreza de tantos locais no Mundo, sentimo-nos encurralados com a subida dos preços de tudo o que consumimos, e perplexos na nossa incompreensão dos mecanismos de fixação dos preços. Alguns pedem a tributação das mais-valias que adjetivam como injustificadas, imorais e causadoras da carestia que afeta a maioria. Outros, mais moderados, questionam-se sobre a universalidade das regras do mercado, perguntam-se se não será tempo aqui também de virar uma página.

É neste contexto que a Comissão Europeia propôs recentemente um plano, ao qual deu o nome de REPowerEU, para eliminar a dependência de combustíveis fósseis russos antes de 2030, dar resposta ao aumento dos preços de energia na Europa e reconstituir as reservas europeias de gás. Esta iniciativa pode, para além de mexer no mercado do gás, vir a ter um impacto significativo no sector das renováveis, pois permite aos Estados-Membros tomarem medidas de regulação dos preços; tributações temporárias dos lucros inesperados a utilização das receitas do comércio de licenças de emissão e auxílios estatais. No mercado ibérico (MBEL) temos também assistido à discussão sobre os mecanismos de fixação dos preços da eletricidade. Os preços grossistas da eletricidade no OMIE (onde se negoceia o preço diário e o preço intra-diário da eletricidade na Península Ibérica) são calculados com base num critério de preços marginais que procura espelhar o encontro de forças entre a oferta e a procura de eletricidade. Existe um algoritmo para estes cálculos chamado EUPHEMIA – quem sabe se batizado em homenagem à santa grega torturada até à morte por não aceitar participar em sacrifícios pagãos na Constantinopla romana do sec. III – e podemos dizer que a este respeito as coisas são deveras complexas; mas, tentando simplificar, podemos explicá-lo da forma que se segue:

No OMIE encontram-se a procura indicada pelos operadores das redes espanhola (REE) e portuguesa (REN) e as ofertas que os produtores fazem para corresponder a essa procura. O preço que se estabelece para compra da eletricidade será o preço da última oferta a ser inserida no sistema (normalmente, a de quem tem menos incentivo a vender, quem obtém um lucro menor com a venda). Se essa oferta for de uma central de ciclo combinado a gás, refletirá os custos desse produtor e não, por exemplo, a média dos custos de produção de todas as ofertas feitas nesse dia. Um produtor com uma central fotovoltaica vai vender a sua eletricidade no OMIE ao preço de venda do produtor da central de ciclo combinado a gás, o que, no atual contexto, significa ter uma margem significativamente superior à que estaria disposto a aceitar caso todas as ofertas ao mercado fossem de produção fotovoltaica.

É aqui que se pode perguntar se, ao agregar diferentes tipos de ofertas e ao escolher um critério de fixação de preços que parece ser incapaz de refletir diferentes custos de produção, o mercado não estaria impedido de funcionar corretamente como se estaria no caso de o confronto direto entre ofertas comparáveis e a procura fosse possível. Claro que a escolha do critério dos preços marginais tem uma explicação técnica, um racional que nos pode parecer mais adaptado a um contexto de oferta abundante e custos homogéneos (onde a pressão para vender seja semelhante em todos os produtores) mas que aparentemente é necessário, uma vez que o sistema precisa da energia produzida pelos produtores que queimam gás e outros combustíveis fósseis.

A criação de um imposto especial sobre as fontes de produção renováveis para igualar os chamados windfall profits (ao estilo do famigerado clawback criado pelo Governo da geringonça para eliminar os lucros injustificado dos produtores portugueses no MIBEL face aos espanhóis, vítimas de um imposto especial de 7%) implica um desincentivo àquilo que andamos todos a dizer que queremos incentivar. Um desincentivo com impacto não apenas imediato, mas também para o futuro do investimento em energias renováveis, que precisa de previsibilidade fiscal. Interessa reter que o mercado funciona com base numa perceção de risco, que inclui fatores do próprio mercado, tais como a evolução tecnológica ou, em sentido contrário, a evolução negativa do custo dos fatores de produção. Se lhes acrescentamos riscos não oriundos do mercado, como sejam uma intervenção administrativa nos preços ou a imposição de impostos (a cacofonia é propositada), o mercado deixa de funcionar, afetando, indiscriminadamente, a oferta (que pode ter de fechar portas) e a procura (que irá suportar ou preços mais altos ou a escassez, neste caso de eletricidade).

Por isso, uma intervenção administrativa nos preços, com a fixação de um máximo, por exemplo em 180 euros por MWh, como sugerido pelos Governos Português e Espanhol à Comissão Europeia, terá como consequência a produção deficitária em centrais a gás. O que fazer então, se precisamos dela? Certamente, os produtores com custos mais altos retirarão a sua oferta do mercado, a não ser que sejam subvencionados (o que tornaria a medida inútil), gerando escassez de oferta. Por outras palavras, não haveria eletricidade para todos, porque neste momento em que vivemos a oferta não é elástica (muito dizem que por se ter precipitado o Governo português em antecipar o fecho das centrais a carvão).

E, porque todos os resultados de preços acima que seguem as leis naturais não têm ideologia, qualquer regulação dos preços da eletricidade é de evitar. E a tributação dos windfall profits irá naturalmente fazer com que os preços subam ou que falte eletricidade a todos.A forma de intervenção estatal menos nociva será o apoio direto aos consumidores menos capazes de suportar os aumentos dos preços de mercado da eletricidade: os indivíduos e pequenas empresas com menos recursos e as empresas consumidoras electro-intensivas cuja atividade seja imprescindível ao tecido económico do país. Os mecanismos mais eficientes para dar esse apoio serão sempre o bom do cheque (e nunca a linha de crédito, que é como oferecer água a quem se está a afogar); ou, melhor ainda, o simples desconto nos impostos.

Consequentemente, a Comissão Europeia e os Estados-Membros devem, antes de mais, dar prioridade a uma reavaliação consensual dos métodos de fixação de preços da eletricidade e, se possível, ajustá-los de modo que permitam ao mercado funcionar melhor, pois não é o mercado que está a falhar, mas eventualmente as regras a que as plataformas de negociação como o OMIE estão sujeitas.

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